XII - Foge!

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— Aproxima-te, minha pobre filha, – exclamou a infeliz mãe com voz
fraca e arrastada – ah! Que desgraçada entrevista!
— Bem mo pressagiara o coração!
E as lágrimas começaram a cair-lhe a dois e dois.
— Baralham-se-me as ideias, minha Úrsula, – tornou-lhe a mãe, em
cujo rosto se pintavam já os indícios da morte – talvez não me compreendas
bem; mas escuta-me. Meu irmão veio abreviar os instantes, que ainda me
restavam para te amar, e proteger-te contra os seus caprichos! Sabes, minha
filha, o que quer esse homem?
E um tremor convulso agitou os membros da desditosa mãe, que ainda
na sua agonia velava pela infeliz órfã.
A filha, a desvelada filha, tomou-a nos braços, uniu-a ao seu coração,
orvalhou-a com as suas lágrimas, e sufocada pela dor lhe bradou:
— Oh! Minha mãe... minha querida mãe, que foi que vos fez esse homem
malvado?
A pobre mulher não pôde retrucar-lhe, fechou os olhos, e parecia que de
todo lhe faltava a vida:
Úrsula gritou, pediu socorro, e ao seu pranto doído só teve por eco o
pranto de Susana!
Luísa tornou a si dessa penosa e prolongada síncope, porque Deus quis
que uma vez ainda ela falasse a sua filha, por isso ela, recobrando um breve
alento, mas já com os olhos amortecidos e vidrados, e com a voz pausada e
abafada, que a custo se lhe deslocava dos lábios, disse:
— Minha filha querida... minha Úrsula, para que te dei essa vida?! Ah tu
que eras o encanto dos meus dias... tu, a alma da minha existência... oh! Meu
Deus! Senhor, dai-me sequer poucos dias mais de vida para protegê-la, para
ampará-la...
E o pranto doloroso embargou-lhe a voz.
— Oh, não choreis, minha mãe, pelo céu – exclamou a pobre moça aflita
por tantas dores. — Oh! Não choreis!
— Se soubesses, minha filha... – ia a dizer a mísera agonizante.
— Tudo sei, minha querida mãe – interrompeu a moça, torcendo as
mãos de desespero. Sei tudo, ele diz que me ama, e que o seu amor ninguém
desdenha impunemente.
— Ouviste-o em quanto me atormentava pela última vez?
— Oh! Não! – tornou Úrsula – esse homem me horrorizou, e eu fugi dele.
— E entretanto sabes que ele quer desposar-te?
— Disse-mo na mata, quando me anunciou seu amor apaixonado. Mas
perdoai-me de vos não ter ainda relatado esse triste acontecimento da minha
vida. Via-vos tão débil, tão desalentada... que me não atrevia a dar-vos esse
golpe. Uma tarde, não há muito, estendi o meu passeio até a mata próxima,
e aí meditando sobre as promessas de...
Úrsula enrubesceu, e a voz sumiu-se-lhe dos lábios.
Depois de leve pausa continuou:
— Esqueci-me das horas, o tempo foi passando, e só ao cair da noite é
que dei fé de mim e tratei de voltar. Nesse comenos, ouvi o estampido de
uma espingarda, e uma pobre perdiz que, ferida, veio como pedir-me socorro.
Acolhia-a ao seio; mas nem bem o havia feito, que dei junto a mim com um
homem, que me fixava com olhos sinistros.
Tomou a donzela algum alento, e só depois de alguns minutos é que
pôde relatar à sua moribunda mãe a sua fatal entrevista. Terminada que foi
a narração acrescentou: — Por último cobrei ânimo e quis fugir-lhe; mas ele
implorou em vosso nome, e eu ouvi-o!
Louca, louca, que eu fui, tinha diante dos olhos o comendador P***, o
perseguidor de minha mãe, e...
— O assassino de teu pai, minha Úrsula – interrompeu Luísa B. com
indefinível amargura.
— Será possível? – exclamou a moça atônita.
— Sim – tornou ela – acaba de confessar-mo num transporte, que diz
de vivo arrependimento.
— Oh! Que horror! – disse Úrsula levando as mãos ao rosto lívido de
pavor.
— E diz que loucamente te adora, e quer compensar-te com o seu nome,
e com a sua fortuna dos males que nos há feito!...
— Que insulto nos faz o comendador – o assassino de meu pai!!
— Silêncio, minha pobre filha! Agora escuta-me: são estas talvez minhas
derradeiras palavras, pesa-as bem. Não chores, não, minha filha, não chores,
se queres ainda ouvir-me por um instante. Bem sei quanto te é penosa esta
dura separação; mas tarde, ou cedo, ela devia chegar, e tu deves resignar-te,
e aproveitar o tempo, que urge.
Frágil, e já sem forças, eu vi Fernando à cabeceira do meu leito como
se fosse anjo do extermínio a falar-me de coisas, que só me poderiam abre-
viar os instantes. Conheci que chegava o termo dos meus dias, ele também
conheceu, e conquanto esta ideia, apesar da dureza do seu coração, lhe fosse
amarga, ele contudo deixou-me à pressa para ir à cidade de *** donde deve
voltar amanhã.
Fernando voltará aqui com um sacerdote, que há de abençoar, em pre-
sença deste leito de agonia, a união forçada da filha de Paulo B. com o seu
assassino!
— Oh! Não...nunca! Nunca! – bradou a donzela fora de si.
— Sim, nunca – replicou a pobre moribunda aproveitando suas últimas
forças; mas um novo desmaio, seguido de violentas convulsões reapareceu,
e seu rosto tornou-se mais esquálido, e as feições mudadas e o suor gelado
da morte mostrou-se.
— Meu Deus! Meu Deus! – exclamou Úrsula no auge da mais pungente
aflição – Oh! vós Senhor, que sois bom e que podeis tanto, restitui-lhe a vida
ainda em troco da minha! E caiu sobre o corpo já meio gelado da infeliz mãe.
Luísa de novo abriu os olhos para dar um último adeus à filha de suas
adorações, e por um esforço derradeiro, disse-lhe:
— Úrsula, minha filha, teme a cólera de Fernando; mas sobretudo teme
e repele seu amor desenfreado e libidinoso.
Meu Deus! Perdoai-me se peco nisto...
Aconselho-te.... que fujas...
Foge... minha ...fi...lha!.. fo...ge!...
Foram suas últimas palavras a custo arrancadas e entrecortadas pela
morte.
Então Úrsula, a pobre órfã, ajoelhou aos pés do leito, e volvendo em
seus braços o corpo inanimado, com seus lábios, trêmulos de dor, tocou os
lábios frios e inertes de sua mãe, tentando, embalde, transmitir ao coração
materno o hálito ardente, que a animava.
Mas quando voltou à realidade, quando teve plena consciência de que
estava só, e entregue ao rigor da sua sorte, quando pôde acreditar que sua
mãe já não existia, então prorrompeu em lágrimas, e estorceu-se pelo chão,
e agitou-se como uma possessa, porque as grandes e profundas dores do
coração só acham alívio na expansão ilimitada da dor, e na fadiga do corpo
e do espírito...
Ao romper do seguinte dia, via-se um cadáver quase sem acompanha-
mento, que ia ser inumado no cemitério de Santa Cruz.
Era o da infeliz paralítica Luísa B.

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