Violenta, terrível, espantosa tinha sido a crise, e Túlio velava à cabe-
ceira do enfermo. A noite há muito que tinha desdobrado sobre a terra seu
pesado manto de escuridão, animando destarte o profundo silêncio dos bos-
ques, apenas interrompido pelo roçar do vento nos longínquos palmares, ou
pelo gemido triste de sentido noitibó, ou os agoureiros pios do acauã.
O quarto do doente era apenas aclarado por fraca luz, cuja baça claridade
deixava contudo ver-se o rosto do mancebo, afogueado pelo requeimar da
febre: os olhos tinha-nos ele dilatados, e com esse brilho e movimento que
só dão a febre. No entanto estava tranquilo, e um só gemido não se lhe ouvia.
Após um breve instante desse fictício sossego, entrou a tremer-lhe o
lábio superior, ergueu as mãos ambas para o céu, e volvendo-se no leito
murmurou com voz queixosa frases que não foram compreendidas.
— Eu a vi! – exclamou, erguendo a voz, num transporte de satisfação –
Vi-a, era bela como a rosa a desabrochar, e em sua pureza semelhava-se a
açucena cândida e vaporosa! E eu amei-a!... Maldição!... Não... nunca a amei...
E calou-se.
Depois um gemido lhe veio do coração; cobriu os olhos com as mãos
ambas, e repetiu:
— Oh! Não, nunca a amei!...
Seguiram-se palavras entrecortadas, gemidos e gesticulações desorde-
nadas para ao depois cair em inércia.
Era o delírio assustador que se manifestava!...
Túlio observava-o com angústia: as dores do mancebo sentia-as ele no
coração.
A lua ia já alta na azulada abóbada, prateando o cume das árvores, e a
superfície da terra e, apesar disso, Úrsula, a mimosa filha de Luísa B., a flor
daquelas solidões, não adormecera um instante. É que agora esse anjo de
sublime doçura repartia com seu hóspede os diuturnos cuidados que dava
a sua mãe enferma; e assim, duplicadas as suas ocupações, sentia fugir-lhe
nessa noite o sono.
Bela como o primeiro raio de esperança, transpunha ela a essa hora
mágica da noite o lumiar da porta, em cuja câmara debatia-se entre dores e
violenta febre o pobre enfermo.
Era ela tão caridosa... Tão bela... E tanta compaixão lhe inspirava o sofri-
mento alheio, que lágrimas de tristeza e de sincero pesar se lhe escaparam
dos olhos, negros, formosos, e melancólicos. Úrsula, com a timidez da corsa,
vinha desempenhar à cabeceira desse leito de dores os cuidados que exigia
o penoso estado do desconhecido.
Nenhuma exageração havia nesse piedoso desempenho; porque Úrsula
era ingênua e singela em todas as suas ações; e porque esse interesse todo
caridoso, o mancebo não podia avaliá-lo, tendo as faculdades transtornadas
pela moléstia. Este sentimento era pois natural em seu coração, e a donzela
não se envergonhava de o patentear.
— Túlio, – disse ao entrar – como vai ele? Toda a resposta do escravo
foi um suspiro de profundo desânimo.
Úrsula chegou-se ao leito do enfermo, e com timidez, que a sua com-
paixão quase destruía, tocou-lhe as mãos. As suas gelaram de desalento e
de comoção, porque sentiu as do doente ardentes como a lava de um vulcão.
Então, ao contato dessas débeis mãos que tocaram a sua, o cavaleiro
abriu os olhos, a que um delírio febril dava estranha expressão, e fitando a
donzela, num transporte indefinível do mais íntimo sofrer, exclamou com
voz magoada e grave:
— Oh! Pelo céu! Anjo ou mulher! Porque trocaste em absinto a
doçura do meu amor? Amor!... Amei-te eu? Sim, e muito. Mas tu nunca o compreendeste! Louco! Louco que eu fui!... E passando da dor à desespe-
ração, torcia os braços gritando:
— Eu te vi, mulher infame e desdenhosa, fria e impassível como a estátua!
Inexorável como o inferno!... Assassina!... Oh! Eu te amaldiçoo... e ao dia
primeiro do meu amor!... Minha mãe!... Minha pobre mãe!!... – E entrou a
soluçar desesperadamente.
Úrsula e Túlio estavam perplexos; estas palavras sem nexo produziam
em seus corações sensações, suposto que em ambos doídas, mas diversas
em sua natureza.
