O primeiro voo (parte I)

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Podes acordar passarinho dorminhoco! Porque chegou a hora para
enfrentar esse Mundo louco. A vida espera que estejas pronto para o grande voo, mas quem está?

O alarme toca e junta-se a ele os latidos eufóricos do Balder.
Hoje não era um dia comum, era o primeiro dia de aula do Grandel. Tinha
iniciado uma nova etapa na sua vida, que os pais chamavam de plano para
um futuro grande.

Hoje sei que não passava de uma lista do qual ele iria se perder mais do que se não tivesse uma. O que custava um passo de cada vez?

Em seu rosto, transparecia um certo receio por esse desconhecido, aliado a sua curiosidade por esse espaço, para além do nosso quintal e alguns quarteirões daqui.

Talvez ele precisasse de algumas palavras munidas de coragem, tão poderosas quanto as que usávamos para derrotar árvores e baratas voadoras. Entretanto, os seus pais estavam ocupados demais sonhando por
ele e imaginando o Grandel realizando todos os sonhos daqui 5, 10 e 20 anos.

Ele acabou por receber um beijo da mãe e um abraço do pai, bem como olhares de quem não estaria disposto a receber falhas. E quando foi a vez do Balder e eu, ele ofereceu lambidas de quem apenas deseja que ele volte depressa e mesmo se tudo der errado, eu estarei aqui.

O Grandel sorriu e por momentos o receio desvaneceu antes deles partirem, restando apenas eu e o Balder.

Com o passar do tempo, nós fazíamos uma dupla imbatível. Além disso, ele não me deixava sentir tão só, já que a casa ficava completamente deserta sem a presença do Grandel a cada partida sua pela manhã.

O melhor de tudo isso, é que eu existia para ele, porque se há algo que os cães entendem é de amor.

- Obrigada por seres um motivo que lhe faz sempre voltar depois de enfrentar o mundo lá fora.- disse assim que encontrávamos novamente sozinhos.

– Sabes que ajudas-me imenso, não sabes? - perguntei ao Bardel que encontrava-se ao meu lado deitado sobre as patas dianteiras.

- Au !au !au !- ladrou de seguida, abanando a cauda sem parar.

- Tomarei isso como um sim. - esbocei um sorriso gentil antes de retomar a minha atenção para a porta.

Ambos olhávamos sistematicamente para ela, esperando que o Grandel surgisse, contando-nos como tinha sido o seu dia, como havia coisas que ela não entendia, mas não questionava. Porque não saber era sinonimo de ser criança não inteligente, e os adultos não gostavam de crianças assim.

Por isso, ele tentava absorver ao máximo tudo a sua volta para os repetir
depois sem parar. Porque isso lhes deixava imensamente felizes e
orgulhosos, mas ninguém nunca perguntou-se se o deixava igualmente feliz …

*

Nos anos que se seguiram o Grandel como humano, provaria as suas primeiras doses de tristeza.
A primeira, é a vida nos arrancando algo que ela mesma nos ofereceu, sendo inevitável e talvez por isso, doa mais. Ou seria a segunda? Aquela causada por aqueles que demos o poder de ter tanto controle sobre as nossas emoções!

Bardel acordou, mas não se ouve os latidos eufóricos de sempre, que transbordavam de disposição para mais um longo dia.
Ele foi vítima do tempo e do stress de uma vida corrida, por haver sempre algo mais importante para fazer e ele poderia esperar mais um dia. Porém,
a Morte é impaciente, nem parece que possui toda a eternidade.


No entanto, dessa vez enviou uma ajudante, a senhora Doença. Talvez, ela seja
generosa para com aqueles de bom coração e por isso, dê tempo de dizer apenas adeus.

Ironicamente, ainda nesse dia havia algo mais importante do que o Bardel…

- Deixa eu ficar! Ele precisa de mim! –implorou o Grandel aos prantos.

- Ele gostaria que fosses e saísses bem na prova querido. - disse a sua mãe, aliviando as lágrimas que escorriam pelo seu rosto, antes de partirem.

E mais uma vez, a porta fechou-se novamente.

O Grandel sabia que não era a verdade. O Balder não ligava para essas coisas que as pessoas adultas e o Mundo todoimportavam.

Ter um filho que fracassou era inadmissível! Mais-valia ter um carregando o sucesso e marcado pela tristeza.

Olhei para meu amigo deitado no canto da sala. Sabia exatamente o que ele desejava.

Os anjos tem esse poder...

Foi então que me disfarcei do que ele mais amava e peguei na bola.

- Bardel! Meu cãozinho esperto! Vai buscar a bola meu companheiro! - disse
imitando tão bem a voz do meu humano.

E ouviu-se um último latido antes dos seus olhos fecharem para vida.

E eis o problema de não atarmos o amor em nós mesmo, é que quando o
deixamos em outro lugar e esse nos for imensamente distante, uma parte
de nós irá igualmente junto...

*

O tempo não cura, mas é o necessário para fazer a dor brotar e nos fazer entender que as coisas que um dia nos fizeram felizes viverão para sempre em quem somos. E que as más simplesmente fazem parte e que não
poderia haver primavera sem inverno. Se até a mãe natureza necessita de tempo quem dirá os humanos.
Entretanto, o Grandel não teve tempo para fazer do tempo o seu professor, da sua dor a maior lição e fortaleza que ele jamais iria ter. Ensinaram a ele que ela deve ser jogada em algum canto e esquecida o mais depressa possível.
Mas a dor odeia não ser atendida e rejeitada.
Ela voltará sempre para  acertar as contas...

- Hope! Que lindo nome querido. - disse a sua mãe quando o Grandel
anunciou o nome do seu recém amigo.

Hope era um peixinho laranja que vivia num aquário tão pequeno quanto
ele. Como ele haviam centenas, por isso, os pais do Grandel acharam que seria muito fácil o substituir sem o Grandel se dar conta, caso ele falecesse.

Para além disso, ela não dava muito trabalho. Logo, Hope era a solução
perfeita para construir a volta do Grandel uma bolha de ar e protegê-lo de
todas as deceções do mundo.

De início, o Grandel não gostou muito da ideia de ter um peixe. Ele não dizia
com os olhos as coisas que o Bardel dizia, não brincava, não saltava de um
lado para o outro, enfim, não era o Balder.
Os pais tentaram o animar, dizendo que o Balder ficaria muito feliz se ele
cuidasse dele. E dessa vez, ele acreditou. Porque o Balder r tinha bom
coração e gostaria da ideia de ter mais um amigo.

Ele decidiu que o levaria para todos os lugares, o protegeria de todo mal e
que nada o roubaria como fizeram com o seu único e e verdadeiro amigo.

Grandel tinha declarado a dor sua inimiga...

A Menina que colecionava Penas (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora