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"Então eu também vos farei isto: porei sobre vós terror, a tísica e a febre ardente, que consumam os olhos e atormentem a alma; e semeareis em vão a vossa semente, pois os vossos inimigos a comerão. (Levítico 26:16)"

_ Olá meu nome é Sabrina e... bem... tive 2 relacionamentos homossexuais... - diz a mocinha clara, de vestido florido, constrangida. Ela parece pequena perto do enorme círculo de pessoas a encarando.

Estamos todos sentados em nossas cadeiras duras e frias de ferro, formando um círculo, enquanto a garota, que teve de se levantar, fala para os demais timidamente. Raquel, a moça loira de olhos claros que conheci na igreja, acena a cabeça para ela, em aprovação encorajadora. Usa um vestido comportado e azul. Tenho dificuldade em me concentrar na narrativa de Sabrina, os acontecimentos dos últimos dias ainda fervilham em minha mente.

Relembro a visão espelhada da cicatriz em minha cabeça. Uma cicatriz enorme e avermelhada cortada ao meio por outra menor. O desenho era idêntico à imagem que se formou no vidro da casa, quando a pomba se chocou. A semelhança é inequívoca, a inclinação de leve para esquerda... eu sei que eram idênticas! Lembro das minhas lágrimas quentes: Eu estava marcado desde o início.

Naquele instante fiz as malas, peguei as chaves do meu próprio carro e sai na chuva, sabendo que só o que queria era ficar longe daquela casa. Longe de tudo aquilo. Meu primeiro impulso foi ir à igreja, mas não me senti bem com a ideia, após o ocorrido com o padre Isaías. A pessoa mais próxima de mim no trabalho seria André, mas não chego a considerá-lo um amigo. Meus pais moram muito longe e eu havia deletado o contato do Dr. Cássio.

No desespero, revirei o porta-luvas do carro, sem saber ao certo o que procurava, até que achei o cartão. "Grupo de Cura e Salvação", dizia. Era tudo o que eu queria, salvação. Liguei para o telefone do cartão e foi a própria moça que me deu o cartão quem atendeu. Raquel.

Expliquei a ela que me sentia perseguido, com algo de muito ruim, vindo do meu namorado. Conversamos durante muito tempo, ao que ela me aconselhou, me disse que eu estava de parabéns por ter procurado a ajuda de Deus e ter decidido me afastar do pecado. Por sugestão dela, fiquei em um hotel durante dois dias, pelos quais nos falamos, e agora no fim da tarde vim a esse grupo de ajuda e cura do qual ela é uma das organizadoras. Um grupo "para pessoas atormentadas que desejam se curar de seus vícios", como ela disse. Não recebi ligações de Diogo nesses dias, e tão pouco fui trabalhar.

Sabrina, a mocinha, termina de falar, ao que todos aplaudem. Não consegui prestar atenção ao que disse, apenas percebi que pareceu ser uma garota muito triste. Enquanto falava sobre sua vida, por um instante seus olhos pareceram ter vida. Acho que falava da ex, mas não durou muito, uma garota apagada voltou a se sentar quando terminou.

_ Gostaria de agradecer a presença de todos em nossa reunião coletiva de hoje - diz Pedro, que conheci hoje, encerrando a sessão. Pelo que entendi, é ministro da igreja cujo estamos no salão paroquial - Agradeço especialmente ao nosso novo membro, Samuel, que realizou a sua primeira visita hoje.

_ Deus te abençoe e seja bem-vindo, Samuel - dizem todos, ensaiados em coro, e me aplaudem.

_ E não se esqueçam das sessões particulares de apoio psicológico. São muito importantes, não faltem. Não se esqueçam que cada um de vocês é um templo para Deus.

Todos, por fim, se levantam. Damos as mãos e rezamos três Ave-Marias e o Pai Nosso. Soltamos a mão após o Amém, ao que Raquel começa a aplaudir, então todos a seguem.

Me aproximo de uma das mesinhas onde colocaram uma garrafa de café e alguns lanchinhos de patê. Saber que existem mais pessoas que se sentem perdidas como eu deveria ter me deixado mais confortado, mas a reunião me deixou mais inquieto. Eu vi muita tristeza e ansiedade no olhar daquelas pessoas. Como se o Mundo estivesse perdido.

O Diabo sobre a CarneOnde histórias criam vida. Descubra agora