— A dor que senti, minha querida Úrsula – prosseguiu o mancebo
com voz magoada – não vos poderei exprimir... Ela calou-me até o fundo
do coração, e eu gemi de angústia por mim, por minhas esperanças assim
cortadas, e por minha mãe desdenhada e aviltada ao último apuro por seu
esposo!...
Corri para ela chorando: esse choro, que eu não sabia reprimir,
arrancava-me o sofrer profundo daquela criatura angélica.
E ela também chorava; mas era um pranto sentido e terno, que contras-
tava com o meu, que era provocado mais pela indignação mal sufocada no
coração, ao passo que o dela era o de uma santa.
— Que humilhação! – exclamei pálido de comoção – Que humilhação,
minha mãe!
— Amo as humilhações, meu filho – disse com brandura, que me tocou
as últimas fibras da alma – o mártir do Calvário sofreu mais por amor de nós.
Meus joelhos vergaram instintivamente ante essa mulher de tão
sublimes virtudes, e eu disse-lhe:
— Ao menos o sacrifício do filho de Deus não foi inútil, minha mãe, e o
vosso?!... Lágrimas e desesperança!...
— Paciência, meu filho, Deus assim o quer!
— Eu tudo ouvi, minha mãe, tudo. – e ajuntando as mãos sobre seus
joelhos, que tremiam de aflição, continuei soluçando – Por amor de mim
quisestes sacrificar-vos!... E reprimindo o pranto continuei – Meu pai...
— Silêncio! – exclamou ela interrompendo-me – Meu filho, não levantes
a voz para acusar aquele que te deu a vida. Adelaide, que estava presente,
pálida e abatida, disse com voz grave e melancólica; porém firme, que reve-
lava dignidade:
— Para que repetirem-se estas cenas de humilhação e de pranto, que
me magoam? Cessem elas, senhora, para sempre.
E voltando-se para mim, com acento breve; mas trêmulo e amargurado,
concluiu: — Tancredo, eu te restituo teus votos.
E depois, com voz mais tocante e mais dolorosa, que me cortou o
coração, prosseguiu:
— Agradeço-te, generoso mancebo, o afeto desinteressado, que animou
teu coração; mas se me é permitido pedir-te ainda um último favor: – Tancredo,
pelo amor do céu não desafies a cólera de teu pai!
— Mulher angélica! – bradei comovido por tão sublime expressão. — Que
me pedes? Posso por ventura esquecer-te? Poderei viver um só dia sem ver-te?
Sem ouvir o harmonioso som da tua voz? Oh! Adelaide... Esse sacrifício fora
demais para mim – nunca o farei!... Deixasses embora de amar-me, que ainda
assim eu te amaria loucamente.
— E eu, – disse ela com amargura; mas tão baixo que só eu lhe ouvi –
triste de mim! amar-te-ei sempre; mas em silêncio – basta que só Deus o saiba.
E um turbilhão de lágrimas borbulharam de seus olhos e sufocaram-na.
— Úrsula... minha Úrsula, – só agora sei que essa mulher mentia, que
suas lágrimas eram encadeadas aleivosias e suas palavras refalsadas como
o seu coração.
Tresloucado, porque essas lágrimas feriam a minha alma, arranquei-me
à triste cena que tão dolorosamente me magoava, e fui procurar meu pai.
Apenas fiz-me anunciar, fui logo introduzido em seus aposentos.
Nesse quarto, onde brilhava o luxo e a opulência, tudo era triste e
sombrio.
Cruzava-o meu pai com passos rápidos e incertos; seus olhos refletiam
o ódio que lhe dominava nesse momento o pensamento. Notei que suas
feições estavam transtornadas, e que baça palidez lhe anuviava o rosto.
Semelhava o leão ferido, que despede chama dos olhos, e eu julguei que ia
prorromper em insensatos brados. Enganei-me.
Apenas viu-me, serenou um pouco, assentou-se, e acenou-me para a
cadeira, que estava ao lado.
Houve então um momento de profundo silêncio, nesse momento, meu
pai observava atento minha fisionomia, que devia estar bastante alterada;
porque eu sofria horrivelmente.
Entretanto, depois de minucioso e aturado exame, deixou errar nos
lábios um sorriso meio animador, e meio escarnecedor, e disse-me com irô-
nico acento que esmagava:
— Por mais que tenha cogitado, não atinei ainda, meu Tancredo, com o
motivo, que te obriga a assim obsequiar-me. Não ousava contar com este favor.
Inclinei-me, e ele prosseguiu:
— Dispunha-me agora mesmo a ir procurar-te; porque tenho notícias de
alta importância para comunicar-te.
— Estou às vossas ordens, meu pai – disse-lhe com sequidão.
— Que reserva! – exclamou mordendo os beiços. — Que reserva,
Tancredo! Que quer isto dizer? Desconheço-te.
— Senhor... – redargui confuso por aquela interpelação que não
esperava.
— Tancredo! – bradou com voz de trovão. — Vens por acaso questionar
comigo? Também tu!... – E sorriu-se com desdém, e depois continuou: — De há
muito que conheço que o amor que me dedicas não excede aos limites que
te impõe a sociedade, e a decência. Bem; nem outra coisa podia esperar:
entretanto para provar-te o meu desvelo, não hei poupado fadigas, nem des-
denhado meios para oferecer-te um lugar distinto entre os homens.
— Meu pai! – disse-lhe com dignidade – Agradeço-vos os desvelos de
que me tendes cercado; mas senhor...
— Cala-te, – interrompeu ele mudando de tom – nada de recriminações.
Podes seguir – continuou – as tuas inclinações, teu pai não te estorvará a
carreira.
E com certo sorriso, meio fagueiro, perguntou-me:
— Poderei saber o que aqui te trouxe?
— Então, não atinastes ainda com o motivo da minha visita? – disse-lhe.
— Pois bem, explicá-lo-ei se o permitirdes.
— Fala. – disse-me friamente.
— Já não podeis ignorar, senhor – comecei – que amo com paixão a
jovem Adelaide, e que é ela digna da minha mão: uma só palavra vossa bas-
tará agora para a minha completa ventura. O vosso consentimento, senhor,
para desposá-la, que o meu reconhecimento será eterno e profundo.
— Deveras? – interrogou, fitando em mim seus olhos com indefinível
altivez, e depois cravando-os no chão, guardou profundo silêncio, que eu não
ousei quebrar; porém mais tarde compondo o rosto avermelhado e severo,
objetou com voz firme; mas pausada, grave, e sem cólera:
— Meu filho, tenho pensado madura e longamente sobre os teus amores
– são uma loucura!
— Loucura! – exclamei com ânsia – Loucura, meu pai? Porque o dizeis?
Porque é ela pobre! Oh! A um tesouro de riquezas é preferível seu coração.
Escutou-me sem alterar-se, e depois perguntou-me pesando cada uma
de suas palavras.
— Sabes tu quem era o pai dessa menina? Não te falarei, – continuou
– de seus cofres vazios de ouro pelo seu péssimo proceder; mas, Tancredo,
sobre o nome desse homem pesa uma...
— Perdão, meu pai. – atalhei com aflição – Amo-a. Que me importa o
nome de seu pai? Dar-lhe-ei o meu; e se alguma nódoa houve sobre esse
homem, purificou-a o gelo do sepulcro. Meu pai, Adelaide está pura dessa
mancha como de toda a culpa.
Esperava uma explosão de cólera; mas contra toda a expectativa sorriu-se
com bondade e disse-me:
— Tancredo, tens o meu consentimento. Adelaide será tua esposa, mas
hás de permitir que te imponha uma condição.
A estas palavras, Úrsula, eu estava de joelhos aos pés desse homem,
que pela vez primeira se mostrava bondoso.
— Falai, meu pai, – disse-lhe – qualquer que ela seja aceito-a.
