"E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará (João 8:32)"
Uma memória me vem a tona, como um soco!
Me lembro de agarrar firme e com força no volante do carro enquanto tudo girava, uma, duas, cinco vezes! Tentei forçar meu pescoço para trás no banco, com medo dele se quebrar de alguma forma, mas com tudo fora do lugar durante a queda eu encostei a nuca no vidro. "Eu vou morrer! Vou morrer!" - pensei em cada um dos baques da lataria do carro batendo no barranco, totalmente perdido e atordoado enquanto tudo rodava.
A serra de onde eu capotava daria acesso a um mosteiro católico. Eu estava indo fazer um retiro, uma tentativa de fugir de tudo. Eu não tinha amigos ou namorada (aliás eu já pressentia que não gostava de garotas, embora evitasse pensar no assunto), então eu estava no carro sozinho. Sempre fui um frequentador assíduo da igreja, como meus pais, e meu primeiro instinto quando meu carro perdeu o freio e capotou, em uma curva extremante fechada, foi o de me apegar com Deus, o de pedir para ser salvo.
Mas quando o carro balançou pela última vez, e minha cabeça balançou para o meu peito e voltou acertando com tudo o vidro, a pancada extremamente dolorosa e o sangue escorrendo abundante e quente de minha cabeça me fizeram acreditar que eu morreria. "A minha recompensa está comigo", pensei a início, mas o pavor se espalhou com o sangue e então eu ousei lamentar algo para mim mesmo.
"Eu não vivi nada."
Aquele pensamento foi como um choque revelador. Era verdade. Senti o sangue advindo da pancada na cabeça escorrer pela minha nuca, estava doendo muito. Me perguntei se cai em outro trecho da estrada ou dentro da floresta que rodeava aquela serra íngreme, de ruas estreitas. Soltei meu cinto e cai com as costas raspando em algo áspero, que seria o teto, mas naquele instante não consegui perceber. A dor me fez urrar. Senti lágrimas quentes em meu olhos e o gosto metálico do sangue chegando em minha boca.
Tateei as cegas, desesperado, buscando a maçaneta da porta, machucando meus dedos e antebraços em micro-pedaços de vidro. Não havia iluminação e tudo estava fisicamente fora de onde deveria. Os vidros, a maçaneta, o painel; era indecifrável achar o que quer que fosse naquelas trevas, e eu mal conseguia me mexer. Pouco a pouco fui ficando mais zonzo, sem forças, o sangue empapava meus cabelos.
Senti o cheiro de asfalto molhado de dentro do caro, e imaginei que algum dos vidros poderia ter se quebrado e ser uma saída, mas a cada segundo eu me sentia mais fraco. Já estava sem condições para isso. Até que a dor, os cheiros, a ansiedade... toda as sensações começaram a se amainar, desaparecer, enquanto uma luz tênue, quase inexistente, começava a brilhar ao fundo de minha visão escurecida. "Eu só queria ter vivido. Ter conhecido alguém legal, ter amado, ter transado. Ter me divertido".
Eu havia passado a minha vida inteira como alguém impessoal com os outros e principalmente comigo mesmo, desconectado, escondendo o meu verdadeiro eu, evitando pensar sobre, embaixo das asas da religião, sob o medo de ser condenado. O temor me servia de motivo para não encarar esse algo que havia em mim, a vontade de agradar a minha família me fazia evitar esse algo que os faria sofrer, mas naquela hora, no acidente, o que eu sentia era que não vivi nada. A fraqueza tomou conta de mim, e a tênue luz branca ao fundo dos meus olhos veio em minha direção, como uma estrela de nove pontas, e depois tudo ficou branco enquanto perdia os sentidos.
Quando acordei, a luz ainda estava ali, mas eu estava acordando em uma cama de hospital. Confuso. Um homem incrivelmente bonito estava ali, sorrindo e segurando minha mão. Seus dentes eram muito brancos, seu sorriso largo e de caninos levemente proeminentes... Seus olhos eram amarelos.
Lembrar tudo isso de uma vez quase fez minha cabeça explodir. Mas foi o que aconteceu assim que vi que o pesadíssimo relógio na parede não estava mais no local habitual, próximo ao sofá onde estavam padre Isaías e André. De alguma forma ele havia sido movido. Uma estrela de nove pontas, perfeita, estava riscada na parede, bem no local onde ele ficava.
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O Diabo sobre a Carne
Mystère / ThrillerSamuel Hernandez possui alguns problemas de memória que o impedem de recordar totalmente seu passado, bem como de que forma chegou ao ponto atual, onde se percebe vivendo intimamente com outro homem, em uma grande e misteriosa propriedade. Diego é...