A troca de Asas (parte I)

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Não deveria ser preciso ser anjo para entender a dor humana, apenas
humano.

Se ao morrer, sentires a sensação de estar voando sobre nuvens de algodão,
sinto muito em dizer-te que não foi dessa vez. Foi ele que te acolheu sobre
as suas asas. E sendo ele, eu não deveria sentir muito, aliás, bem pouco.
Porque nem todos tiveram a sorte de o ter naquele momento. Somente o
vazio que jurou-lhes ser capaz de os fazer voar a um destino melhor.
Á mim, só me restava um pote de penas onde me agarrei a esperança
apesar de ter sorrido para morte. E a si o que lhe resta?

– Eu tenho a si! – respondeu o magrelo ao meu lado.
Tinha o cabelo todo desalinhado como quem não via o cabeleireiro há
seculos e andara brincando de salão em casa. Recolheu as asas feitas de
incontáveis penas idênticas as do meu pote e como se tivesse lido meus
pensamentos, ajeitou o seu cabelo.

– É o que eu tenho para hoje desde que tu resolveste fechar-te naquele
quarto. E se permite-me dizer, a menina não está lá grande coisa….

Nesse instante toquei os meus cabelos tão deprimidos quanto eu.

Nós últimos tempos tinham sofridos tantas transformações, que mereciam
o prémio Power Ranger do ano. Pensei que ao mudar por fora, estaria dando
um novo recomeço a mim mesma ou apenas desaparecendo...

– Rman! Rman! Desculpa interromper, mas comparar o vosso cabelo aos
Power Ranger é no mínimo um sacrilégio. Eles com aquelas roupinhas
maravilhosas só para lutar contra o mal…

– Estás lendo meus pensamentos? – Interrompi-lhe um tanto indignada,
apesar de ter achado graça em suas palavras

– Nunca entendi para que
tanto charme só para lutar contra o mal. – encolhi os ombros.

– Porque se algo correr mal, pelo menos foi em grande estilo e demos o
nosso melhor. – ele sorriu.

– Correr mal é meu lema! – levantei o braço como um capitão pirata
encorajando a sua tripulação com o melhor que ele sabia fazer, mas logo
deixei-me abater, deixando o meu corpo descair no chão. – Como pode ser
anjo da guarda de alguém como eu? Quer dizer, não lembro de ter feito
nada por merecer.

Ele não respondeu, apenas apontou para o céu. Acompanhei o seu gesto,
mas sem nada entender.

– É o mesmo motivo que as estrelas brilham só de noite. De dia, o Sol tem
tanta luz que deu-as a noite porque ele tem medo do escuro.

– É difícil acreditar que algo tão imenso tenha medo de alguma coisa. –
respondi de forma cética.

– As vezes ele os apaga para enfrentar o medo e cada uma se transforma
numa vitória.

– Não posso crer!- balancei a cabeça em negação.

– Os anjos não mentem! – contrapôs ele com um sorriso gentil.

– Como é ser um? – perguntei.

– É não existir e existir! Tudo depende de si.
– ele aproximou-se e sentou-
se ao meu lado.

Olhamos ambos para a vista em nossa frente, a cidade parecia ser tão
pequena e nós dois tão imensos.

– Além disso, nem sequer tenho um nome. Quando era pequena
chamavas-me de verdim.

– Por que raios eu te chamaria assim? – voltei para o encarar.

– Porque um dia me viste sobre uma árvore e lá permaneceste ao pé dela
me esperando descer. Daí teu pai veio, sem entender o real motivo de lá
estares, pensou que seria por causa de uma fruta. Por fim, ele explicou que
elas apenas caiam quando maduras e não verdes. Não paraste de gritar
verdim, verdim! – ele sorriu – Tinhas uns três anos.

– Parece ter sido bons momentos! – retribui com um sorriso fraco.
Não me lembrava quase nada dos bons momentos. É como se tivessem
tornados pequenos e no final desfeitos.

– Eu queria poder existir e não existir, mas tem dias que eu quero apenas
não existir. – disse por fim sentindo a dor voltar.

– Tens tudo o que precisas Emelly! Bem perto de ti – ele me fitou – Aqui! –
apontou para mim.
Olhei para ele totalmente incrédula com o que ele disse.
Eu tinha acabado de dizer que não desejava existir. Como ele poderia achar
isso?

– Então por que não fica com tudo? Com quem eu sou, com a minha vida!

– levantei-me chateada e comecei a andar– Ah! – voltei para encarra-lo –
Não esquece de ficar prisioneiro do gigante sem rosto também. Afinal é
tudo o que eu preciso.
Os meus olhos já ameaçavam chover como um céu nublado, retomei os
meus passos para o afastar da tempestade que estava por vir.

– A propósito, por que o chamas assim? – ele levantou-se e começou a
seguir-me.

– Não és tu o anjo, não deverias saber? – perguntei ironicamente.
Sem eu perceber, ele já estava novamente ao meu lado.
Não és bom marinheiro rapaz de asas. Bons marinheiros não seguem
tempestades.

– Não seguem, os enfrentam! – ele disse ao ler meus pensamentos mais
uma vez. – E só sei o que me permites saber.

– Mas que raio de anjo da guarda eu fui arranjar?

– Aquele que lê teus pensamentos e sentimentos porque não gostas de
falar sobre eles. E esperas que todos os saibam, mas são apenas humanos
como tu Emelly!

– Eles me entregaram para ele! – gritei por fim.

– Não Emelly, não! – ele ofereceu os seus braços para mim – Volta!
Sem avistar as asas parecia um rapaz comum, mas um rapaz comum diria
tais coisas? Me deixei acolher nos seus braços tal como momentos antes
quando a morte sorria para mim. Mas agora muito melhor. É alguém que
olha por mim sem eu saber o porquê.

– Se eu pudesse escolher-te um nome, escolheria Grandel! Me sabe a algo
imenso como o céu azul.
Ele sorriu.

– Podes tudo Emelly! – ele disse gentilmente.

Retribui o sorriso apesar das lágrimas.
Talvez a tempestade pudesse ir embora, e fosse apenas uma chuva branda
anunciando a esperança.

Por instantes esqueci o gigante sem rosto. Por onde ele andaria?
Preparando um novo ataque? Fazendo uma nova vítima? Não! Ele não
desistiria. Ele é paciente como todo bom sádico são com as suas vítimas. Ele
iria castigar-me por ter fugido, por tê-lo desafiado quando me dei ao direito
de ter esses instantes de felicidade.
Me desprendi dos seus braços, me desprendi da ilusão. Não podia ser tão
fácil assim, a minha dor é maior do que isso.

De repente os ramos de uma enorme árvore solitária começaram a se
agitar. Não sei como ela podia o ser tão só acimo de um monte. Não tardou
o Soldado A surgiu e bem atrás o gigante sem rosto, escalando ao meu
encontro como fizeram com a minha mente.

– Eles não podem fazer isso se não desejares Emelly! – tentou explicar o
rapaz de asas.

Mas eu não poderia ouvir. O meu choro fez-se sentir como uma tempestade
que engole o céu. E agora fiz a coisa que todo ser humano está sujeito
perante o desespero: o egoísmo!

A Menina que colecionava Penas (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora