XI - O derradeiro adeus!

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Úrsula ainda tão nova começou a vergar sob o peso de tantas comoções
encontradas. Pálida e abatida, semelhava o lírio do vale, que a calma emur-
checeu. Era débil para tão grandes embates.
Na sua solidão o homem tinha ido perturbar-lhe a virginal pureza do
coração para dar-lhe uma nova existência – o amor; e depois ainda o homem,
invejoso dessa momentânea e fugaz felicidade, veio roubar-lhe a tranquili-
dade do espírito, e envenenar-lhe a suave esperança de uma vida risonha e venturosa, espremendo-lhe no coração a primeira gota de fel do cálice que
ela devia libar até as fezes.
Ela, conturbada e aflita, recolhia-se em si para meditar nas expressões
ardentes e ameaçadoras do homem da mata, que a amedrontavam, e que a
gelavam até o fundo da alma.
E quem será ele? Deus meu! Por que fatalidade me viu, e disse-me que
me amava com amor ardente e intenso, que terá a duração da sua vida!
Pressagia-me o coração aflito, que esse homem e o seu amor me hão de ser
funestos!
Uma voz interna diz-me que aí está uma grande desgraça. Oh! Esse
homem ensanguentou os meus vestidos, que eram tão alvos! Cada nódoa
desse sangue, que tanto me horroriza, parece-me que serão outras tantas
lágrimas de amargura, que tenho de verter.
Oh! Meu Deus!... Meu Deus, permiti, Senhor, que eu me engane, e que
jamais o torne a ver.
Tancredo! Livrai-me desta aparição ou deste ente repulsivo e
ameaçador!...
Tancredo! Onde estás a esta hora? Que fazes, que não me vens proteger
contra a insolência e as ameaças desse caçador desconhecido? O teu amor
há de amparar-me. Oh, sim, o teu amor me dará forças para destruir suas
loucas esperanças e esquecer suas terríveis ameaças.
E ela fechou os olhos, mas na mente se lhe figurava constantemente
aquele rosto severo, ardente, apaixonado, e ameaçador, aos ouvidos lhe
retumbava o som da sua voz: – era como se ainda o visse, ainda o ouvisse,
e ela desanimada e sem forças procurava desvanecer essa visão infernal.
Depois de algum tempo de luta interna, exclamou: Oh! Que homem tão
ousado, cujo olhar sinistro me amargurou a alma! Apareceu a noite rebuçada
no seu manto de escuridão, e a donzela supôs encontrar o sossego das trevas
e no sono; mas trêmula e agitada no seu leito, invocava embalde o sono, que
o fantasma se erguia mudo e impassível, e a sua mente alucinada dava-lhe
movimento e voz, e ele blasfemava, e ameaçava, e sorria-se com sarcasmo.
Os olhos chispavam fogo, e os lábios agitavam-se convulsos e os membros e
o tronco pareciam cobertos de sangue.
E ela revolvia-se no leito, e o corpo tremia-lhe e o suor corria-lhe, e o
peito opresso ofegava: era um pesadelo insuportável!
A noite ia já alta, a moça entrou no quarto de sua mãe; ia talvez revelar-
-lhe o que se havia passado na mata, descrever-lhe as feições do desconhe-
cido, o acento de sua voz, para ver se descobria indícios que a elucidassem
sobre esse terrível adorador, ou ao menos procurar conforto no coração
materno, quando com redobrada amargura esta disse-lhe:
— Ânimo! Minha querida filha, não chores: os meus sofrimentos vão já
acabar. Sinto aproximar-me da sepultura! Mas Deus me há de permitir ainda
ver-te feliz. Sim, feliz! Porque Tancredo te há de dar a ventura, que tanto hei
pedido ao céu para a minha Úrsula.
A moça, então traspassada de dor, olhou para essa infeliz mulher a
quem tão ternamente amava, estremeceu de angústia. Luísa B. não poderia
já aspirar a muitos dias de vida, e essa lembrança fez-lhe esquecer sua desa-
gradável apreensão, e até mesmo seu amor apaixonado para entregar-se
toda à dor de uma eterna separação, que ela antevia como irrevogável.
E debruçada sobre o colo materno, a donzela derramava sentido e terno
pranto que vinha lá do fundo da alma, onde havia dor mil vezes mais cruel
que a própria morte.
Ela fechava aqueles olhos alquebrados, que mal podiam já acariciar
os seus, aqueles lábios semimortos, que fracamente exprimiam a ternura
maternal, aquelas mãos hirtas, e regeladas, que só por sobre-humano esforço
erguiam-se ainda para abençoá-la, e o coração partia-se-lhe de angústia.
Brilhou enfim a alvorada, que espantou essa noite tão longa, e de tantas
dores. Luísa B. recobrou fictícios sinais de melhoras.
