As penas Deixadas

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Penas são algo flutuante e delicado como a vida!
Se vires algumas por aí, guarda-as para mim antes que o Gigante sem rosto
as veja.
Afinal, ele já me tomou uma, deixando-me apenas a sensação de ter pesos
nos pés e nos ombros que parecem carregar o mundo, quando apenas
suportam o peso dos meus pensamentos.

A minha mente tornou-se seu refém e permanece invencível perante a tudo
o que pudesse-me resgatar. Porque tudo parece ser boias de salva vidas
que chegam furadas e me deixam afogar cada vez mais. Talvez pedi socorro
um pouco tarde ou talvez nem pedi. Não que eu quisesse-me esconder,
apenas achei que as ondas iriam se abaixar e tudo ficaria bem, mas não
ficou.

Esperei que todas as coisas que me venderam com o nome da felicidade em
um comercial qualquer erguessem-se como soldados e derrotassem o
gigante sem rosto que vem revestido de tristeza, medo, incapacidade de
tentar e acreditar. Agora, o que pareciam vitórias são apenas ruinas.

Exceto meu pote de penas!

Porque elas parecem vir de algum lugar onde não existirá gigante sem rosto
e nem frases vazias de pessoas que sempre souberem o meu nome, mas
nunca quem fui.

Elas são me deixadas por todo o lado. Primeiro, foi ao sair de casa; a seguir
no estacionamento; e quando parei de sair, vieram até mim como uma
esperança que não consigo enxergar.

Me desculpem, tenho os olhos vendados pelo cansaço sem nome, mas
talvez ainda eu possa dar o pouco que me resta.

Ultimamente, percorri as ruas e os lugares da cidade em busca delas,
quando já não restava-me nenhum motivo para fazê-lo. Por isso, toda gente
acha que já estou bem, mas não é tão fácil como ligar ou não um
interruptor. Só o faço, porque talvez elas sejam um caminho, o único
caminho. E mil parece ser um número de sorte, tal como a lenda do pássaro
japonês Tsuru.

Será que se eu chegasse a tantas, ele conceder-me-ia um desejo para além
de a vida voltar para mim? Afinal ele tem mil anos dela e eu só tenho as
penas como a minha única esperança.


*

Com um simples toque o motor faz silêncio e sinto o meu coração bater tão
forte. É apenas ansiedade. Mais um soldado do gigante sem rosto para me
vigiar e conferir que estou sob o seu controle. Eu o chamo de Soldado A.

O ar do Parque bate contra meu rosto assim que eu saio do carro,
recarregando o ar dos meus pulmões que me foi tirado por ele.
O Soldado A pode ser um carcereiro muito cruel, mas só aqueles que já
foram seus prisioneiros poderão entender-me.

Meus passos soam como os ponteiros de uma bomba relógio. Já são 998!
Só faltam duas. O pote de penas vem muito bem escondido dentro do bolso
interno do casaco, como um tesouro. Tenho medo que o soldado A me faça
desistir.

Ele sempre faz isso quando estamos prestes a fazer algo grande. Talvez
dessa vez ele não se importe. Sabe que já estou caminhando em direção a
forca e como condenado ainda me resta um último pedido.

O Parque esta deserto como é habitual quando o outono ameaça chegar. É
engraçado como escondemos sempre das coisas que consideramos
indesejáveis, como se isso faria a vida abdicar-se delas. Lanço um olhar
rapidamente a volta, mas não há coisa alguma para além de folhas secas.
Nada de penas!
Continuo caminhando, agora passando pela ponte, tal como muitas que as
pessoas usaram para “se matar”.

Iludidos! Não tentavam se matar, apenas se libertar. Mas, o peso do
gigante sem rosto os levou para baixo num buraco sem fim...

*

-Papai olha!

E o pássaro voo mais alto, se abrindo num imenso céu azul, tão imenso
como o mundo.

-Um dia voarás tão alto como ele, querida!

Mas Pai, esqueceste de me ensinar que eles podiam quebrar as asas e que
nesse imenso céu azul havia tempestades. Esperaste sempre o melhor de
mim, como dizer agora que falhei?
culpa não é tua, o Mundo nos ensina tanto a amar o sucesso que jamais
poderíamos olhar o fracasso com bons olhos. Agora ele é meu amigo! Ocupa
o assento ao meu lado e todos os lugares onde estou…


Já passaram trinta minutos desde que aqui cheguei. Parece que a esperança
me abandonou, ou ela está apenas atrasada.

Infelizmente, a Morte é
impaciente, nem parece que possui toda a eternidade. O vento faz os ramos
agitar tão forte que não sei se gritam por piedade ou apenas estão eufóricos
pelo show que vai começar.

O gigante sem rosto inicia por dizer todos os meus crimes.

Que engraçado! Não consigo me lembrar onde me perdi para ter chegado
até aqui. No final das contas, o meu único crime foi ser humano. Porém,
pode ser mais complicado do que se possa imaginar.

Coloco o primeiro pé do lado de fora, e pela primeira vez em muito tempo,
o soldado A não me reprende. Logo isso não pode ser algo grande. Mas,
estão prontos para me empurrar no caso de eu fracassar e não desejo
fracassar até na morte.

Então coloco o outro pé e esse é o momento que
me é dado o direito de pronunciar as minhas últimas palavras.
Tento olhar para a plateia, porém estou sufocada demais para enxergar
para além da Morte a minha frente. Ela parece tão reconfortante, tão amiga
me aguardando, apesar de eu ser apenas um poço de fracassos, um pássaro
de asas quebradas.

Ninguém poderá culpar-me por ter abandonado a esperança. Ninguém!
Porque ela irá dentro do pote de penas junto ao meu coração...

A Menina que colecionava Penas (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora