São vastos e belos os nossos campos; porque inundados pelas tor-
rentes do inverno semelham o oceano em bonançosa calma – branco lençol
de espuma, que não ergue marulhadas ondas, nem brame irado, ameaçando
insano quebrar os limites que lhe marcou a onipotente mão do rei da criação.
Enrugada ligeiramente a superfície pelo manso correr da viração, frisadas as
águas, aqui e ali, pelo volver rápido e fugitivo dos peixinhos, que mudamente
se afagam, e que depois desaparecem para de novo voltarem – os campos são
qual vasto deserto, majestoso e grande como o espaço, sublime como o infinito.
E a sua beleza é amena e doce, e o exíguo esquife, que vai cortando as
suas águas hibernais mansas e quedas, e o homem, que sem custo o guia,
e que sente vaga sensação de melancólico enlevo, desprende com mavioso
acento um canto de harmoniosa saudade, despertado pela grandeza dessas
águas, que sulca.
E às águas, e a esses vastíssimos campos que o homem oferece seus
cânticos de amor? Não por certo. Esses hinos, cujos acentos perdem-se no
espaço, são como notas duma harpa eólia, arrancadas pelo roçar da brisa ou
como sussurrar da folhagem em mata espessa. Esses carmes de amor e de
saudade o homem os oferece a Deus.
Depois, mudou-se já a estação; as chuvas desapareceram, e aquele mar,
que viste, desapareceu com elas, voltou às nuvens formando as chuvas do
seguinte inverno, e o leito, que outrora fora seu, transformou-se em verde
e úmido tapete, matizado pelas brilhantes e lindas flores tropicais, cuja fragrância arrouba e só tem por apreciador algum desgarrado viajor, e por
afago a brisa que vem conversar com elas no cair da tarde – à hora derra-
deira do seu triste viver.
E altivas erguem-se milhares de carnaubeiras, que balançadas pelo
soprar do vento recurvam seus leques em brandas ondulações.
Expande-se-nos o coração quando calcamos sob os pés a erva reverde-
cida, onde gota a gota o orvalho chora no correr da noite esse choro algente,
que se pendura da folhinha trêmula, como a lágrima de uma virgem sedutora,
e que, arrancada do coração pelo primeiro gemer da saudade, se balança nos
longos cílios. Depois vem a ardentia do sol, e bebe o pranto noturno, e murcha
a flor, que enfeitiçava a relva, porque o astro que rege o dia reassumiu toda a
sua soberania; mas ainda assim os campos são belos e majestosos!
E desce depois o crepúsculo, e logo após a noite bela, e voluptuosa
recamada de estrelas; ou prateada pela lua vagarosa e plácida, que lhe bran-
queia o tapete de relva, derramando suave claridade pelos leques recur-
vados dos palmares. Então um vago sentimento de amor, e de uma ventura,
que muito longe lobrigamos, arrouba-nos a alma de celestes eflúvios, e doce
esperança enche-nos o coração, outrora mirrado e frio pela descrença, ou
pelo ceticismo.
Quem haverá aí que se não sinta transportado ao lançar a vista por
esses vastos páramos ao alvorecer do dia, ou ao arrebol da tarde, e não se
deixe levar por um deleitoso cismar, como o que escuta o gemer da onda
sobre areais de prata, ou o canto matutino de uma ave melodiosa!... A vista
expande-se e deleita-se, e o coração volve-se a Deus, e curva-se em respei-
tosa veneração, porque aí está Ele.
O campo, o mar, a abóbada celeste ensinam a adorar o supremo Autor
da natureza e a bendizer-lhe a mão; porque é generosa, sábia e previdente.
Eu amo a solidão; porque a voz do Senhor aí impera; porque aí despe-
-se-nos o coração do orgulho da sociedade, que o embota, que o apodrece, e
livre dessa vergonhosa cadeia, volve a Deus e o busca – e o encontra; porque
com o dom da ubiquidade Ele aí está!
Entretanto, em uma risonha manhã de agosto, em que a natureza era
toda galas, em que as flores eram mais belas, em que a vida era mais sedu-
tora – porque toda respirava amor –, em que a erva era mais viçosa e rociada,
em que as carnaubeiras, outras tantas atalaias ali dispostas pela natureza, mais altivas, e mais belas se ostentavam, em que o axixá, com seus frutos
imitando purpúreas estrelas, esmaltava a paisagem, um jovem cavaleiro
melancólico, e como que exausto de vontade, atravessando porção de um
majestoso campo, que se dilata nas planuras de uma das nossas melhores e
mais ricas províncias do Norte, deixava-se levar ao través dele por um alvo
e indolente ginete. Longo devia ser o espaço que havia percorrido; porque o
pobre animal, desalentado, mal cadenciava os pesados passos.
