Asas perdidas (parte IV)

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*

Se os anjos existem com amor, eles desaparecem com a falta dele. No final
das contas, talvez seja tudo uma questão de amor.

O Grandel circulava pelos corredores do super mercado com um ar suspeito de quem estava prestes a cometer um delito. Por meros segundos olhou a sua volta e a maioria das pessoas possuíam uma lista do qual desejavam completar para que saíssem satisfeitas.

E ele? Não tinha completado a sua? Não deveria estar também satisfeito?

A verdade é que a Humanidade terá que decidir entre impor a sua lista de vida ideal ou apenas deixar que as pessoas sejam felizes. Porque definitivamente não está dando para fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

Procurou nas prateleiras os remédios mais forte que poderia haver, bem como lâminas ou qualquer outra coisa que lhe permitiria se defender.

Nesse momento, as minhas penas começavam a cair uma a uma e não
tardaria, teria que tomar a decisão mais importante na vida de um anjo.

Agora sei que o rapaz de asas não me deixou-as, mas sim, fui eu que o deixei
e nem sequer dei-me conta.

Ao chegar em casa, a sua espera estavam os seus pais preocupados com os perigos que estariam lá fora a  espreita. Mal sabiam que o perigo estava bem mais próximo, vivia constantemente em sua mente.

Limitou-se a dizer que estava tudo bem. Não esperava que entendessem agora o que jamais puderam enxergar ou procuraram se importar ao longo
das suas vidas.

Era mais fácil dizê-lo do que explicar as coisas que não têm o mínimo significado aos olhos dos outros. Porque iriam apenas dizer para deixar mais uma vez a dor para trás e seguir em frente.

Mas onde vende essa varinha magica que todos parecem ter menos eu?
Pensou o Grandel.

E num piscar de olhos, a dor tinha assumido o rosto dos seus pais como tinha feito momentos antes com a Ellen.

Nunca a deixaria em paz, ele imaginou.
Acabou por se retirar e foi para seu quarto. E o único lugar onde ele achava ainda ser seguro, já não era. Porque ao olhar-se no espelho, a dor tinha agora suas feições. Ele mesmo se transformou no que ele mais odiava.

Queria o bater, como ele fez anos atrás no rosto do miúdo que o tinha trazido de volta. Mas na verdade, nunca tinha partido, estava lá desde a primeira vez que o vento gelado do inverno soprou em sua vida.

Com as lâminas, o Grandel se feriu com o objetivo de magoá-la como ela fez à ele, enfrentando uma disputa de quem magoaria mais. Mas ele não entendia que magoava apenas a si e que jamais poderia vencê-la dessa forma. Porque apenas ela se tornava maior e mais vazia em sua mente, um verdadeiro gigante sem rosto.

Agora entendem o porquê de eu o chamar assim?
Primeiro, ele usa o rosto de todos a sua volta para te isolar, até de ti mesmo, para que depois possa-te restar apenas uma tristeza profunda, que o torna cada vez invencível. Porque a dor descobriu que a humanidade não só tem  uma enorme dificuldade em admitir os erros que cometemos aos outros,
mas também de acreditar no que não pode ser visto e tocado.

Por isso, para que ela pudesse ser vista e ouvida por todos, a cada dia ele escolhe uma vítima entre aqueles que não souberem regar a tristeza com as suas lágrimas para que amanhã pudesse florir.

Porém, o Grandel não foi a única vítima como agora sei que eu não fui.
Os país também foram quando desejaram protegê-lo das deceções do Mundo e proporcionar apenas o quê de melhor poderia ter para o oferecer.
Entretanto, não poderiam o fazer para sempre e quando o Grandel teve que
caminhar sozinho essas mesmas coisas não se tornaram obstáculos para a dor e muito menos preencheu o seu vazio que sentiu por não ter razões para prosseguir quando foi diagnosticado com ansiedade e depressão.

O miúdo que o tirou o Pequeno Hope foi, quando ele quis dar-lhe a mesma
dor que alguém já tinha depositado nele, tornando-se assim mais um dos
soldados involuntários do Gigante sem rosto.

A Ellen foi, quando carregou o peso da perfeição que o Mundo esperava
que ela tivesse, que fez com que ela desaparecesse dia após dia até a sua
morte. Deixou apenas um bilhete que dizia que "A perfeição é uma merda viciante que faz-nos matar a nós mesmo ".
Jamais o bilhete foi publicado e muito menos o motivo da sua morte.
Inventaram uma história qualquer que mantivesse viva para sempre a sua
imagem exemplar.

E por fim, a vida a quem foi dado a difícil missão de apresentar à todos a dor, fazendo com que todos nós travássemos uma batalha, umas mais silenciosas do que outras.


*


O Grandes decidiu que chegou a hora de partir. Poderia tê-lo feito com os remédios ou com as lâminas, mas temia que alguém pudesse de alguma forma salvar o seu corpo. Porque a sua alma já se encontrava em algum  lugar onde nem ele mesmo sabia aonde o encontrar. Talvez seja em um dos
mundos dos seus jogos onde não exista dor e nem esse gigante sem rosto que agora o perseguia para aonde quer que ele fosse.

E agora chegou o momento de tomar a decisão mais difícil que um anjo pode ter. Escolher entre se revelar e acolher o seu humano em suas asas apenas uma única vez ou ter o direito a um único pedido para salvar sua existência antes que a última pena caía com o ultimo suspiro seu.

Todos os anjos escolhem a primeira opção por maior que seja a certeza de que ele se deixará vencer pela pelo desespero, medo e a incapacidade de acreditar. Porque somos frutos do amor e tal nos faz ser cegos ao ponto de confiar quando não há motivos para fazê-lo.

Entretanto, eu não sou um anjo qualquer. Sou um que provou dos sentimentos maus que um humano por ter. E sei que só poderei salvar seu corpo, mas a sua mente só ele pode fazê-lo como só eu poderia ter feito.

Não consigo olhá-lo nos olhos para dizer o que viria a seguir, mesmo que a minha voz seja um grito no vazio.

-Grandel...-disse baixinho como se a voz me faltasse. - Não posso fazer isso por ti! - confessei por fim , anunciando a minha decisão . - Espero um dia poder te ver onde quer que vás...

Não obtive resposta, afinal ele não pode me ouvir desde que perdera as
suas asas da infância. Apenas vejo o carro partir com o fracasso e o soldado A do seu lado, o guiando até o gigante sem rosto que vai o entregar para morte enquanto me preparo para realizar meu último desejo.

A Menina que colecionava Penas (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora