— Agora – prosseguiu o mancebo, após alguns momentos de profundo
silêncio – agora se não fôsseis vós, minha Úrsula, que de novo acabais de
prender-me à vida, que me restaria sobre a terra?
No exílio, encerrado entre as paredes silenciosas da minha morada, aí
eram comigo as saudades dum estremecido amor, e as fagueiras esperanças
de um porvir de afetos e ventura. Loucas esperanças eram essas! Não podia
imaginar que sob as aparências de um anjo essa pérfida ocultava um coração
traidor como o do assassino dos sertões.
Recebia constantemente cartas de minha mãe, em que me falava de
Adelaide, animava-me no meu desterro, e não dirigia queixas contra o seu
marido.
As cartas deste eram sempre breves e frias.
Adelaide, que com frequência também me escrevia a princípio, entrou
a espaçar mais a correspondência, que era o alento da minha vida, era o que
me fazia permanecer com alguma alma tão longe de entes caros.
Por último cessaram!
E eu chorava no exílio dores, que ela havia esquecido – afetos, que
nunca lhe tinham pulsado no coração – esperanças e saudades que eram só
minhas!...
Com que lentidão espreguiçavam-se então os dias!... Contava as horas,
longas como séculos, tristes como as agonias do padecente.
Com o tempo, o espírito cansado de tão apurado sofrimento reagiu
sobre o físico, e caí perigosamente doente.
Prolongou-se a minha enfermidade, apesar dos esforços dos médicos,
e eles recearam pela minha vida; porém o amor e a esperança salvaram-me.
Recobrei finalmente a vida, e quando me achei com forças para
empreender viagens, pensei em rever o objeto de minha terna afeição, e não
obstante não ter carta de meu pai, que me chamasse a receber a recompensa
de meu sacrifício, dispus-me para a partida.
Mas... Deus eterno! Como são ocultos os teus juízos! Uma ordem muito
positiva do governo obrigou-me a renunciar ao meu projeto, e tive de dirigir-me
à comarca de ***, onde ia incumbido de uma comissão espinhosa e honrosa.
Enfraquecido pelos sofrimentos, contrariado, quase que desesperado,
empreendi essa viagem, que fiz com tanta rapidez quanta me permitiram
minhas forças, e alguns dias depois estava de volta. Levava no coração a
imagem desse anjo idolatrado; mas uma mágoa estranha anuviava-me
o coração, e eu não podia compreendê-la, e o absoluto e tétrico silêncio
desse espaço, que percorria, mais aumentava esse sentir vago de indefinível
melancolia.
E dei de rédeas ao animal com loucura e sem parar, porque sentia a
necessidade do movimento; mas depois a aflição sempre crescente trazia-me
o abatimento, e eu deixava o cavalo andar como lhe parecia.
O coração pressagiava males e não tinha energia para desvanecê-los...
Concluída essa penosa tarefa, ao entrar em minha casa encontrei uma
carta, cuja letra era trêmula e mal traçada, cuja data era ainda anterior à
minha enfermidade. Oh! Deus meu! Gelou-se-me de dor o sangue – essa
carta era de minha mãe! Escrevera-a às portas da Eternidade, e cada uma
de suas palavras era um queixume desanimado de dolorosa angústia. Não
havia aí uma palavra que acusasse meu pai; mas compreendi logo que ele
lhe cavara a sepultura.
Adelaide! Minha pobre mãe não me falava dela...
E após essa, li sucessivamente uma carta de meu pai, e outras de alguns
amigos – minha desditosa mãe cessara de existir!...
Ah! Essa dor foi profunda, e tão aguda, que recaí e por muitos dias
ignorei o que se passava em derredor de mim. Recuperei a saúde, alentado por meu amor. Adelaide estava no coração, e agora mais do que nunca seus
afetos eram necessários a minha alma.
Ergui-me pois, e de novo pus-me a caminho e quinze dias viajei, já pela
ardentia do sol, já pela umidade da noite, sempre depressa, sem nunca des-
cansar, animado pelo desejo de chegar e ver a minha Adelaide, único ente
adorado que me restava sobre a terra! No cabo de quinze dias bati, à noite, à
porta da casa onde nasci e onde morrera minha infeliz mãe!