Abstrato, ou como que mergulhado em penosa e profunda meditação,
o cavaleiro prosseguia sem notar a extrema prostração do animal ou então
fazia semblante de a não reparar; porque lhe não excitava os nobres estí-
mulos. Dir-se-ia ter já concluído sua longa jornada.
Mas quem sabe?!... Talvez uma ideia única, uma recordação pungente,
funda, amarga como a desesperação de um amor traído, lhe absorvesse
nessa hora todos os pensamentos. Talvez. Porque não havia o menor sinal
de que observasse o espetáculo que o circundava.
Que intensa agonia, ou que dor íntima que lhe iria lá pelos abismos da
alma?! Só Deus sabe!
Prosseguia em tanto a marcha, e sempre abstrato, sempre vagaroso.
Curvada a fronte sobre o peito, o mancebo meditava profundamente, e
grande, e poderoso devia ser o objeto de seu aturado meditar. Arfava-lhe
o peito sobre o qual descansava essa fronte acabrunhada, que parecia tão
nobre e altiva? Quem o poderia dizer ao certo?
O mancebo ocultava parte de suas formas num amplo capote de lã, cujas
dobras apenas descobriam-lhe as mãos cuidadosamente calçadas com luvas
de camurça. Numa destas mãos o jovem cavaleiro reclinara a face pálida e
melancólica, com a outra frouxamente tomava as rédeas ao seu ginete. Mas
este simples traje, este como que abandono de si próprio, não podia arredar
do desconhecido certo ar de perfeita distinção que bem dava a conhecer que
era ele pessoa da alta sociedade.
De repente o cavalo, baldo de vigor, em uma das cavidades onde o ter-
reno se acidentava mais, mal podendo conter-se pelo langor dos seus lassos
membros, distendeu as pernas, dilatou o pescoço, e dando uma volta sobre
si, caiu redondamente. O choque era demais violento para não despertar o
meditabundo viajor: quis ainda evitar a queda, mas era tarde, e de envolta
com o animal rolou no chão. Houvera mais que descuido no incerto e indolente viajar desse singular
desconhecido: não previa ele um acontecimento fatal nessa divagação de
tanto abandono, de tão grande desleixo? E malgrado o langor do cavalo,
sempre a prosseguir, cada vez mais submerso em seu melancólico cismar!
Caiu, e de um jato perdeu o sentimento da própria vida; porque a queda lhe
ofendeu o crânio e, aturdido e maltratado, desmaiou completamente. Para
mais desastre, o pobre animal, no último arranco do existir, distendendo as
pernas, foi comprimir acerbadamente o pé direito do mancebo, que inerte e
imóvel, como se fora frio cadáver, nenhuma resistência lhe opôs.
Era apenas o alvorecer do dia, ainda as aves entoavam seus meigos
cantos de arrebatadora melodia, ainda a viração era tênue e mansa, ainda a
flor desabrochada apenas não sentira a tépida e vivificadora ação do astro do
dia, que sempre amante, mas sempre ingrato, desdenhoso e cruel afaga-a,
bebe-lhe o perfume, e depois deixa-a murchar, a desfolhar-se, sem ao menos
dar-lhe uma lágrima de saudade! Oh! O sol é como o homem maligno e per-
verso, que bafeja com hálito impuro a donzela desvalida, e foge, e deixa-a
entregue à vergonha, à desesperação, à morte! E depois, ri-se e busca outra,
e mais outra vítima!
A donzela e a flor choram em silêncio, e o seu choro ninguém
compreende!
Era apenas o alvorecer do dia, dissemos nós, e esse dia era belo como
soem ser os do nosso clima equatorial onde a luz se derrama a flux – bri-
lhante, pura e intensa.
Vastos currais de gado por ali havia; mas tão desertos a essa hora
matutina, que nenhuma esperança havia de que alguém socorresse o
jovem cavaleiro, que acabava de desmaiar. E o sol já mais brilhante, e mais
ardente e abrasador, subia pressuroso a eterna escadaria do seu trono de
luz, e dardejava seus raios sobre o infeliz mancebo!
Nesse comenos alguém despontou longe, como se fora um ponto negro
no extremo horizonte. Esse alguém, que pouco e pouco avultava, era um
homem, e mais tarde suas formas já melhor se distinguiam. Trazia ele um
quer que era que de longe mal se conhecia e que, descansando sobre um
dos ombros, obrigava-o a reclinar a cabeça para o lado oposto. Todavia essa
carga era bastante leve – um cântaro ou uma bilha; o homem ia sem dúvida
em demanda de alguma fonte. Caminhava com cuidado, e parecia bastante familiarizado com o lugar
cheio de barrocais, e ainda mais com o calor do dia em pino, porque cami-
nhava tranquilo.
E mais e mais se aproximava ele do cavaleiro desmaiado; porque seus
passos para ali se dirigiam, como se a Providência os guiasse. Ao endireitar-se
para um bosque à cata sem dúvida da fonte que procurava, seus olhos se
fixaram sobre aquele triste espetáculo.
— Deus meu! – exclamou correndo para o desconhecido.
E ao coração tocou-lhe piedoso interesse, vendo esse homem lançado
por terra, tinto em seu próprio sangue, e ainda oprimido pelo animal já
morto. E ao aproximar-se contemplou em silêncio o rosto desfigurado do
mancebo; curvou-se e pôs-lhe a mão sobre o peito, e sentiu lá no fundo
frouxas e espaçadas pulsações, e assomou-lhe ao rosto riso fagueiro de
completo enlevo; da mais íntima satisfação. O mancebo respirava ainda.
— Que ventura! – então disse ele, erguendo as mãos ao céu – que ven-
tura, podê-lo salvar!
O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia
contar vinte e cinco anos, e que na franca expressão de sua fisionomia dei-
xava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue afri-
cano fervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão;
e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e
a servidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava, porque
se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco!...
Ele entanto resignava-se; e se uma lágrima a desesperação lhe arran-
cava, escondia-a no fundo da sua miséria.
Assim é que o triste escravo arrasta a vida de desgostos e de martírios,
sem esperança e sem gozos!
Oh! Esperança! Só a tem os desgraçados no refúgio que a todos oferece
a sepultura!... Gozos!... Só na eternidade os anteveem eles!
Coitado do escravo! Nem o direito de arrancar do imo peito um quei-
xume de amargurada dor!...
Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima
– ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão
repreensível injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no
seu país... Àquele que é seu irmão? E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrute-
cera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no
coração, permaneciam intactos e puros como a sua alma. Era infeliz, mas
era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa
cena, que se lhe ofereceu à vista.
Reunindo todas as suas forças, o jovem escravo arrancou de sob o pé
ulcerado do desconhecido o cavalo morto, e deixando-o por um momento,
correu à fonte para onde uma hora antes se dirigia, encheu o cântaro, e com
extrema velocidade voltou para junto do enfermo, que com desvelado inte-
resse procurou reanimar. Banhou-lhe a fronte com água fresca, depois de ter
com piedosa bondade colocado-lhe a cabeça sobre seus joelhos. Só Deus
testemunhava aquela cena tocante e admirável, tão cheia de unção e de
caridoso desvelo! E ele continuava a sua obra de piedade, esperando ansioso
a ressurreição do desconhecido, que tanto o interessava.
Finalmente seu coração pulsou de íntima satisfação; porque o mancebo,
pouco e pouco revocando a vida, abriu os olhos lânguidos pela dor, e os fitou
nele, como que estupefato e surpreso do que via.
Deixou fugir um breve suspiro, que talvez a pesar seu se lhe destacasse
do coração, e sem proferir uma palavra de novo cerrou os olhos.
Talvez a extrema claridade do dia os afetasse; ou ele supusesse mórbida
visão o que era realidade.
Entretanto o negro redobrava de cuidados, de novo aflito pela mudez
do seu doente. E o dia crescia mais, e o sol, requeimando a erva do campo,
abrasava as faces pálidas do jovem cavaleiro, que soltando um outro gemido
mais prolongado e mais doído, de novo abriu os olhos.