A Túlio parecia aquele delírio precursor da morte, e a dor da perda de
um amigo, o primeiro talvez que o céu lhe dera, absorvia-lhe todas as facul-
dades, e para tão grande pesar não tinha prantos, não tinha uma só palavra.
Úrsula, pelo contrário, sentia estranho desassossego, um quê, que não sabia
definir a si própria! Uma inquietação mortal, uma desconfiança, e as lágrimas
brotavam-lhe espontâneas do coração.
— Adelaide! – prosseguiu ele após longa pausa – Adelaide!... Este nome
queima-me os beiços; enlouqueço quando penso nela.
— Adelaide!... – repetiu consigo mesma a filha de Luísa B. – Oh! Quem
serás?!...
O que é a natureza humana! O que é o coração da mulher! A Úrsula,
pobre flor do deserto, que importava um nome proferido em delírio?
Essa mulher, essa Adelaide, parecia-lhe que muito interessava ao man-
cebo, que ainda agora lhe vivia no coração malgrado as palavras amargas, ou
entranhadas de desesperação, que lhe caíam dos lábios ao lembrar-se dela.
Essa mulher figurava-se-lhe bela como um anjo, sedutora como uma fada,
maligna como um demônio, e entretanto amada, muito amada; e o seu nome
lhe queimava o coração, como se lá estivesse escrito com letras de fogo.
E há de ele amá-la? – repetia Úrsula a si própria com uma pertinácia,
que a teria admirado, se nisso pudesse atentar. Amor! – prosseguia – o que é
amor? Creio que jamais amarei. Mas Adelaide deve ser muita amada por ele...
mas eu o ouvi amaldiçoá-la!... Por que diz que lhe queima os beiços o seu
nome? Oh! Não é possível, ele já não a ama! E Úrsula, perdida nestes loucos
pensamentos, não atendia ao que em torno de si havia.
O doente tinha adormecido.
Então ela voltou para junto de sua mãe. A pobre senhora, vencida pelo
muito sofrer, tinha também adormecido, e a menina, reclinando-se em uma
cadeira, procurou, mas embalde, conciliar o sono, que nessa noite parecia
obstinado em fugir-lhe.
Em vão deixava cair as pálpebras; em vão tentava arredar os pensa-
mentos do que ouvira, que a mente errava em torno daquele leito, donde
ela se destacara; e o coração dizia-lhe que não estava tranquilo. Entretanto,
pobre Úrsula, julgava que nunca havia de amar!...
Mais tarde um gemido saiu da câmara do doente; o coração doeu-lhe;
porque se tinha esquecido até do remédio do enfermo: levantou-se, pois,
correndo, e o foi levar.
A hora tinha já passado, porém o calmante produziu salutar efeito;
porque ao retirar-se-lhe a colher dos lábios, o cavaleiro, deslizando um fraco
sorriso, estendeu a mão à donzela, e disse-lhe com reconhecimento:
— Ah! Senhora, como sois boa! Quem quer que sejais, aceitai meus sin-
ceros agradecimentos pelo generoso interesse, que mostrais por um infeliz
desconhecido.
— Silêncio, – animou-se ela a dizer, corando muito – não vedes que
tendes febre? Perdoai-me; mas eu não consinto que faleis.
— Oh! – exclamou ele – Tanta bondade me confunde. Deixai ao
menos agradecer-vos; mais tarde submeter-me-ei com gosto as vossas
determinações.
— Agradecer-me? – interrogou Úrsula com voz um pouco comovida –
Que vos hei eu feito que mereça vosso reconhecimento? Pelo céu, nem faleis
nisso; e em seus grandes olhos errou uma lágrima.
Não sei que sentimento a trouxe do coração aos olhos; mas fosse qual
fosse, o que é verdade, é que a lágrima, semelhando uma pérola escapada a
precioso colar, rolou-lhe pelas faces e foi cair sobre a mão do enfermo.
Ela estremeceu involuntariamente, e um rubor subitâneo, que ocultou
com as mãos, lhe assomou às faces.
Mas os olhos do cavaleiro, reavendo seu fulgor febril, não viram essa
lágrima, que lhe teria escaldado a mão, nem esse inocente rubor tão expres-
sivo; porque começara um novo solilóquio.
— Sim – dizia – e não era feliz em possuí-la? Quê! Oh! Foi um só dia...
foi. Mas, minha mãe!... Via-a no sepulcro! E ela era um anjo!... Mataram-na!...
Mataram-na!...
E estendia os braços, e sorria-se como afagando benéfica visão.
— Agora posso viver – disse respirando largamente – sim, agora posso
viver; porque já a não amo: sim, já não amo aquela que traiu cruelmente
minhas loucas esperanças.