— Pois bem – tornou ele rindo-se tão expansivamente, que, Deus
meu! Acreditei que vinha tudo aquilo do coração, que se lhe expandia
pela minha felicidade: e eu transportado de reconhecimento beijava-lhe
as mãos, e sentia que o amava, porque era feliz. Mas esta ilusão passou, e
o despertar foi doloroso.
— Tancredo, és o desposado de Adelaide. – disse-me. – Doravante esse
tesouro, que hás amado, será por mim vigiado como a mais preciosa espe-
rança da tua suprema ventura; Adelaide, porém, é ainda uma criança, e a
experiência de uma já longa existência obriga-me a impor-te a condição de
esperar por essa união um ano.
— Oh! Meu pai!...
— Escuta-me. Bem sabia eu que te ias afligir; porém atende-me.
A esposa que tomamos é a companheira eterna dos nossos dias. Com ela
repartimos as nossas dores, ou os prazeres que nos afagam a vida. Se é ela
virtuosa, nossos filhos crescem abençoados pelo céu; porque é ela que lhes
dá a primeira educação, as primeiras ideias de moral; é ela enfim que lhes
forma o coração, e os mete na carreira da vida com um passo, que a vir-
tude marca. Mas, se pelo contrário, sua educação abandonada torna-a uma
mulher sem alma, inconsequente, leviana, estúpida ou impertinente, então do paraíso das nossas sonhadas venturas despenhamo-nos num abismo de
eterno desgosto. O sorriso foge-nos dos lábios, a alegria do coração, o sono
das noites, e a amargura nos entra na alma e nos tortura. Amaldiçoamos sem
cessar essa mulher que adorávamos prostrados; porque se nos figura agora
o anjo perseguidor dos nossos dias. Vês, meu filho, – continuou – Adelaide é
apenas uma criança; é tão nova... Tão pouco conheces suas qualidades que...
— Mas, meu pai! – interrompi-lhe – Que dotes faltam ao espírito de
Adelaide? Não a tem educado minha mãe!?
Franziu ligeiramente os supercílios, e disse:
— Sua educação não está completa; ademais – continuou apresentando-me
um papel dobrado, e selado – eis aqui um despacho, que obtive para ti, meu
filho. Honroso é o emprego que te oferecem, e eu ouso esperar que o meu
Tancredo não só o não recusará, porque foi solicitado por seu pai, como não
deixará de partir breve, obedecendo às ordens superiores que o mandam à
cidade de ***.
Abri o fatal papel, li-o, e gelei de dor.
Era para longe da minha província que me desterravam.
— Meu pai! – exclamei pálido de comoção.
— Recusas? – perguntou-me desconcertando-se. — Recusas?
— Não, senhor. Mas...
— Mas... O quê?
— Meu pai, porque não desposarei Adelaide antes de partir para a terra
do exílio? Oh! Não, não, hei de desposá-la; e depois irei contente.
Então ele mordeu asperamente os beiços, tornou-se rubro de cólera, e
com voz, que mal disfarçava a raiva de ver-se assim contrariado, disse-me:
— Tancredo, dei-te a minha palavra, Adelaide será tua esposa, é um
sacrifício: impus-te uma condição, aceitaste-a. É sacrifício por sacrifício.
A condição é fácil de aceitar-se, mas...
Interrompeu-se e ficou em silêncio.
Velho cruel! Dizia eu a mim mesmo; porque semelhante procedimento
para comigo?!
— Acabemos com isto: – tornou-me ele enfurecido – uma palavra
somente. Aceitas, ou queres lutar comigo?
Revolveram-se-me então na mente abrasadas ideias, que mal se com-
padeciam com os sacros deveres prescritos a um filho pela sociedade e
pela natureza.
Comprimido o coração, sentia estalar-me de agonia; e eu olhava esse
velho implacável e frio, que embargava a minha ventura.
Baixei os olhos, meditei por largo tempo, e submeti-me à sua vontade
férrea. Saí do seu quarto prostrado de amargura, e porque a dor era funda
em meu coração.