II

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""Ah, como é encantador!

Verdejante é o nosso leito." (Cânticos 1:15-16)

Acordo meio cedo, o que tem acontecido com alguma frequência, por uma infinidade de razões. As vezes acontece quando a madeira da casa range muito, quando o clima muda. As vezes por que os cachorros da vizinhança não param de latir a noite. As vezes por alguma fêmea que meu gato atrai pro meu quintal e ambos fazem barulho (tenho certeza que ele faz de propósito!). Não me lembro de ter sido assim no começo do ano, mas o fato é que atualmente estou sempre ansioso, então não é difícil me fazer acordar.

Sinto meu coração acelerado, estava tendo um pesadelo no qual eu caia infinitamente, sem salvação. Cresci religioso e crente (no sentido de aquele que crê, sou católico), embora tenha me afastado da religião quando adulto (pelo que me lembro), acabei voltando a igreja recentemente, em busca de salvação. Uma salvação que eu não acredito que mereça.

Sonhos em que sou condenado ao inferno não são incomuns para mim. O sonho em que não paro de cair nem foi dos piores. Tenho certeza de que são todos um prefácio do que me espera, devido a como estou estruturando minha vida.

Sinto me aliviado por ter acordado mas deprimido pois sei que não voltarei a dormir. Por algum motivo nunca consigo dormir de dia. Para completar demorei muito a dormir a noite, não só pelo que eu e Diogo fizemos por um bom tempo, mas principalmente porque sou capaz de me angustiar horas pensando na danação da minha alma por estar ali com ele. Mesmo assim continuo aqui, me fazendo de desentendido.

Minha cama e grande, com uma cabeceira alta de madeira sólida, trabalhada em detalhes, e parece ainda maior quando estou só nela. Achei que estava sozinho na cama, até que estremeço! Por um segundo, sinto uma presença que não vejo.

Percebo que Salazar está ali, entre meus lençóis cor de vinho. Havia sumido há dias. Por algum motivo lembro de quando o adotamos, um filhote de gato marrom e de olhos amarelos, em seus três meses, embora não lembre do porquê do nome. As vezes acho que soa um pouco parecido com o meu. Tenho certeza de que acho uma escolha tosca. Por mim esse gato teria sido castrado e criado preso dentro de casa. Seria um pouco difícil, é verdade, telar a casa toda, uma vez que moro numa casa bem grande e, de quebra, com portas e janelas em formato "camarão", aquelas que se dobram no meio de si mesmas. Mas Diogo decidiu criar o gato totalmente solto, o mesmo mal para em casa agora.

_ "Mas ele pode não viver tanto com os riscos lá fora" - lembro que eu disse.

_"Se for assim, ou não, ele vai ter vivido a vida que escolheu" - foi a resposta dele. Na ocasião ainda não sabia sua real natureza e divergia mais com ele, sem medo. Mas para esse assunto eu não tive muita resposta.

Estou aqui, devaneando comigo ou com alguma consciência com acesso à minha mente sobre meu gato. É muito melhor do que quando me perco em pensamentos, me dizendo que moro com o demônio. Sei que é estranho eu ainda continuar aqui, mas é que as coisas, não importa o que elas sejam, são sempre passíveis de se habituar. Não é o mesmo que aceitar, que superar, que entender. Se habituar é apenas se acostumar ou fingir que não é com você quando é conveniente. Você pode se acostumar com quase tudo nessa vida, nem que seja parcialmente. Pelo menos por um tempo.

Mas hoje sinto que esse tempo acaba. Cruzo minha cozinha espaçosa e vou para a horta que existe nos fundos da minha casa, encontro Diogo ali. Continua sem camisa, sob o sol meio frio da manhã, de chinelos. Raramente parece sentir frio. Reparo no sol vermelho, como se sangrasse. Encaro como um sinal, mas eu venho ignorando os sinais há tanto tempo...

Temos um gosto por plantas e hortaliças em comum. Ele também sempre acorda cedo, mas consegue dormir cedo e tranquilo, por vezes chega a roncar de leve. E ainda quando não dorme muito, parece sempre descansado e cheio de energia, mesmo que seja eu o rapaz de vinte e cinco anos. Eu posso permanecer vidas com sono após acordar.

Sinto uma vez mais o ímpeto de perguntar a ele. Ensaiei diversas vezes no corredor. É simples, seu covarde. "Ei, Diogo. O que é você? Por que não me lembro de quando o conheci? É um demônio, certo? As coisas estranhas que acontecem aqui, essa casa... são feitas por você, certo? Você quem mexe com a minha cabeça também não é? Pode me falar...".

A frase ficou mais ridícula, cada vez que a repeti. Mas cheguei aqui, estou disposto a acabar com isso. Um bando de maritacas voa, fazendo um enorme barulho quando me aproximo. Olho o torso largo e forte de Diogo, as costas desenhadas brilhando ao sol. Desço a vista até as panturrilhas torneadas, eu sempre gostei muito delas. Engulo em seco.

_ Diogo - começo, ao que ele responde com um murmúrio aparentemente distraído, sem se virar.

_ ... é que eu ... hã... - ouço os grilos barulhentos no jardim enquanto penso.

_ Sim? - Diz, finalmente me olhando nos olhos. Mastiga uma maçã, vermelha e viva. A abocanha com vontade, com os dentes fortes e brancos, como faz com minha boca, com minhas costas, nos momentos mais intensos. Reparo em seu queixo potente e de maxilar largo, enquanto mastiga.

"Bendito é o fruto" - penso, e não sei porque ou de onde veio isso a minha cabeça. Tenho tido pensamentos bíblicos espontâneos em momentos como esse, em situações absurdamente fora de seu contexto original, uma verdadeira heresia involuntária. Eu detesto quando penso nessas coisas

Não posso abrir mão disso, mas ao mesmo tempo se não parar com isso...Eu preciso... Eu tenho que me salvar.

_ Hã...bem...O coentro - digo pensando na primeira coisa que me vem a cabeça, e já me sinto um covarde, vou falhar de novo, vou me perder... - a cebolinha, a pimenta. Todas foram pra frente, mas o coentro e a salsinha não. Talvez seja a terra muito ácida, podíamos colocar aquele produto a base de calcário que eu vi na internet.

Em minha horta possuo manjericão, cebolinha, pimentas diversas, a chamada fruta de palma com seus espinhos, e que ironicamente alguns chamam de figo do diabo. Possuo ainda açafrão, agrião, chicória... Todas plantas de sabor ardido, amargo ou muito doce. Mas não consigo ter sabores mais neutros.

_ Talvez. Mas não tem medo de isso comprometer as outras plantas? Está disposto a abrir mão delas pra tentar?

_ Abrir mão delas? - Repito exatamente a última fala dele, meio estupidamente.

_ Sim, bobão - diz ele pegando em meu queixo e sorrindo, ameaçando voltar para dentro, mas se detendo um instante a mais - Você não pode querer ter tudo, certo?

_ Querer tudo... - repito baixo, para mim... refletindo enquanto passo a mão nos pelos meio crespos e aparados do seu peito.

_ Era isso mesmo que queria perguntar pra mim? - diz, sorrindo e me oferecendo uma mordida de sua maçã.

Olho a maçã, pensativo. Sem ele aqui, que graça teria minha vida? O que eu sou sem Diogo?

Aceito a maça, que seguro com as duas mãos, então a mordo.

***


E ai galera? É demônio ou não é?

Muito obrigado por lerem, espero que estejam gostando!!!

O Diabo sobre a CarneOnde histórias criam vida. Descubra agora