XIX - O despertar

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O amor que se nutre no coração do homem generoso é puro e nobre,
leal e santo, profundo e imenso, e capaz de quanta virtude o mundo pode
conhecer, de quanta dedicação se possa conceber. Ele o eleva acima de si
próprio, e as suas ações são o perfume embriagador desse sentimento, que o
anima: mas o amor no peito do homem feroz e concupiscente é uma paixão
funesta, que conduz ao crime, que lhe mata a alma e a despenha no inferno.
Tal era o amor que abrasava a alma indômita e malvada de Fernando P.
O amor perdera-o. Ele já não sonhava com a vingança; mas começava a sentir
alguma coisa, que lhe rasgava o coração. Seriam os espinhos do remorso?
Fernando até ali sopitara esse castigo do céu, e nunca seu sono fora atri-
bulado. Entretanto agora, cada sombra era um espectro pavoroso e amea-
çador, que lhe erguia os braços descarnados, e acenava-lhe para as feridas
gotejantes: e ele fechava os olhos e via-o ainda, e sempre, e por toda a parte.
Então corria espavorido e louco, como se pretendesse fugir a si mesmo
para escapar a tão pungente martírio, mas embalde porque a sombra de sua
vítima o seguia impassível.
Após a noite da horrível catástrofe, tinham-se sucedido já duas, e a tran-
quilidade não voltara ao espírito do comendador. Em todo esse tempo não
pudera conciliar o sono um só momento; porque o sono foge àquele que
perdeu a paz de espírito.
E para serenar a tempestade da sua alma, lembrou-se de Úrsula, por quem
empreendera esses novos e horrendos crimes, e tentou vê-la. De há muito que
já se esforçava por ir ver aquele anjo de candura e beleza, mas o ânimo lhe
faltava com a lembrança de que ela lhe lançaria em rosto os seus crimes. Por
último, vencendo sua pusilanimidade, correu desvairado ao seu quarto.
Úrsula tinha os olhos cerrados; dormia o sono agitado do febricitante.
As horas, que se escoavam já tão longas, os desvelos de que a cercavam, nem
a dor, que lhe despedaçava a alma, tinham-na arrancado a esse doloroso torpor.
Então Fernando P. ajoelhou ante esse anjo, olhou-a extasiado, sem
atrever-se a tocá-la, ou a chamar pelo seu nome. Temeu despertá-la.
Nessa atitude passou ele muitas horas sem que Úrsula voltasse a si. Um
assomo de cólera concentrada enuviou a fronte pálida desse homem feroz,
e prorrompeu blasfemando:
— Maldição! Mil vezes o mataria, se mil vidas o inferno lhe tivesse dado.
E Úrsula continuou o seu letargo agitado, e ele recaiu na adoração
íntima e silenciosa em que estivera.
Mas o fantasma aí veio persegui-lo; ele fechou os olhos, depois abriu-os
para fitá-los sobre a donzela adormecida. E estremeceu.
A presença dessa menina era um remorso vivo para o seu coração; seus
olhos cerrados, seus lábios entreabertos, sua respiração curta e anelante,
pareciam repetir-lhe: — Assassino!
O comendador tentou espantar do espírito essa ideia, que lhe voltava
incessante, e ele caiu em dolorosa prostração, que excitaria dó em quem não
soubesse os seus nefandos crimes.
Úrsula estremeceu no leito, torceu os braços com desesperação,
lançou-os fora da cama e deixou-os depois cair sobre o peito.
O comendador gemeu de dor e atreveu-se a exclamar:
— Úrsula!
Sua voz era trêmula, e o som fraco e doloroso.
Ao som dessa voz, que lhe despertava tão agudas dores, a moça debateu-se
no leito, e convulsa, pálida e angustiada, levantou-se com impetuosidade. Abriu
os olhos, e dilatou-os sobre Fernando P., sempre ajoelhado a seus pés, e soltou
um grito, que o fez estremecer de angústia.
Depois levou ambas as mãos aos olhos, e um soluçar doído e magoado
parecia despedaçar-lhe o aflito peito.
Então esse homem endurecido e cruel vergou ao peso de tão enorme
remorso... Fernando P. pela vez primeira compreendeu o que era a dor no
coração de outrem! Gemeu de aflitiva angústia ante o supremo sofrimento
da mulher que amava; e invocou-a com ternura.
— Úrsula! Oh! Quanto te hei amado! Poderás tu compreender a extensão
dos meus afetos, e eu não sentira agora envenenarem-me a alma a deses-
peração e o remorso. Desdenhaste o amor do meu coração... Por quê? Não
era ele puro como a tua alma? Donzela! Se te dignasses lançar a vista sobre
o meu sofrimento, talvez te apiedasses de mim, e acreditasses na minha
afeição; porque muito hei sofrido, Úrsula, muito.... Desde o dia fatal em
que te vi na mata, esqueci o meu orgulho, e uma ardente e inextinguível
paixão me abrasou a alma. Nesse dia, eu jurei pelo céu ou pelo inferno que
serias minha esposa. Perdoa, Úrsula. Nesse dia, ainda eu era orgulhoso. Hoje
peço-te suplicante: negar-me-ás? Úrsula, em nome do céu, uma só palavra,
ainda que essa seja para amaldiçoar-me...
E dizendo, rojava-se pelo chão, e beijava-lhe a fímbria de seu vestido.
Então ela desvendou os olhos, e pôs-se a contemplá-lo, muda e impas-
sível como se nada a inquietasse; e depois de alguns momentos levantou-se,
deu alguns passos vagarosos e incertos, e voltando-se para Fernando, que a
seguia com a vista e o coração, deixou escapar um sorriso descomposto, que
o gelou de neve.
E Fernando P. conheceu que estava punido! Varreram-se suas afagadoras
esperanças. Nesses olhos espantados e brilhantes, nesse andar incerto, e
nesse sorriso descomunal reconhecera que estava louca!
Tão doída foi-lhe essa triste convicção, que a cabeça pendeu-lhe para a
terra, e ficou prostrado como se um raio o tivesse ferido. E as esperanças tão
queridas do seu coração mirraram-se, e extinguiram-se!....
Passou algum tempo nessa posição, e depois esse homem robusto,
altivo, feroz e colérico chorou como débil criança.
Mas seu desespero, seu pranto de amargura, não os compreendia Úrsula,
que distraída brincava com as flores já murchas de sua capela de noiva.
Então o comendador saiu correndo; porque a presença dessa mulher
matava-o.
Na sua desesperação ninguém o consolava; porque era mau e cruel para
os que o conheciam.
Seus escravos olhavam-no pasmo, e não o reconheciam. O remorso o
havia completamente desfigurado.

ÚrsulaOnde histórias criam vida. Descubra agora