Úrsula, mais reanimada, tinha secado o seu pranto e, feliz pelas melhoras
de sua mãe, procurava esquecer o desconhecido da mata, cuja entrevista
desejava relatar à mãe; mas aguardava para esse efeito um dia em que esta
se sentisse mais forte e vigorosa.
Úrsula receava incomodá-la com os seus receios, aliás tão bem fun-
dados. Tinha razão – Luísa B., no aflitivo estado em que se achava, morreria
instantaneamente vendo a filha querida de seu coração ameaçada por um
homem, cuja fereza desenhava-se no seu aspecto.
Sim, Úrsula tinha razão, Luísa não poderia resistir a esse novo embate:
era demais para uma fraca moribunda.
E alguns dias tinham-se já passado depois dessa noite de penosas
comoções, e Luísa B. era ainda a mesma débil, esquálida enferma, mas terna e desvelada mãe, e parecia mesmo na aproximação da morte redobrar de
afetos e de carícias, ameigando com ternura extrema sua inconsolável filha,
toda pranto e saudades.
Um dia, porém, Luísa pareceu recobrar forças, que há muito a haviam
abandonado, e a filha viu com prazer errar-lhe nos lábios um sorriso ani-
mador. Acreditou que suas lágrimas tinham tido o poder de arrancar a mãe
às mãos da morte, e prostrada rendeu graças ao Senhor.
Pobre Úrsula!...
Era esse o dia destinado, e há tanto esperado, para ela informar sua mãe
sobre a entrevista da mata, e começava já a dispô-la para esse fim, quando
bateram à porta.
Ela levantou-se precipitadamente, e foi abri-la: era um escravo, que
inqueriu:
— A senhora Luísa B.?
— É minha mãe – tornou a moça.
— Fazei-me o favor de entregar-lhe essa carta, minha senhora.
— Sim – tornou Úrsula, e acrescentou: – Não se poderá saber donde
veio?
O negro, sem dar resposta, saudou-a humilde e respeitosamente, e
picando o cavalo, seguiu a trote largo pela imensidade do campo.
A moça voltou para junto de sua mãe, e apresentou-lhe a carta, trêmula
e desassossegada.
— Uma carta! – exclamou esta. – E donde virá ela? Lede-a, minha filha.
Úrsula quebrou o selo da carta, e reprimindo sua inquietação, começou
nestes termos:
Luísa, minha cara irmã.
— É de teu tio – exclamou a mãe, confusa, e assustada. – Que me
quererá?
Úrsula comprimiu com as mãos a fronte, que súbita dor acometera. Uma
vertigem lhe obscureceu a vista; mas acalmando-se-lhe o natural sobres-
salto, continuou a ler:
É necessário que nos vejamos ainda uma vez na vida, e conto que anuirás
a este desejo, ou antes súplica de teu irmão Minha irmã! Minha Luísa! Muito me tens a perdoar; porque gravíssimo é o
mal que te hei feito; mas és boa, teu coração não pode alimentar ódio por
aquele que foi sócio dos teus jogos infantis, e que na juventude te amou
com essa doçura fraternal, que só tu compreendias; porque eram gêmeas
as nossas almas.
Luísa, minha doce irmã, porque me tornei eu mau e odioso a meus pró-
prios olhos depois que tomaste Paulo B. por esposo? Por quê? Nem o sei
eu! Talvez o desejo que sempre tive de dar-te uma posição mais brilhante,
como muitas vezes te fiz sentir. Malograste, no entretanto, as minhas
intenções, esposando esse homem, que...
Esse foi o teu crime, crime que eu nunca te haveria perdoado, se o céu
se não incumbisse desta conversão, que sem dúvida te há de admirar;
porque a mim mesmo me admira.
O mais dir-te-ei vocalmente; porque só deve esta preceder-me uma hora.
Adeus.
Teu afetuoso
FERNANDO.
— Meu Deus! – exclamou a viúva de Paulo B. após alguns momentos
de silêncio – Que quer dizer isto? Esta conversão! Oh! Não o compreendo.
Úrsula, minha filha, não sei por que aperta-se-me o coração à aproxi-
mação dessa entrevista. Fernando, meu irmão! O teu ódio ainda não
estará vingado?!
Mas – continuou a pobre mulher – ele me fala de perdão: Deus! Será
possível que se haja arrependido, e que o meu sofrimento lhe tocasse o
coração empedernido?!
— Duvido, minha mãe – objetou Úrsula – duvido. Para que vem ele
perturbar o nosso sossego?
E entrou a cismar sobre tão inesperado e estranho assunto. Falava em
sossego! Como se ela o gozasse há dias! Depois dessa desgraçada entrevista
da mata, sentira um só dia o que era tranquilidade? Não, por certo. Mas,
Fernando P***! Que vinha ele aí fazer? Úrsula tinha horror a semelhante
parente, e implorava ao céu o arredasse sempre da sua vista. Graves sus-
peitas pesavam sobre o comendador, e a infeliz órfã não podia lembrar-se
dele sem temor.
