Antero era um escravo velho, que guardava a casa, e cujo maior defeito
era a afeição que tinha a todas as bebidas alcoolizadas.
Em presença dos dois homens de má catadura e feições horrendas, ele
mostrou-se rígido, e atirou com o prisioneiro para um quarto úmido e nau-
seabundo, e mostrou interessar-se vivamente em cumprir as ordens, que
recebera. Depois colocou-se à porta, qual fiel cão de fila a quem o dono
deixou de guarda à sua propriedade ameaçada por ladrões.
Túlio, entretanto, debatia-se de desesperação encerrado nesse quarto,
do qual se não poderia escapar sem cometer um crime, que repugnava-lhe o
coração. Impaciente, receoso pela sua sorte, e ainda mais pela de seu ben-
feitor, contava os minutos, e amaldiçoava a mão que assim o retinha.
Curvou a fronte em uma de suas mãos, e descansando o cotovelo sobre
a coxa, mergulhou-se em seus pesares e deixou-se levar por eles. A tristeza
e o abatimento, que se debuxavam naquele rosto nobre, contristaram ao seu
guarda, que atento o considerava.
— Coitado! – dizia ele lá consigo – Sua pobre mãe acabou sob os tratos
de meu senhor!... E ele, sabe Deus que sorte o aguarda. Pobre Túlio!...
E o prisioneiro, ora abatido, ora desesperado, entrou a soluçar, e a
desafogar por esse modo as dores que lhe assoberbavam o peito. Depois
ergueu-se e entrou a passear pela estreita prisão, ora com passos rápidos e
incertos, ora com andar frouxo, aflito e desalentado.
Soaram nove horas. Túlio deu um gemido de desesperação.
Antero, que também sofria, quis distraí-lo de seus pensamentos dolo-
rosos, e murmurou:
— Meu filho, não achas que a noite assim vai tão lenta e fastidiosa?
Túlio não respondeu. Pensava então que Tancredo partira já a receber sua
noiva, e que apenas saísse da cidade estaria a braços com os seus assassinos.
— Ah! – dizia ele estorcendo as mãos – E eu aqui guardado para o não
defender!!...
O velho esteve por algum tempo recolhido em si mesmo; depois
levantou-se, pegou de uma cuia e tratou de lançar-lhe dentro o que quer
que era que estava em uma cabaça. Mas esta estava completamente vazia.
Antero arremessou-a para longe de si com certo ar de desprezo, suspirou, e
depois disse:
— Maldito vicio é este! E que não possa eu vencer semelhante desejo!
Oh! Acredita-me, Túlio, estala-me a garganta de secura. E como não
há de assim ser? Desde que aqui chegou meu senhor que não mato o bicho.
Arre! E nem uma pinga de cachaça! Nem ao menos uma isca de fumo sequer
para o cachimbo.
Então passou pela mente do mísero prisioneiro um lampejo de espe-
rança, respirou com indizível satisfação; mas com arte objetou, afetando
repreensivo acento:
— Que mau vício em verdade, pai Antero... Sempre a fumar e a beber.
Não vos envergonhais de semelhante procedimento? Que conceito fará de
vós o senhor comendador?!
— Que conceito? – interrogou o velho desapontado – Que conceito!
É o único vício que tenho; e ainda por conservá-lo não prejudiquei ninguém.
Que te importa que beba, – acrescentou com voz que queria dizer: não tens
coração. — Por ventura pedi-te algum dinheiro para fumo ou cachaça? – e
dizendo afagava a cabaça vazia com um desvelo todo paternal, como que
arrependido de tê-la desprezado, a ela, a sua companheira constante.
— Não – respondeu friamente Túlio.
— Pois bem, – continuou o velho – no meu tempo bebia muitas vezes;
embriagava-me, e ninguém me lançava isso em rosto; porque para sustentar
meu vício não me faltavam meios. Trabalhava, e trabalhava muito, o dinheiro
era meu, não o esmolei. Entendes?
— Perfeitamente, – retorquiu Túlio, fingindo sorrir-se.
— Pois ouça-me, senhor conselheiro: na minha terra há um dia em cada
semana, que se dedica à festa do fetiche, e nesse dia, como não se trabalha,
a gente diverte-se, brinca, e bebe. Oh! Lá então é vinho de palmeira mil
vezes melhor que cachaça, e ainda que tiquira.
