VII - Luísa B.

103 3 1
                                    

O dia ia já alto quando Úrsula entrou no quarto de sua mãe, e esta
admirada de não vê-la logo ao amanhecer, como de costume, começava a
inquietar-se, e por isso estendeu-lhe os braços com transporte de indizível
satisfação, e disse-lhe: — Dormiste hoje muito, minha cara Úrsula, e eu jul-
guei que me tinhas esquecido.
Suposto a voz de Luísa nada tivesse de repreensiva, todavia Úrsula
corou de envergonhada e, ao mesmo tempo, o remorso lhe errou na alma.
— Deus meu! Perdoai-me – disse consigo, e correu com os braços
abertos para abraçar sua carinhosa mãe, que lhe sorriu.
— É verdade, minha mãe, demorei-me muito; mas haveis de desculpar-me.
Achei-me incomodada durante a noite, e foi-me preciso respirar o ar fresco
da manhã para restabelecer as forças.
— Ah, minha filha! – tornou a senhora B., querendo atrair Úrsula aos seus
braços, a qual afetada pelo primeiro remorso, receava algum tanto lançar-se
nos braços maternos – Vem abraçar-me... que tão ansiosa estava por ver-te!
Então a tímida menina, vencendo a sua perturbação, lançou-se com
júbilo no seio de sua mãe, e soluços mal sufocados lhe rebentaram do peito.
Luísa B. mal podia compreendê-la, e olhava-a enternecida. Pouco e
pouco convencida de que o seu penoso estado era a única causa de tão
sentido choro, que outro motivo não podia ela descobrir, procurou serenar a
extremosa filha, chamando sua atenção para outro objeto, e disse-lhe:
— Enxuga, minha Úrsula, as tuas lágrimas, não vês que eu não choro? –
e procurava sorrir-se; mas era um riso amargo; porque o coração não estava
isento de dores.
— Minha filha – continuou afetando tranquilidade – o nosso hóspede
intenta deixar-nos hoje: pediu que me queria ser apresentado, e eu te aguar-
dava para fazer-lhe as honras desta pobre casa.
Úrsula levou o lenço ao rosto por um movimento rápido, Luísa julgou
que ela procurava daí extinguir o vestígio das suas lágrimas; mas a donzela
ocultava o rubor subitâneo, que lhe tingia as faces, ouvindo sua mãe falar
do homem, que lhe ocupava a alma, e por disfarçar a sua comoção disse
distraidamente:
— E o nosso Túlio, que também se vai?!...
— É verdade! – tornou a pobre paralítica – e a nossa casa vai-se tor-
nando cada vez mais isolada e triste!
Úrsula deixou descair os olhos para a terra, e reprimiu magoado suspiro
por amor de sua mãe.
E um profundo silêncio reinou no quarto da doente; porque cada uma
dessas duas mulheres se abandonava a seus pensamentos. Luísa sem dúvida
ocupava-se só do porvir de sua filha; esta pelo contrário recordava as doces
expressões do cavaleiro, seus votos de amor, e sentia pesar por vê-lo partir.
Contudo Úrsula tinha já uma esperança que lhe dava forças para arrostar as
dores da vida: amava, e tinha a convicção de ser amada.
E ela meditava na breve mudança da sua vida, e sentia o coração pal-
pitar com estranho desassossego.
Depois o silêncio foi interrompido pelo anúncio da chegada do mancebo.
— Ei-lo – disse a moça a sua mãe, que se tinha imergido em tristes
reflexões, e não ouvira pronunciar o nome de seu hóspede – e levantou-se
para ir ao seu encontro.
— Úrsula, – exclamou a enferma como quem acordava de um pesado
sono – aonde vais?
A moça compreendeu que sua mãe muito sofria, e com meiguice
chegou-se a ela e disse-lhe:
— É o nosso hóspede, minha mãe.
— Ah! – exclamou então a infeliz senhora, caindo em si – sejais bem-
-vindo, senhor. Esperava por vós. E o mancebo transpunha o liminar da porta.
