IV

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Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-lhe em seu coração. (Gênesis 6:6)

_ Não estava prestando atenção novamente, não era Samuel?

Retorno do meu devaneio com a pergunta. Dr. Cássio olha para mim, com seus grandes olhos azuis perscrutando por detrás dos óculos redondos. Possui quase a mesma idade que eu, em torno dos vinte e seis, embora pareça mais velho. Possui cabelos castanhos e a barba ruiva e crespa, aparada. A pergunta possui um tom amigável.

_ Desculpe doutor.

_ No que refletia?

Dr. Cássio era o psicanalista indicado pelo padre Isaías. Estamos ainda em nossa quinta sessão, e como tenho muito medo de que me ache louco ou queria me internar, não disse nada que possa levar a isso, embora já tenha dito que parece haver algo errado em minha vida. Nunca mencionei o problema de memória.

_ Pensava em Diogo - digo de improviso. Na verdade reparava na mão do Dr. Cássio. Usa aliança, um grosso fio dourado e uniforme no dedo comprido e muito branco.

_ O senhor é casado Dr.? - pergunto sem saber o porquê.

_ Sou sim, por quê?

_ Por nada. Eu e Diogo... parece algo muito errado. Mas não consigo deixar de gostar dele - reparo comigo que me sentiria absurdo usando uma aliança de Diogo por aí.

_ Na verdade era sobre isso que eu falava. Segundo as outras sessões, você sente muita culpa por estar com ele, mesmo que se sinta bem quando estão juntos. Mas não foi capaz de formular um motivo. Você deve se questionar o porquê disso. Se ele de fato faz você sentir-se bem...

_ Eu me sinto muito bem e ao mesmo tempo mal com ele Dr. É sempre uma mistura de prazer com ansiedade ...

_ Será que você se considera indigno? Por que insiste em considerar que o que está fazendo é algo ruim, ou esperar que algo ruim aconteça ao final de tudo?

Não me considero digno? A pergunta do Dr. segue comigo até em casa, após a sessão. Não é a primeira vez que a terapia me deixa mal e desconfortável. Geralmente apenas compareço as sessões como obrigação, simplesmente para poder dizer que fui, quando o padre Isaías me perguntar sobre, na confissão da igreja, que é com o que, de fato, eu conto como o caminho da minha salvação. A igreja me conforta, me faz acreditar que eu posso melhorar, quando reencontrar a minha fé.

Em comparação, sequer gosto do Dr. Cássio, geralmente ele me irrita com suas perguntar sobre coisas que eu julgo desnecessário contar. Sinto que está sempre tentando insinuar que eu devo me conformar com as coisas, sempre tentando minimizar meus problemas. Apenas o aceitar. Mas dessa vez essa frase meio que me deixou... (constrangido?) Me sinto mal e triste. Decido que não quero mais vê-lo.

Coloco meu celular em cima da bonita cômoda de madeira entalhada e envernizada que fica bem no centro de nossa sala, ao lado do sofá que a divide, atravesso o portal oval rumo a cozinha e começo a preparar o almoço.

Pico a carne com muita facilidade. Não como carne nenhum dia da Semana Santa, porém amanhã será Páscoa, resolvo já deixar a carne pronta para apenas ser cozinhada depois da missa.

A faca grande, de cabo de madeira, é afiadíssima, e parece um exagero em comparação com os pedaços pequenos . É tão afiada e desproporcional que acabo cortando o peito da mão.

_Droga! - bufo, vendo a tábua branca que estava manchada de um líquido vermelho aguado escurecer juntando-se ao vermelho do sangue. O contraste entre as cores é muito bonito, quase como uma pintura abstrata, distraio-me por um instante misturando as cores com a mão boa e acabo deixando o corte da outra mão respingar sangue no chão da cozinha.