— Então, pai Antero, gostais assim tão loucamente de matar esse
imortal bicho?
— Oh! Se gosto! – exclamou o velho africano lambendo os beiços só de
esperança.
— Pois bem, – tornou o jovem negro, metendo-lhe nas mãos tanto
dinheiro quanto era bastante para Antero embriagar-se dez vezes pelo
menos –, tomai, e ide saciar à farta essa maldita sede.
O velho arregalou os olhos, e o prazer transbordou-lhe as feições
ridentes; tomou a cabaça e saiu correndo; mas não sem ter fechado sobre si
a porta da prisão.
Então Túlio olhou em derredor de si a assegurar-se da situação e dos
meios de fuga, e viu nesse quarto horrível troncos, correntes, cepos, anji-
nhos, que se cruzavam. Aí, quantos desgraçados não tinham no meio das tor-
turas amaldiçoado, como Jó, o dia do seu nascimento?!... Quantas lágrimas
não teriam regado aqueles instrumentos de suplício?!...
— Ah! Se eu sempre tivesse destes bons prisioneiros!... – exclamou con-
tente, e batendo as palmas o bom Antero, que voltava já bastante alegre, e
que não satisfeito com a dose, que engolira, de novo beijava ternamente sua
querida cabaça, agora cheia da bebida de sua predileção.
— Deus te pague, meu filho, e te dê uma boa sorte. – E daí arremessava-se
à sua amante, e já os beijos eram tão repetidos, que pareciam um só e
contínuo.
Contava já o incansável Túlio com a possibilidade de escapar-se; porque
o silêncio, que reinava na casa, o advertia da ausência do comendador.
Dez horas ecoaram aos seus ouvidos. Túlio estava sobre espinhos.
— Dez horas! – murmurou – Que silêncio! Parece-me, pai Antero, que
o mundo inteiro dorme: pelo menos nesta casa aposto que só nós estamos
acordados.
— Adivinhaste – resmungou o velho com a língua tão pesada, que
parecia um moribundo – porque se não fôramos nós, ela estaria completa-
mente deserta.
— Deserta! – perguntou Túlio, tremendo em face de uma coisa que ele
adivinhara já: – E então aonde foi o comendador?
Antero bebia freneticamente, esquecendo destarte o bárbaro rigor de
Fernando P.; e por isso já meio dormindo apenas respondeu:
— Achei a porta fechada... por fora...
— E por onde então saíste? – perguntou Túlio, sacudindo-o. – Falai.–
An! – Balbuciou a custo abrindo os olhos.
— Por onde saíste, se achaste a porta fechada por fora?
Pai Antero fez um esforço, e resmoneou:
— Pelo quintal.
Não pôde mais falar, e caiu em profundo sono, entrecortado só por uma
respiração forte e estrepitosa. Então Túlio arrastou-o pelas pernas, e o foi
levando até um tronco, que se unia à parede, e lá depois de o ter bem seguro,
tirou-lhe da algibeira a chave da prisão e saiu.
O negro previra a explosão de cólera do comendador, quando de volta
de sua traidora emboscada, e reclamando o preso, só encontrasse Antero
embriagado, a prisão aberta, e a sua vítima fora do alcance de sua ira.
Naturalmente o comendador vendo Antero preso no tronco, acreditaria que
se dera uma luta entre ele e o prisioneiro, e que aquele, velho e sem forças,
fora subjugado e preso, e que assim tolhido e sem socorro algum, vira-lhe a
fuga, sem poder sequer opor-lhe a menor resistência.
Túlio não se enganou – o seu estratagema salvou o velho escravo.
Livre, Túlio deitou a correr em direitura da casa, tendo só na mente
salvar a seu benfeitor e amigo.
Estava esbaforido, e mal entrou, sabendo que Tancredo há muito saíra
acompanhado das testemunhas, partiu sem respirar pela estrada que levava
ao convento.
— Meu Deus! – dizia ele consigo – será ainda tempo? Poupai-o, Senhor:
livrai-o de seus inimigos.