A dor que eu sentira ao receber essas cartas fatais crescia e sufocava-me
à proporção que me aproximava dessa casa, onde eu deixara minha desven-
turada mãe, pálida e desfeita, e onde ia encontrar lutuoso silêncio: e o aspecto
lúgubre do escravo, que vigiava à entrada, aumentou mais essa dor profunda.
Levantou-se apenas viu-me, e falou-me com voz magoada; e depois,
cruzando os braços sobre o peito, aguardou mudo por uma interrogação.
— Meu pai? – perguntei-lhe com voz trêmula e convulsa.
— Está fora, senhor – tornou-me tristemente. E Adelaide? Onde está ela?
— No salão – redarguiu o negro no mesmo tom.
Entrei. Veloz como um raio, atravessei corredores e salas, e num minuto
estava no salão. Úrsula, minha Úrsula, eu a vi. Oh! Antes não a houvera visto,
antes tivera descido ao sepulcro, que lá não me seria revelada tão triste e
nefanda história!
No salão havia um turbilhão de luzes; no fundo, reclinada em primo-
roso sofá, estava uma mulher de extremada beleza. Figurou-se-me um anjo.
A esplendente claridade, que iluminava esse salão dourado, dando-lhe de
chapa sobre a fronte larga e límpida circundava-a de voluptuoso encanto.
Era Adelaide.
Adornava-a um rico vestido de seda cor de pérolas, e no seio nu
ondeava-lhe um precioso colar de brilhantes e pérolas, e os cabelos estavam
enastrados de joias de não menor valor.
Distraída, no meio de tão opulento esplendor, afagava meigamente as
penas de seu leque dourado.
Alucinado por beleza tão radiante, corri para ela, exclamando:
— Adelaide! Minha Adelaide!
E naquele momento, seduzido pelos seus encantos, louco pela ventura
de vê-la, esqueci a mágoa, que me doía no coração, da perda de minha mãe.
Estendi-lhe os braços, e as expressões morreram-me nos lábios; e depois curvando-me ante ela, ia tomar-lhe as mãos, e beijá-las com efusão; mas ela
então altiva e desdenhosa disse-me com frieza, que me gelou de neve.
— Tancredo, respeitai a esposa de vosso pai!
Oh! Não sei como não enlouqueci! Em trevas de desesperação tornou-
-se-me a luz dos olhos, e todo o salão parecia ondular sob meus pés. A mulher
que tinha ante meus olhos era um fantasma terrível, era um demônio de
traições, que na mente abrasada de desesperação figurava-se-me sorrindo
para mim com insultuoso escárnio. Parecia horrível, desferindo chamas dos
olhos, e que me cercava e dava estrepitosas gargalhadas. Erguia-se para mim
ameaçadora, e abraçava e beijava outro ente de aspecto também medonho,
ambos no meio de orgia infernal cercavam-me e não me deixavam partir.
Se durou muito este fatal pesadelo, não o posso dizer. Quando acordei
debatia-me no tapete aos pés dessa mulher orgulhosa.
Dissiparam-se-me as trevas, a luz volveu-me e com ela apagaram-se
as ondas de fogo, que rodeavam essa pérfida criatura. Encarei-a de face –
estava impassível e fria como a estátua do desengano.
Levantei-me cheio de desesperação e ódio.
Adelaide permanecia indiferente.
— Mulher infame! – disse-lhe – perjura... onde estão os teus votos?
É assim que retribuíste a estremecida paixão que te rendi? É com um requinte
de vil e vergonhosa traição que compensaste o ardente afeto de minha alma?
Compreendeste ou sondaste já o profundo abismo de infame execração, e de
baixa degradação, em que te despenhaste?
— Silêncio, senhor – bradou-me com orgulho e desdém – silêncio –
estais na presença da mulher de vosso pai, e respeitai-a.
— Não, não me hei de calar, – redargui furioso – não me pode esmagar
o teu desdenhoso acento. Monstro, demônio, mulher fementida, restitui-me
minha pobre mãe, essa que também foi tua mãe, que agasalhou no seio a
áspide que havia mordê-la! Oh! Dívida é esta que jamais poderás pagar; mas
a Deus, ao inferno, a pagarás sem dúvida. Foi essa a gratidão com que lhe
compensaste os desvelos de que te cercou na infância, a generosidade com
que te amou?!!