Corro para o armário e pego a caixa onde guardo remédios, fita, esparadrapos e afins. Tento fazer um curativo quando o celular toca da sala. Faço o curativo de qualquer jeito, afim de ter tempo de atender o celular, mas chego atrasado. Verifico no visor que era Diogo.

Olho o visor do celular. Há uma mensagem. "Tive um problema com meu pai, irei chegar somente na segunda".

Que conveniente - concluo, me tocando que ele acabará passando a Páscoa longe de casa. Se ele for um demônio,o que será que um demônio faz durante a Páscoa?

Subitamente sinto interesse na peça onde o celular estava. Trata-se de uma espécie de pequena cômoda envernizada, marrom clara, muito bem trabalhada com relevos em todas as direções. A exceção da frente, cada lado possui entalhada uma grande esfera com raios ao redor, como sóis.

Na parte da frente, possui duas gavetas e um compartimento em baixo, quadrado, também entalhado, mas com um desenho em formato de uma árvore de galhos retorcidos. Sei que Diogo deixa os documentos de seu trabalho lá. Os pés são baixos e circulares.

Diogo é especialista em línguas e trabalha com tradução. Geralmente trabalha em casa, embora esporadicamente seja chamado para palestrar ou auxiliar algum ex-colega acadêmico em alguma aula. Chega a passar horas só de bermuda na cama, com seu notebook, traduzindo.

Algumas vezes chega a trazer antigas cópias em papel físico; quando o faz, coloca no compartimento.

Sempre procurei evitar mexer nos papéis, por três razões. Primeiramente porque imagino serem coisas delicadas, segundo porque sou péssimo com línguas, mesmo inglês falo muito mal, de forma que provavelmente eu não entenderia o que há lá. Mas o terceiro e principal motivo é que prefiro não saber ou me envolver, caso haja algo mais escondido ali.

Diogo sempre me avisou para não mexer nos documentos e sempre preferi não saber o porquê, embora isso nunca tenha me impedido de imaginar. Mas hoje sinto muita vontade de abri-la. Toco as linhas em relevo do desenho da árvore com a mão sem curativo, e sigo o delicado contorno com meus dedos, fazendo todas as direções. Por fim crio coragem, puxo o pegador da porta, que range alto raspando a madeira, enquanto se permite abrir com dificuldade. O rangido é extremamente aflitivo, como um grito, acelerando meu coração com o susto por um instante. Sinto meus dentes se confrontando em resposta.

Imaginei que a parte interna da peça cheiraria a mofo, mas não o sinto. Dentro há uma pilha de papéis. Tento pegá-los com o máximo de cuidado que uma única mão boa permite, apoiando-os em meus joelhos. São papéis de origens diferentes, separados por clipes, a maioria enfiada em plásticos escorregadios. Tento fuçar em alguns aleatoriamente, mas não identifico qual e a língua, sei que não são inglês ou espanhol. Escolho um maço sem plástico, cujo as folhas parecem bonitas e antigas. Se tivesse de chutar a língua, chutaria grego, pelos caracteres.

Estou fuçando as coisas, tentando adivinhar algum significado, sentado sobre meus joelhos, quando minha perna começar a ficar dormente. Tento trocar de posição e sentar com as pernas cruzadas, mas os papéis se esparramam pelo chão. Ao tentar evitar de derrubá-los esbarrei com a mão machucada neles e agora vejo uma minúscula mancha de sangue formada em uma das folhas.

_ Que merda! - digo, e instintivamente tento remover a mancha com o dedão da outra mão. O sangue seca acompanhando o movimento horizontal e acabo ficando com o polegar meio estampado em uma das últimas folhas do bloco de papel.

_ Caramba Samuel, você é um imbecil! - falo bravo comigo mesmo. Amontoo as folhas novamente, colocando a folha manchada no meio para que Diogo não veja, sem pensar, como se eu fosse uma criança. Fecho a porta do compartimento e resolvo ir fazer um curativo decente.

O Diabo sobre a CarneOnde histórias criam vida. Descubra agora