E finda esta breve súplica, a esperança, que começava a abandoná-lo,
voltou-lhe risonha e vigorosa.
Já lhe faltava o fôlego, já as pernas se lhe afracavam de cansaço, e ele
corria sempre veloz como o fuzilar de um relâmpago, como o cervo que o
caçador persegue.
No meio da sua carreira, avistou um homem montado em uma mula,
que caminhava a passos lentos.
O jovem negro conheceu-o e respirou.
– Louvemos ao Senhor Deus! – disse. E acrescentou: – Senhor, vindes
do convento de ***?
— Sim. Acabo de fazer aí um casamento, – redarguiu o retardatário via-
jante, que era um sacerdote.
— E os noivos, senhor?
— Deixei-os na igreja, filho.
Túlio deixou o padre, e de novo começou a correr, e não tardou muito
em descobrir as negras paredes do templo, onde uma lua minguada proje-
tava tíbia claridade.
E Túlio avistou um coche, cujos cavalos, mordendo o freio, iam já partir
para a cidade.
Depois ouviu pronunciar-se um adeus, logo depois outro, e o coche partiu
a trote largo. Outro coche, porém, estava ainda postado à porta da igreja.
Faltavam-lhe já forças, estava aniquilado de cansaço, entretanto corria
sempre; porque o coche que passou não era o dos noivos, e ainda talvez
fosse tempo de salvá-los.
Na sua carreira, pressentiu um vago rumor à beira da estrada, e um
vulto negro que se escondeu atrás de uma árvore copada. Uma tal aparição
veio dar-lhe novas forças, e a suspeita fê-lo ativar a sua carreira.
— São eles! – disse a si mesmo, e no ardor da sua dedicação gritou com
voz que repercutiu na solidão.
— Cilada, senhor... Querem assassi...
Dois tiros de pistola disparados ao mesmo tempo ressoaram com pavo-
roso estampido, e Túlio não acabou a palavra!
A mão que os disparou era certeira, e ele, moribundo, só pôde exclamar:
— Jesus! Eu mor...ro!...
Então Tancredo e sua jovem esposa, que acabavam de entrar no coche,
tremeram de dor e de surpresa. Reconheceram que a voz era a de Túlio, que
lhes advertia na íntima desesperação da sua alma.
E Tancredo bradou desatinado:
— É ele, é o meu fiel Túlio! Monstros! Porque o assassinaram? – e deu
um passo para ir socorrê-lo; mas Úrsula puxou-o pelo braço, dizendo-lhe:
— Não ouvistes o seu aviso? Ah! Tancredo, querem assassinar-vos! –
E cobriu-o com seus níveos braços.
E um tropel como de lobos, que devorados pela fome uivam medonha-
mente, aproximou-se do coche; e o grito do postilhão denunciou-lhes que
estavam cercados por essas feras humanas mil vezes mais temíveis que os
chacais e as hienas.
Tancredo reconheceu o perigo iminente que o cercava e, abrindo a por-
tinhola, fez fogo com as suas pistolas. A primeira errou a pontaria, a segunda
feriu de leve a um homem vestido de luto. Nesse homem Tancredo reco-
nheceu o comendador.
— Úrsula tinha razão! – disse ele consigo – Eu é que me perco sem a
poder salvar!...
E Fernando P. furioso e com ímpeto subiu ao coche, e apareceu a suas
vítimas sinistro e ameaçador, como o anjo deve-o ser no dia do supremo
julgamento.
Feroz e hórrido sorriso arregaçava-lhe os lábios, que resfolegavam o
ódio e o crime. Assim deviam sorrir-se Nero, Heliogábalo e Sila nas suas
saturnais de sangue.
— Poupai-o, senhor. Ah! Pelo céu, poupai-o! – exclamou Úrsula aflita e
pálida caindo aos pés desse homem desapiedado.
E por um esforço sublime, que só a mulher – ente feito para a dedicação
e o amor – pode conceber, disse-lhe, apresentando-lhe o peito:
— Ofendi-vos, senhor, vingai-vos: eis-me, não me poupeis: mas ele? Oh!
não o assassineis! Oh! Não tem culpa de que o ame mais que a vida...