Estava louco de aflição e a voz faltou-me; porque o que eu sentia era
demais para as minhas forças. Torcia as mãos de desesperação; porque o
acordar de minhas loucas esperanças era amargoso e doloroso. E de repente um sorriso, que me pareceu infernal, errou-lhe nos lábios
– era seu esposo, que grave e silencioso atravessava o salão, e ela julgava-se
isenta de minhas recriminações e sentia-se livre de desagradáveis lembranças.
Olhei, e vi-o. Velava-lhe o rosto palidez mortal.
E cambiamos longo, amargo e expressivo olhar: creio que foi um século
de torturas para meu pai, por que depois ele cravou os olhos no chão e res-
pirava a custo.
— Senhor! – exclamei fora de mim – Restitui-me duas mulheres, que
vos recomendei na hora em que me desterrastes. Uma era a mãe querida que
eu tanto amava; a outra era minha desposada, era a mulher que me havíeis
cedido para a companheira dos meus dias. Onde estão elas?
Continuou mudo a fitar o tapete de seu vasto salão.
— Livrai-me, senhor, da presença deste homem! – exclamou Adelaide
agitada e convulsa.
— Que fizestes delas, senhor? Compreendo agora, o vosso silêncio assaz
mo tem explicado. Sondastes o coração de uma, e sem dificuldade conhe-
cestes que era vil e baixo, que o ouro a deslumbrava, a enlouquecia, a avil-
tava, e essa, que com tanta felicidade sacrificava ao luxo os afetos de seu
coração, ou que com infame procedimento esquecia o amor desinteressado
e puro do homem que sabia idolatrá-la, essa, roubando-a ao meu coração,
levastes aos altares e fizestes a vossa esposa! Tivestes razão: ela não era
digna do meu amor.
Meu pai fez-se lívido, e de raiva mordeu os beiços.
A outra – prossegui – a outra atormentastes, torturastes, conduzistes
lentamente à sepultura. Seu crime? Oh! Meu pai! Meu pai... minha mãe era
uma angélica mulher, e vós, implacável no vosso ódio, envenenastes-lhe a
existência, a roubastes ao meu coração... Oh! Suas cinzas, senhor, clamam
justiça contra os autores de seus últimos pesares, contra aqueles que riram
sobre suas dores.
— Fazei-o retirar, senhor – de novo bradou a esposa, pálida e abatida.
— Tendes razão, senhora. – disse-lhe. – Sentis que vos incomodo?
Assim deve ser. Eu sou para vós o remorso vivo. Esperai, não será longo o
tempo que gastarei aqui; porque também me incomoda a vossa presença;
porque nesta casa respira-se um hálito pestilento; porque aqui enfim estais
vós. Pouco me demorarei – só quero dizer-vos:
— Mulher odiosa! Eu vos amaldiçoo. Por cada um dos transportes de
ternura, que outrora meu coração vos deu, tende um pungir agudo de pro-
funda dor; e a dor, que me dilacera agora a alma, seja a partilha vossa na
hora derradeira. Por cada uma só das lágrimas de minha mãe choreis um
pranto amargo; mas árido como um campo pedregoso, doído como a deses-
peração de um amor traído. E nem uma mão que vos enxugue o pranto, e
nem uma voz meiga que vos suavize a dor de todos os momentos. O fel de
um profundo, mas irremediável remorso, vos envenene o futuro e o desejado
prazer, e no meio da opulência e do luxo, firam-vos sem tréguas os insultos
de impiedosa sorte. Arfe o vosso peito, e estale por magoados suspiros, e
ninguém os escute; e sobre esse sofrimento terrível cuspam os homens
e riam-se de vós.
A voz de todo se me extinguiu, e eu saí louco de desesperação e de dor
da casa de meus pais, da casa onde tão leda se passou a minha primeira idade!
Após um momento de silêncio, o cavaleiro disse à filha de Luísa B.: — Eis,
Úrsula, a fiel narração da minha vida, eis os meus primeiros amores; o resto
toca-vos. Fazei-me venturoso. Oh! Em vossas mãos está a minha sorte.
A donzela, comovida, não pôde falar e estendeu-lhe a mão, que ele
beijou com amor e reconhecimento.
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