— Perdoai a frieza desta recepção, – continuou – sou uma pobre para-
lítica; mas a honra, que me fazeis, e que aparentemente mal posso corres-
ponder, ficará gravada profundamente em meu coração. Entrai, senhor.
E Úrsula, trêmula de pejo e de amor, guiava-o para o leito de sua mãe.
O mancebo ressentia-se ainda dos efeitos de uma longa enfermidade;
e o seu rosto conservava mórbida palidez, que nessa hora sobressaía-lhe,
aumentando a gravidade de seu porte, em presença dessa mulher, que
semelhava o próprio sofrimento.
E ele entrou; mas ao aproximar-se do leito de Luísa B., uma comoção de
pesar lhe feriu a alma. É que nesse esqueleto vivo, que a custo meneava os
braços, o mancebo não podia descobrir sem grande custo os restos de uma
penosa existência, que se finava lenta e dolorosamente.
Estremeceu de compaixão ao vê-la; porque em seu rosto estavam
estampados os sofrimentos profundos, pungentes e inexprimíveis da sua
alma. E os lábios lívidos e trêmulos, e a fronte pálida, e descarnada, e os
olhos negros, e alquebrados diziam bem quanta dor, quanto sofrimento lhe
retalhava o peito.
Luísa B. fora bela na sua mocidade, e ainda no fundo da sua enfermi-
dade podiam descobrir-se leves traços de uma passada formosura.
Úrsula herdara as doces feições de sua mãe. Então o mancebo
contemplou-a com religioso respeito, e o que sentiu em presença desse leito
de tão apuradas dores mal poderia dizer.
Semelhava um cadáver a quem o galvanismo emprestara movimento
limitado às extremidades superiores, mirradas e pálidas, e brilho a uns olhos
negros, mas encovados.
Venceu a sua perturbação, e chegando-se à mãe de Úrsula estendeu-lhe a
mão, que ela apertou com efusão, tanto quanto lhe permitiam suas débeis forças.
Essa mão era leal e generosa, e Luísa B. sentiu-se comovida; porque era
a primeira pessoa que a visitava em sua triste morada, e que em face de sua
enfermidade a não desdenhava, nem sentia repugnância da sua miséria e do
seu penoso estado. E por isso disse com reconhecimento que tocou o mancebo.
— O céu vos proteja, senhor; porque sois generoso e bom. E quereis
partir? – acrescentou com benevolência.
— Sim, senhora – tornou-lhe o cavaleiro com voz firme; mas magoada
por aí lhe ficar parte do coração – o dever me chama. Acho-me restabele-
cido, e não devo por mais tempo abusar da vossa bondade. Com desvelo e
carinho, e sem que eu o merecesse tendes me dado um novo existir, venho
pois protestar-vos minha gratidão. Se algum dia – continuou depois de breve
pausa – as vicissitudes da sorte vos obrigarem a recorrer a alguém, esse
alguém seja eu; porque, senhora, jamais me esquecerei da franqueza e da
bondade com que me acolhestes.
— Sim, senhor – redarguiu a enferma – creio em vós; porque sois gene-
roso e bom: o fostes para com Túlio, sê-lo-eis também para comigo: mas...
E olhou para sua filha, que pálida e perturbada como a flor na ardentia
da sesta, descaída a face nas mãos, estava à sua cabeceira, e suspendeu-se.
Luísa B. queria dizer: — eu peço para mim nada mais que a sepultura;
mas se sois cavaleiro, se tendes virtude na alma, protegei essa pobre órfã.
Mas aquele homem era-lhe desconhecido, e a ideia de sua próxima morte ia
despertar em Úrsula sentimentos dolorosos. A pobre mulher calou-se.
— Falai, minha querida senhora – apressou-se o mancebo em dizer,
reparando nessa penosa reticência – falai, não sabeis que nutro satisfação
em escutar-vos?