E caiu prostrada aos pés de Fernando, que semelhante à hiena, que
meneia a cauda e lambe os beiços, porque a presa lhe não escapará, olhava-a
sorrindo de ferocidade.
Estava agora face a face com Tancredo, que desarmado só podia esperar
a morte fria e cruel que lhe preparava seu implacável inimigo.
E vendo a esposa desmaiada aos pés do comendador, abaixou-se e
tomou-a em seus braços.
E essa beleza adormecida e pálida como o lírio do vale, parecia sorrir-
-lhe com celeste meiguice, e o jovem esposo, transportado de amor e de
aflição, imprimiu nesses lábios de voluptuosa perfeição um beijo ardente
com que parecia ir-lhe a vida – era o seu último adeus.
Ao contato desses lábios amados, ela abriu seus grandes olhos alque-
brados pela dor, e com um olhar que exprimia a mais singular e indefinível
ternura, pareceu dizer-lhe:
— Amo-te!
Depois esses dois astros de amor, que guiavam ainda no perigo, ou nas
trevas da desesperação, ao infeliz mancebo, recaíram em seu lânguido torpor.
Esse beijo foi a expressão profunda de tão sublime amor: foi o primeiro,
o casto e puro ósculo de amor, que o comendador jurou ser o derradeiro.
Esse ósculo pareceu-lhe insultuosa ofensa: rangeu os dentes de raiva, e
arremessando-se contra o seu odioso rival, arrancou-o com força do ódio dos
braços de sua jovem esposa.
— Vingança! – bradou – Vingança! É a hora da vingança. Julgavas que
eu a tinha esquecido? Louco! Não sabes que a essa mulher, que amaste, eu
dei a alma e o coração, e que jurei que há de ser minha?
Roubaste-ma e envileceste-a a meus olhos! Cuspiste-me a face, e
nodoaste-a com o teu amor impuro!... Poluíste-a com o teu hálito... Tancredo,
esse ósculo trespassou-me o coração de ciúme. Só o teu sangue poderá
purificá-la ante mim, que jurei esposá-la. Prepara-te para morrer!...
— Covarde!... Miserável assassino – exclamou o mancebo atirando-se
sobre o seu adversário. – Respeita ao menos a pureza de Úrsula, não calu-
nies a sua inocência.
Luta desesperada travou-se entre ambos. Os asseclas do comendador
agarraram Tancredo pelas costas, e o covarde comendador embebeu-lhe no
peito o punhal que trazia na mão.
— Mataste-me! – exclamou o infeliz Tancredo. — Farta-te de sangue,
fera indômita e cruel! Mas eu te juro à hora suprema da minha existência que
Úrsula não será tua esposa.
Fernando P., essa menina, que jaz desfalecida, ama-me muito para
poder esquecer-me; e odeia-te demais para poder perdoar-te. O teu amor
será a punição do teu crime.
Entretanto Fernando, vitorioso e triunfante, uivava de feroz alegria, e
vociferou rangendo os dentes:
— Mentes! Mentes! Olha-a pela derradeira vez; não é ela formosa como
um anjo? Não é assim? Achei-a também, amei-a, rendi-lhe um culto de louca
adoração, e agora é minha. Amaste-a, Tancredo? Amou-te ela? Oh! Há de
amar-me também, quando tuas cinzas já frias no sepulcro lhe não recor-
darem tua passada ternura.
E o infeliz Tancredo, no último transe de sua íntima agonia, estendeu os
braços e exclamou com delírio amoroso:
— Úrsula! Minha Úrsula!
Então a donzela despertou de seu dorido letargo, abriu os olhos, e num
excesso de amor apaixonado, e de uma dor íntima, lançou-se sobre seu des-
ditoso esposo, e unindo-o ao coração recebeu-lhe o derradeiro suspiro.
Um mar de sangue tingiu-lhe as mãos e os puros seios! Tinha os olhos
fixos e pasmados sobre o doloroso espetáculo, e entretanto parecia nada
ver; estava absorta em sua dor suprema, muda, e impassível em presença de
tão monstruosa desgraça!...
O seu sofrimento era horrível, e profundo, e o que se passava de
amargo e pungente naquela alma cândida e meiga foi bastante para
perturbar-lhe a razão.
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