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Porque é necessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que o corpo mortal se revista da imortalidade. E, quando este corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade, então, se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória (Coríntios 15:51-54)

Sonhei a noite inteira com um enorme jardim que parecia infinito, com estranhas árvores de folhas vermelho-sangue que caiam aos montes de seus troncos retorcidos. Eu corria descalço através desse jardim, machucando meus pés descalços ao pisotear os seixos no chão que formavam o caminho; mas ainda assim sem parar de correr. Tentava alcançar uma esfera de luz que às vezes era o Sol, as vezes parecia algo muito menor e mais próximo. Por algum motivo eu sentia que minha vida dependia de eu alcançar aquilo, e que eu não podia olhar para trás ou algo terrível aconteceria.

Acordei diversas vezes, na parte em que ameaçava olhar para trás, então voltava a cochilar após ser vencido pelo cansaço; para novamente correr no sonho até ser dominado pelo medo e curiosidade e então acordar de novo sozinho na cama. Em dado momento simplesmente parei de ter o sonho, mas ainda assim não foi uma noite bem dormida.

Devido a isso assisto a missa de Páscoa sonolento, num dos bancos da segunda fileira, bem próximo ao púlpito de madeira escura. O padre Isaías usa agora uma estola perolada, ao invés da roxa das últimas missas. Usa a batina sacerdotal, longa e de tecido grosso, que parece muito quente, pois vejo minúsculas gotículas de suor formarem-se em sua testa.

Fala vividamente sobre uma passagem de João referente a ressurreição, mas sinto tanto sono que tenho dificuldade em me concentrar. A música por fim se inicia , indica o inicio da comunhão, e me levanto em imitação aos outros, parecendo um zumbi.

_ Tomais todos e comei, isto é o meu corpo que será entregue por vós ... - diz o padre, erguendo a hóstia, o corpo de Cristo. Reparo em seu pomo de adão proeminente, que se levanta e abaixa em cadencia, no reverberar de sua voz potente.

Assisto a comunhão de meu banco. Não consumo a hóstia, mas firmo os joelhos no ajeolhador, preso a parte de trás do banco da frente, e peço perdão, enquanto o hino é tocado. Peço a Deus perdão, primeiramente, pela dificuldade em me concentrar na missa. O fato é que, para mim, vir a missa sempre foi muito mais um ato de penitência do que prazer estoico.

Peço a Deus perdão também por ser fraco, por ceder ao pecado da carne com alguém que acredito ser o seu inimigo, e peço um sinal claro. Peço para sentir algo acolhedor, qualquer coisa que me indique que não estou sozinho, que não seja medo. Algo que me diga que existe algo ali para além de Diogo.

Peço para parar de me sentir assim em relação a ele; quero me sentir puro, salvo. Constrinjo minhas mãos com força, tanta força..., mas Deus parece surdo as minhas preces e não me envia nada. Continuo sendo um indigno.

Volto a meu banco e começo a reparar na nave. É tudo muito simples. Um enorme crucifixo de madeira rústica é quase toda a decoração. Além padre Isaías.

Por algum motivo deixou a barba crescer um pouco mais, como havia imaginado, sua barba cresce muito rápida. Continuou muito bonito, não pude evitar concluir. A barba esta em uma altura que ainda permite ver os traços do queixo pontudo que sobe em duas esferas proeminentes do maxilar.

Percebo que talvez seja errado ficar reparando nele, e tento prestar atenção aos coloridos vitrais velhos nas laterais, cada um representando um santo diferente. Tento adivinha-los, sem muito sucesso, devido ao mal estado dos vidros. Reparo em um deles, de pele mais escura, com um manto bege. Acabo comparando com a bata do padre.

Ambos são disformes e sem graça, tornando-se quase um balão com pescoço e cabeça. Embora o pescoço de padre Isaías tenha um que de hercúleo, grosso. Me pergunto se mesmo com esse calor está usando calça e camisa por baixo.

Involuntariamente passo a tentar imaginar como seria seu corpo. Será que possuía bastante pelos no tórax, como Diogo? Quando vestia uma camisa ficava galhardo, forte e magro, como seria seu corpo?

É curioso pensar no corpo de outros homens, já que só me lembro de ter estado com Diogo. Começo a me lembrar do volume que se forma na frente de sua calça. Não quero admitir que havia reparado nisso, mas a verdade é que reparei. Estava todo ali, indisfarçável. Quando acordar, eu me satisfarei com a tua semelhança...

Saio do devaneio profano, assustado com meus pensamentos, ao perceber uma mulher me olhando fixo. Estava sentada ao meu lado enquanto devaneava. Cruzo as minhas pernas apoiando as mãos sobre ela, percebendo que precisava disfarçar algo. Meu Deus, que está havendo comigo?! A mesma se levanta, enquanto os demais se levantam também e estende a mão. Olho para ela aturdido, confuso.

_ A paz de Cristo - diz, e demoro a entender o que houve. É uma mulher bonita, rechonchuda de olhos claros, lábios naturalmente avermelhados e cabelo loiro. Possui um busto gigantesco, que esconde em um vestido recatado até o pescoço. Dou a mão instintivamente a ela, sem me levantar, e finalmente entendo que estamos no final da missa, quando o padre orienta que todos se cumprimentem e desejem a paz uns aos outros.

Por fim a missa acaba e espero a maioria sair antes de me levantar e fazer o mesmo. Sinto-me mais pesado do que quando entrei. Diogo está mexendo com sua cabeça - falo para mim mesmo, tentando justificar os pensamentos horríveis que tive durante a missa.

Na saída, uma pessoa esta distribuindo o que penso ser um santinho de papel. Reconheço-a como a mulher da igreja. Decido passar reto e evitá-la, com medo de que tenha entendido algo do que se passou, mas ela estica bastante o braço quando passo e acabo encarando-a e pegando o papel que tinha entre os dedos.

Leio as letras maiores, com fundo de asas, que dizem "Grupo de Cura e Salvação". A encaro. Seu sorriso é puro e gentil, como um anjo.

O Diabo sobre a CarneOnde histórias criam vida. Descubra agora