— Ah! Senhor – exclamou Luísa B. reprimindo amarguradas lágrimas –
sou tão desditosa, que falando de mim, só poderia dizer-vos coisas tão tristes
e fastidiosas, que vos cansaríeis de as ouvir.
— Pelo contrário, – disse o mancebo – grande é o interesse, que me
inspirais: quaisquer que sejam as vossas desditas, e por mais longa que seja
a narração delas, eu as escutarei, e tomarei por elas todo o interesse.
— Sem dúvida, minha pobre Úrsula, tinhas razão quando, tocada pelo
generoso proceder do vosso hóspede, me falavas de suas bondades, e de
seus delicados pensamentos.
Então o mancebo inclinou-se para a donzela em sinal de gratidão, e viu-
-lhe pender dos olhos uma lágrima, que do fundo do coração lhe arrancava
a saudade de tão forçada separação.
Essa lágrima transportou de amor ao jovem adorador da filha do
deserto, e ele desejou bebê-la em um longo e ardente beijo, e seu coração
jurou de novo que aquela mulher angélica seria a doce companheira da sua
peregrinação na terra. E quando ela houver deixado de existir, acrescentava
ele em seu sonhar delicioso, eu a seguirei na campa, e lá numa outra vida,
onde tudo é amor, pureza, e santidade, lá, redobrando de amor e de ternura,
viveremos unidos para sempre.
E a senhora B., notando que seu hóspede estava comovido, e atri-
buindo ao exórdio da sua conversão a comoção do mancebo, apressou-se
em dizer-lhe:
— Perdoai-me, senhor; uma pobre mulher enregelada pela doença, e
pela morte, que se lhe aproxima, deve falar com toda a franqueza, e demais,
a sensibilidade do meu coração ainda existe, e o céu permitiu-me sim-
patizar com as ações nobres, e desinteressadas. Eu amei, senhor, o vosso
procedimento.
— Obrigado! Minha senhora. – murmurou o mancebo inclinando-se.
— Continuai, eu vos escuto.
— Há doze anos – começou Luísa B. suspirando aquele suspiro que vem
do fundo da alma, não para comover a outrem, e captar a sua atenção, ou
a sua bondade; mas aquele suspiro que é o momentâneo, mas triste alívio
de um sofrimento apurado e baldo de toda esperança. – Há doze anos que
arrasto a custo esta penosa existência. Deus conhece o sacrifício, que hei
feito para conservá-la. Parece-vos isto incompreensível? – interrogou ela ao
mancebo, que atento a escutava. – Sou mãe, senhor! Vede minha pobre filha!
É um anjo de doçura e de bondade, e abandoná-la, e deixá-la só sobre este
mundo, que ela mal conhece, é a maior dor de quantas dores hei provado na
vida. Sim, é a maior dor – continuou ela com amargo acento – porque então
perderá o único apoio que ainda lhe resta! Ao menos se meu irmão pudesse
esquecer o seu ódio, e protegê-la!...
— Vosso irmão, senhora? – interrogou o cavaleiro, como admirado de
que um irmão pudesse odiar a sua irmã.
— Sim – tornou ela – meu irmão. Mas, senhor, ele é implacável no ódio,
e nunca o esquecerá.
— Não é possível, senhora. – objetou o cavaleiro – Vosso irmão, quem
quer que seja, não vos pode odiar. O vosso estado, e as desgraças que por
certo tem pesado sobre vós, que ele talvez não ignore, lavarão toda a ofensa,
que por ventura lhe houverdes feito.
— Lavarão, dizeis vós, todas as ofensas que lhe hei feito? Ah! Pudera
assim acontecer! Mas não, eu chamei seu ódio sobre minha cabeça, eu
o conhecia: seu coração só se abriu uma vez, foi para o amor fraterno.
Amou-me, amou-me muito; mas quando tive a infelicidade de incorrer no
seu desagrado, todo esse amor tornou-se em ódio, implacável, terrível e
vingativo. Meu irmão jamais me poderá perdoar.