Tentou então erguer-se como envergonhado de uma fraqueza a que
irremissivelmente qualquer cedera; porém desalentado e amortecido foi cair
nos braços do compassivo escravo, única testemunha de tão longas dores e
desmaios, e que em silêncio o observava. Mas esta segunda síncope, menos
prolongada que a primeira, não afligiu tanto ao mísero rapaz, que dedicada-
mente o reanimava. A febre começou a tingir de rubor aquela fronte pálida,
dando vida fictícia a uns olhos, que um momento antes pareciam descair
para o túmulo.
— Quem és? – perguntou o mancebo ao escravo apenas saído do seu
letargo. – Por que assim mostras interessar-te por mim?... — Senhor! – balbuciou o negro – vosso estado... Eu – continuou, com o
acanhamento que a escravidão gerava – suposto nenhum serviço vos possa
prestar, todavia quisera poder ser-vos útil. Perdoai-me!...
— Eu? – atalhou o cavaleiro com efusão de reconhecimento – Eu
perdoar-te! Pudera todos os corações assemelharem-se ao teu. E fitando-o,
apesar da perturbação do seu cérebro, sentiu pelo jovem negro interesse
igual talvez ao que este sentia por ele. Então nesse breve cambiar de vistas,
como que essas duas almas mutuamente se falharam, exprimindo uma o
pensamento apenas vago que na outra errava.
Entretanto o pobre negro, fiel ao humilde hábito do escravo, com os
braços cruzados sobre o peito, descaía agora a vista para a terra, aguardando
tímido uma nova interrogação.
Apesar da febre, que despontava, o cavaleiro começava a coordenar
suas ideias, e as expressões do escravo, e os serviços que lhe prestara,
tocaram-lhe o mais fundo do coração. É que em seu coração ardiam sen-
timentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem
negro: por isso, num transporte de íntima e generosa gratidão, o mancebo,
arrancando a luva que lhe calçava a destra, estendeu a mão ao homem que o
salvara. Mas este, confundido e perplexo, religiosamente ajoelhando, tomou
respeitoso e reconhecido essa alva mão, que o mais elevado requinte de
delicadeza lhe oferecia, e com humildade tocante extasiado beijou-a.
Esse beijo selou para sempre a mútua amizade que em seus peitos sen-
tiam eles nascer e vigorar. As almas generosas são sempre irmãs.
— Não foste por ventura o meu salvador? – perguntou o cavaleiro com
acento reconhecido, retirando dos lábios do negro a mão, e malgrado a
visível turbação deste apertando-lhe com transporte a mão grosseira; mas
onde descobria, com satisfação, lealdade e pureza.
— Meu amigo, – continuou – podes acreditar no meu reconhecimento
e na minha amizade. Quem quer que sejas, eu a prometo: sou para ti um
desconhecido; e inda assim foste generoso e desinteressado. Arrancando-me
à morte tens desempenhado a mais nobre missão de que o homem está
incumbido por Deus – a fraternidade. Continua, agora peço-te em nome da
amizade que te consagro, continua a tua obra de generosidade; porque sinto
que tenho febre, e não me posso erguer. Arreda-me destes lugares se te
é possível; porque... – e a voz, que era fraca, expirou nos lábios; porque ligeira vertigem precursora talvez de um mais prolongado sofrer de novo lhe
ofuscou a vista, e as faculdades se lhe afracaram.
A febre tornara-se ardente, e o mancebo exigia mais sérios cuidados.
O negro bem o compreendeu, e esperou ansioso que o mancebo vol-
tasse a si para falar-lhe, e aproveitando um momento em que por um pouco
se reanimara, disse-lhe: — Meu senhor, permiti que vos leve à fazenda que
ali vedes – e apontava para a outra extremidade do campo –, ali habita com
sua filha única a pobre senhora Luísa B., de quem talvez não ignoreis a triste
vida. Essa infeliz paralítica todo o bem que vos poderá prestar limitar-se-á a
uma franca e generosa hospitalidade; mas aí está sua filha, que é um anjo de
beleza e de candura, e os desvelos, que infelizmente vos não posso prestar,
dar-vo-los-á ela com singular bondade.
Imerso entanto em novo cismar, o mancebo parecia nada ouvir do que
lhe dizia o jovem negro, deixando-se conduzir por ele, que como se fora leve
carga o levava sobre seus ombros nus e musculosos.
Foi um momento de meditação, a febre, a dor, e o movimento arrancaram-no
a ela, e soltando um frouxo suspiro perguntou ao seu condutor:
— Como te chamas, generoso amigo? Qual é a tua condição?