— Não vedes? – prosseguiu fitando Úrsula – Como é belo amar-se! Como
se nos expande o coração, como nos transborda a alma de felicidade?!...
E a moça dizia consigo — Meu Deus! Meu Deus, que é o que eu sinto
no coração que me enternece? Deve ser sem dúvida esta forçada vigília,
este lidar de todos os momentos. O estado de minha pobre mãe... a com-
paixão que me inspira este infeliz mancebo, tão próximo talvez da morte!...
Oh! Terrível ideia! A morte! É ele tão jovem... Tão leal, e tão franca é a sua
fisionomia... Meu Deus! Seria bem duro vê-lo morrer! Poupai-o, Senhor. Se
eu pudesse, duplicaria os meus cuidados para salvá-lo! Oh, se eu pudesse!...
O enfermo entrou a sorrir-se; a febre começava a declinar. Ao delírio
violento seguiu-se plácida alucinação – parecia que um mundo de gratas
ilusões, povoado de meigos seres, o afagava; estendia os braços como para
estreitar entes que lhe eram caros e o rosto se lhe expandia suavemente.
Depois sua mão tocou uma mão alva, e trêmula, e gelada: esta mão, que
ele em seu delírio procurou com ardor levar aos lábios, fugiu-lhe medrosa ao
contato desse beijo de fogo.
— Atende-me – exclamou com desalento – não fujas... Tenho a contar-te
uma história bem triste! Oh! Bem triste!...
E estendia as mãos súplices, e já nada encontrava. Túlio contemplava-o
silencioso até que por último exclamou:
— Homem generoso! Único que soubeste compreender a amargura do
escravo!... Tu que não esmagaste com desprezo a quem traz na fronte estam-
pado o ferrete da infâmia! Porque ao africano seu semelhante disse: — És
meu! – Ele curvou a fronte, e humilde, rastejando qual erva, que se calcou
aos pés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que é livre, tem segura
em suas mãos ambas a cadeia, que lhe oprime os pulsos. Cadeia infame e
rigorosa, a que chamam “escravidão”?!... E entretanto este também era livre,
livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo. Ele escuta a nênia plangente de seu pai, escuta a canção sentida que cai dos
lábios de sua mãe, e sente como eles, que é livre; porque a razão lho diz, e a
alma o compreende. Oh! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar!
Nas asas do pensamento o homem remonta-se aos ardentes sertões da
África, vê os areais sem fim da pátria e procura abrigar-se debaixo daquelas
árvores sombrias do oásis, quando o sol requeima e o vento sopra quente e
abrasador: vê a tamareira benéfica junto à fonte, que lhe amacia a garganta
ressequida: vê a cabana onde nascera, e onde livre vivera! Desperta porém
em breve dessa doce ilusão, ou antes sonha que a engolfara, e a realidade
opressora lhe aparece: é escravo e escravo em terra estranha! Fogem-lhe os
areais ardentes, as sombras projetadas pelas árvores, o oásis no deserto, a
fonte e a tamareira. Foge a tranquilidade da choupana, foge a doce ilusão
de um momento, como ilha movediça; porque a alma está encerrada nas
prisões do corpo! Ela chama-o para a realidade, chorando, e o seu choro,
só Deus compreende! Ela não se pode dobrar, nem lhe pesam as cadeias da
escravidão; porque é sempre livre, mas o corpo geme, e ela sofre, e chora;
porque está ligada a ele na vida por laços estreitos e misteriosos.
E Túlio ficou pensativo, e as lágrimas caíram, a seu pesar, fio por fio pela
face a baixo.
Tinha no entanto terminado o delírio ao doente: seguiu-se-lhe extrema
prostração e um suor geral e frio.
Úrsula e Túlio tiveram então uma só ideia, terrível e medonha – a morte!
e estremeceram de dor. O escravo, porque este homem era agora a vida da
sua alma; porque era a imagem de Deus, que lhe sorria. A donzela, por quê?...
Ela própria não o saberia dizer. Mas ambos sentiam iguais temores, aflições
iguais: é então porque ambos o amavam.
E as noites que sucederam a esta eram ainda povoadas de sustos e
ansiedade: o mancebo continuava a sofrer, e seus amigos redobravam de
desvelos, e choravam sobre suas dores.
O cavaleiro via-os, escutava-os, e sentia lá no fundo da alma um
estranho sentir. Úrsula tornara-se para ele a imagem vaporosa e afagadora
de um anjo: e o que se passava naquele coração enfermo só ele o sabia.