— Talvez! O tempo...
Luísa B. meneou tristemente os olhos, e interrompeu o cavaleiro:
— Então, senhor, não conheceis o comendador F. de P***!...
— O comendador P***?! – exclamou o moço admirado. – É ele vosso
irmão?...
— Sim, senhor – tornou-lhe a mãe de Úrsula, – e um desvelado irmão
foi ele. Conhecei-lo talvez pela sua reputação de fereza de ânimo; mas
esse homem tão implacável como o vedes, era um terno e carinhoso irmão.
Amou-me na infância com tanto extremo e carinho que o enobreciam aos
olhos de meus pais, que o adoravam, e depois que ambos caíram no sepulcro,
ele continuou sua fraternal ternura para comigo. Mais tarde, um amor irresis-
tível levou-me a desposar um homem, que meu irmão no seu orgulho julgou
inferior a nós pelo nascimento e pela fortuna. Chamava-se Paulo B.
— Ah! Senhor! – continuou a infeliz mulher – Este desgraçado consórcio,
que atraiu tão vivamente sobre os dois esposos a cólera de um irmão ofen-
dido, fez toda a desgraça da minha vida. Paulo B. não soube compreender
a grandeza de meu amor, cumulou-me de desgostos e de aflições domés-
ticas, desrespeitou seus deveres conjugais, e sacrificou minha fortuna em
favor de suas loucas paixões. Não tivera eu uma filha, que jamais de meus
lábios cairia sobre ele uma só queixa! Mas ele me perdoará do fundo do seu
sepulcro; porque sua filha mais tarde foi o objeto de toda a sua ternura, e a dor de fracamente poder reabilitar sua casa em favor dela lhe consumia, e
ocupava o tempo. E ele teria sido bom; sua regeneração tornar-se-ia com-
pleta, se o ferro do assassino lhe não tivesse cortado em meio à existência!
E uma lágrima pendeu dos olhos alquebrados da desditosa viúva.
— Assassinaram vosso marido, senhora? – interrompeu-a o hóspede
horrorizado.
— Assassinaram-no, sim – tornou Luísa B. com voz pausada.
— Oh! Isso é horrível! E sabeis vós quem foi o seu assassino?
— Não, senhor. Ninguém, a não ser eu, sentiu a morte de meu esposo.
A justiça adormeceu sobre o fato, e eu, pobre mulher, chorei a orfandade de
minha filha, que apenas saía do berço, sem uma esperança, sem um arrimo,
e alguns meses depois, veio a paralisia – essa meia morte – roubar-me o
movimento e tirar-me até o gozo ao menos de seguir os primeiros passos
desta menina, que o céu me confiou.
— Oh! – disse o cavaleiro comovido – quantas desgraças! E não tendes
suspeita alguma de quem quer que fosse esse assassino, que a justiça não
procurou punir?
— Não sei. – tornou ela com desânimo — E para que pensar temera-
riamente, quando já me acho tão próxima do meu fim, e tantas culpas para
com aquele que a todos nós há de julgar? Só Deus, senhor, deve conhecer o
culpado e os remorsos tê-lo-ão punido.
Uma tarde, meu esposo deixou-me para ir à cidade de *** donde vol-
taria ao cabo de três dias. Foi embalde que o esperei; porque a sua alma
estava com Deus, e só ao amanhecer do outro dia dois homens compassivos
trouxeram-me o seu cadáver! Ah! que triste recordação!
— E vosso irmão, senhora, não procurou consolar-vos?
— Meu irmão? – tornou ela sorrindo-se dolorosamente — Esse comprou
as dívidas do meu casal, e estabeleceu-se na fazenda de Santa Cruz, outrora
habitação de meus pais, onde eu passei os anos de minha juventude, onde
nascera minha pobre Úrsula.
— Oh! Minha mãe, – exclamou Úrsula com amargura – pelo céu, não
vos aflijais mais falando desse homem que tanto mal vos tem feito.