— Eu, meu senhor – tornou-lhe o escravo, redobrando suas forças para
não mostrar cansaço – chamo-me Túlio.
— Túlio! – repetiu o cavaleiro, e de novo interrogou:
— A tua condição, Túlio?
Então o pobre e generoso rapaz, engolindo um suspiro magoado, res-
pondeu com amargura, malgrado seu, mal disfarçada:
— A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou –
não me chameis amigo. Calculastes já, sondastes vós a distância que nos separa?
Ah! O escravo é tão infeliz!... Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que...
— Cala-te, oh! Pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio – interrompeu o jovem
cavaleiro – dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos.
Túlio, meu amigo, eu avalio a grandeza de dores sem lenitivo que te bor-
bulha na alma, compreendo tua amargura, e amaldiçoo em teu nome ao
primeiro homem que escravizou a seu semelhante. Sim – prosseguiu – tens
razão; o branco desdenhou a generosidade do negro, e cuspiu sobre a pureza
dos seus sentimentos! Sim, acerbo deve ser o seu sofrer, e eles que o não
compreendem! Mas, Túlio, espera; porque Deus não desdenha aquele que ama ao seu próximo... E eu te auguro um melhor futuro. E te dedicaste por
mim! Oh! Quanto me hás penhorado! Se eu te pudera compensar generosa-
mente... Túlio – acrescentou após breve pausa – oh dize, dize, meu amigo,
o que de mim exiges; porque toda a recompensa será mesquinha para
tamanho serviço.
— Ah! Meu senhor – exclamou o escravo enternecido – como sois bom!
Continuai, eu vo-lo suplico, em nome do serviço que vos presto, e a que
tanta importância quereis dar, continuai, pelo céu, a ser generoso e com-
passivo para com todo aquele que, como eu, tiver a desventura de ser vil
e miserável escravo! Costumados como estamos ao rigoroso desprezo dos
brancos, quanto nos será doce vos encontrarmos no meio das nossas dores!
Se todos eles, meu senhor, se assemelhassem a vós, por certo mais suave
nos seria a escravidão.
E o cavaleiro perguntou-lhe:
— Essa é, Túlio, toda a recompensa que exiges?
— Sim, meu senhor. Fizeste-me tão feliz, que nada mais ambiciono; e
rendendo a Deus graças pela minha presente ventura, suplico-lhe que vos
cubra de bênçãos, e que vele sobre vós a sua bondade infinita.
E o negro dizia uma verdade; era o primeiro branco que tão doces pala-
vras lhe havia dirigido; e sua alma, ávida de uma outra alma que a compreen-
desse, transbordava agora de felicidade e de reconhecimento.
Pobre Túlio!
E o mancebo sentia mais e mais crescer-lhe as dores, e as ideias se lhe
barulhavam: entretanto Túlio aproximava-se da casa de sua senhora para
onde conduzia o moço enfermo.
Empregava para isso todas as suas forças, porque conhecia que o moço
sofria cruelmente.
Dentro em pouco sua tarefa concluiu-se. Túlio penetrou, rendido de
cansaço, o lumiar da porta.
Simples e solitária era essa casa implantada sobre um pequeno outeiro,
donde a vista dominava a imensidade dos campos. Um aspecto de nobre singe-
leza apresentava; pouco extensa era, mas coroava-a agradável mirante, orlado
de largas varandas, por onde uma onda de ar tépido divagava rumorejando.
Esplêndida claridade de um sol vivo e animador iluminava as nuas e
brancas paredes dessa plácida morada, e dardejando nas vidraças das janelas, refletia sobre elas as cores cambiantes do ocaso. Aí parecia gozar-se
a vida; – aí ao menos o homem terá um momento de felicidade; porque
longe do buliço enganoso do mundo, com a mente erma de ambições, vive
nas regiões sublimes de um pensar livre e infinito como a amplidão – como
Deus. A existência é serena, mais pura, e mais formosa; – aí despe-se a
vaidade do coração; – aí cessam os mentirosos preconceitos, que o homem
ergueu em seu orgulho – vergonhosos limites contra os quais vão quebrar-se
de encontro os virtuosos transportes do seu coração.
Quanto é o homem egoísta e vão!...
Túlio franqueou a entrada da casa de Luísa B. no momento mesmo em
que o jovem desconhecido, alquebrado pelo muito sofrer de algumas horas,
acabava de cair em completa e profunda letargia.