E Luísa tinha suas razões; por isso, agora mais que nunca, estava aflita
e inquieta, mas Úrsula, para tranquilizá-la, disse:
— Porque estais assim a tremer, minha querida mãe? Que mal vos
poderá ele fazer além dos que já tem feito? Ele vos fala em perdões, trata de
uma conversão...
— Operada pelo céu, que a ele mesmo admira! – Tornou Luísa, interrom-
pendo sua filha, que cada vez se sentia mais inquieta. Esta conversão asse-
melha-se a todos os atos de sua vida: esta conversão deve nos ser funesta!
— Pensais isso, minha mãe? – interrogou a pobre Úrsula pálida e
convulsa.
— Sim, minha filha, e quase que te posso assegurar.
— Santo Deus! – exclamou Úrsula, precipitando-se para fora do quarto
de sua mãe, e cobrindo o rosto com as mãos ambas.
O caçador desconhecido acabava de entrar sem anunciar-se.
— Fernando! – exclamou Luísa, tornando-se lívida, e tiritando de frio.
— Luísa! Luísa, minha querida irmã! – bradou o comendador, correndo
para ela, e unindo-a ao seu coração.
Este brado terno e comovido revocou a infeliz mulher a uma vida, que
ela já julgava extinta, e esquecendo por um instante todo o amargor que
Fernando lhe derramara no coração, sorriu-se para o irmão que amara, e por
momentos brilhou-lhe no rosto a alegria, e disse:
— Meu irmão!
E Fernando cedeu então ao mais belo transporte da sua alma, ao único
sentimento virtuoso, que Deus aí lhe implantara, e que embalde tinha lutado
por abafar, ou destruir.
Fernando combatia há dezoito anos o poder desse amor fraterno, e seu
orgulho conseguiu, por algum tempo, o que o coração repugnava, o que
a razão e a inteligência condenavam, e o que ele sentia dolorosamente;
porque só nesse afeto lhe estava a ventura de toda a sua vida.
E para vencer-se, obstinadamente evitava a vista de sua irmã, a que
não poderia resistir, para bem saciar a sua vingança, para bem flagelar-se,
flagelando-a na sua desgraça.
Fernando tinha vivido solitário, e desesperado com essa luta terrível do
coração com o orgulho: e esses desgostos íntimos, que ele próprio forjava, o tinham embrutecido, e tanto lhe afearam a moral, que era odiado, e temido
de quantos o praticavam ou conheciam de nome.
Ele tornara-se odioso e temível aos seus escravos: nunca fora benigno
e generoso para com eles; porém o ódio, e o amor, que lhe torturavam de
contínuo, fizeram-no uma fera – um celerado.
Nunca mais cansou de duplicar rigores às pobres criaturas, que eram seus
escravos! Apraziam-lhe os sofrimentos destes; porque ele também sofria.
Eis aí pois a alma implacável na maldade do irmão de Luísa.
E Úrsula! Onde estava ela?
Pobre menina! Correu sem tino, e sem consciência do que fazia, porque
acabava de reconhecer em seu tio o caçador, cuja voz e cujas expressões não
podiam ser esquecidas. Seu aspecto, suas ameaças, seu amor violento e libi-
dinoso já o tornavam repelente, e agora via nele Fernando P., o perseguidor
de sua mãe e talvez o assassino de seu pai!...
O coração pulsava-lhe com veemência – parecia querer estalar.
Compreendeu toda a extensão do perigo iminente, que estava sobre sua
cabeça. Sua mãe pouco poderia viver, Tancredo estava ausente. O comen-
dador ia triunfar, já não havia dúvida. Oh! Essa ideia era horrível!
Úrsula correu louca por algum tempo, ora invocando a morte, ora mal-
dizendo a hora de seu nascimento, até que afinal, vencida por tão violentos
embates, caiu em uma prostração mórbida, donde a preta Susana a veio
arrancar para dizer-lhe:
— Ide, ide, que minha senhora lhe quer falar. Ah! Ela não pode tardar.
E abafou-lhe a voz copioso pranto.
Úrsula abriu os olhos, estremecendo, e perguntou:
— Que me queres?
E reparando que a escrava chorava, tornou-lhe enternecida:
— Pois que, Susana, tu também choras?!
A velha africana pegou-lhe da mão, e disse:
— Acompanhai-me, vossa mãe está a morrer.
Úrsula exclamou fora de si:
— Oh! Não, mentes, não pode ser! Tu te enganaste, Susana, não é
verdade?
Susana tomou-a nos braços, e apontando para o leito da moribunda:
— Vede-a. Ela vos quer falar.
Luísa B. estava só: seu irmão tinha-lhe já dito o derradeiro adeus, ela
agora necessitava falar a sua filha – desabafar com ela e dar-lhe o último
ósculo maternal!

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