— Conhecei-lo, senhora? – perguntou-lhe o mancebo sorrindo com ter-
nura para a animar.
— Não. Oh! Que nunca o veja – tornou-lhe a donzela refugiando-se nos
braços de sua mãe.
— Tens razão, minha cara Úrsula, – disse a pobre mãe procurando
ampará-la – grande mal nos tem ele feito.
— Sossegai, minhas queridas senhoras – objetou o mancebo, – acaso
ignorais que de hoje em diante velarei por vós? E o que mais podeis recear
dele? Tem sobejamente saciado seu terrível rancor.
— Tendes razão, senhor – prosseguiu Luísa B. – ele habita as nossas
vizinhanças desde que morreu meu marido, e jamais nos tem incomodado.
— O comendador habita estes arredores? – perguntou o cavaleiro.
— Sim, senhor – a fazenda de Santa Cruz está a meia légua de nós.
— E eu tenho-lhe tanto horror, – disse Úrsula a tremer – que mal posso
suportar a ideia de que estejamos sempre tão próximas dele. Parece-me que
esse homem ainda me há de ser funesto. E algumas lágrimas lhe orvalharam
as faces.
— Pelo céu, minha filha, – disse a mãe angustiada – essas lágrimas me
matam. Não, eu quero ver-te risonha e feliz.
— Sim, feliz! – interrompeu o mancebo tão comovido que tocou o
coração de Luísa B. – Contai comigo, senhora, vossa filha há de ser feliz,
prometo-o sob juramento.
— Vós!... – interrogou a pobre a mãe, sem atinar verdadeiramente com
o sentido destas palavras proferidas com tanto fogo.
E o jovem cavaleiro tornou-lhe:
— Sim, minha senhora, eu; porque amo-a, e como o meu amor não poderá
jamais arrefecer, juro-vos em nome do céu, que nos escuta, que Úrsula será a
mais venturosa de todas as mulheres, se anuirdes aos meus desejos.
Luísa B., reduzida à última miséria, e descobrindo nas maneiras de seu
hóspede os sinais de um nascimento distinto, assim como o esplendor de
uma próspera fortuna, julgou-se vivamente ofendida por aquelas palavras
proferidas com tanto arrebatamento, e que aos seus ouvidos pareceram
insultuosa ofensa; e ressentida, envergonhada, e quase que desesperada,
abandonada já de forças, caiu quase que completamente desmaiada nos
braços de Úrsula, que lhe bradava:
— Minha mãe... Minha mãe!...
E o mancebo arrependeu-se de não se haver exprimido de outra maneira,
e pediu ao céu um momento de vida para aquela infeliz mulher, cuja delica-
deza, involuntariamente ele acabava de ofender, para convencê-la da pureza
dos seus sentimentos.
E Deus o escutou, porque aos esforços da donzela, ao acento de sua voz
meiga e doce a pobre mãe abriu os olhos, e fitando a filha com redobrado
amor lhe disse:
— Oh! Minha Úrsula!... Este homem...
— Puro é o seu amor, minha pobre mãe! – animou-se a dizer a moça,
rubra de pejo – é o esposo que meu coração tem escolhido.
— Ele? – perguntou-lhe angustiada a receosa mãe conchegando-se a si. –
Ele? E sabes tu quem seja?
Então o jovem cavaleiro erguendo-se com dignidade, exclamou:
— Senhora, eu sou Tancredo de ***
— Tancredo de ***! – exclamaram ao mesmo tempo mãe e filha; e depois
um profundo silêncio reinou na câmara.
Então uma viva palidez tingiu as faces avermelhadas da pobre
Úrsula, que na sua ingenuidade nunca tinha indagado do nobre cavaleiro
o seu sobrenome. Sabia de seu nome, que era Tancredo, e esse lhe bastou;
seu nascimento, sua posição social, não lhe lembraram ao menos. Ela amou
o mancebo desconhecido, seu amor era por tanto desinteressado, mas
agora que um nome ilustre lhe soara aos ouvidos, agora que ela aca-
bava de reconhecer no mancebo convalescente seu primo, de distinto
nascimento, sua fronte curvou-se abatida, como a flor que, no arrebol
da manhã ostentando beleza e sedução, vai rastear na terra, quebrada a
haste por furacão violento.
O mancebo, compreendendo então o que se passava na alma dessa
menina tão casta e tão delicada como um anjo, tomou-lhe a mão, dizendo-lhe:
— Úrsula, eu sou incapaz de uma má ação. O mancebo, que junto ao
bosque solitário, depois de consultar o vosso coração, vos jurou amor e fide-
lidade, e que tomou a Deus por testemunha de que seria vosso esposo, está
agora de novo ante vós. Sou o mesmo, Úrsula. Olhai-me.
Então ela levantou os olhos – havia neles amor e confiança.
— Agora, senhora, – continuou o mancebo dirigindo-se a Luísa B. que
apenas ouvia-lhe a voz – agora não me negueis o único bem que ambiciono na vida. Senhora, eu amo a Úrsula, e fora preciso não conhecê-la para sair
desta casa sem levá-la no pensamento e no coração. É Úrsula, senhora, o
anjo dos meus sonhos, é a esperança de minha vida. Viver sem ela ora em
diante fora morrer mil vezes, sem nunca encontrar o descanso da sepultura.
Não ma negueis. Úrsula é a esposa que convém a minha alma, é a esposa que
pede o meu coração. Sereis vós surda à minha súplica?
Entanto Luísa B., mais tranquila por aquelas palavras que francas e leais
lhe pareciam, cobrando ligeira esperança, sem contudo poder vencer sua
comoção, disse com voz fraca:
— Perdoai, senhor, se não tenho bastante confiança em vós. Bem vedes
a que estado me vejo reduzida... e eu nunca aspirei à mão de um homem
como vós para minha filha. Tancredo de ***, quem vos não conhece? Sois
grande, sois rico, sois respeitado; e nós, senhor? Nós que somos?! Ah! Vós
não podeis desejar para vossa esposa a minha pobre Úrsula. Seu pai, senhor,
era um pobre lavrador sem nome, e sem fortuna.
O mancebo sorriu-se, e redarguiu-lhe:
— Então recusai-me a mão de vossa filha?
— Oh! Senhor, – tornou Luísa – minha filha é uma pobre órfã, que só
tem a seu favor a inocência, e a pureza de sua alma.
— Úrsula, – disse o mancebo, voltando-se para a donzela – pelo amor
do céu, fazei conhecer à vossa mãe a lealdade dos meus sentimentos.
Então a desvelada mãe, procurando ler no coração do jovem Tancredo,
e no de sua filha, o sentimento que os animava, e elevando a Deus seu pen-
samento, por alguns segundos guardou silêncio, que ninguém ousou inter-
romper, e depois, erguendo as mãos ambas ao céu, disse:
— Tomo-vos por testemunha, meu Deus, de que as minhas intenções
são puras.
E acenando para os dois jovens, que a escutavam, disse-lhes:
— Aproximai-vos.
Então Úrsula ajoelhou aos pés do leito de sua mãe, e Tancredo, imitando-a,
dobrou também os joelhos, e unidos assim, e cheios de respeito, de amor, e
de veneração, aguardaram um gesto, ou uma palavra dessa mulher, a quem
o amor materno tornava nessa hora tão radiante de celeste beleza.
E depois de uma breve pausa, ela exclamou solenemente: — Meus filhos, eu os abençoo em nome de Deus. Que ele escute a minha
oração, e os vossos dias corram risonhos e tranquilos sobre a terra.
E depois acrescentou: — Bendito seja o Senhor! Minha filha não será
mais uma desditosa órfã!

ÚrsulaOnde histórias criam vida. Descubra agora