c a p í t u l o q u a t o r z e

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Somos as sombras de um passado próximo

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Somos as sombras de um passado próximo.
Cada um de nós, cada ser vivo
é essa sombra também.
Se vivemos aqui,
se caminhamos por essa mesma Terra,
nos tornamos sombras para
quem ainda vai viver...
Por isso, precisamos ser corajosos
e fazer o que tem que ser feito
quando tem que ser feito.
Não deixe arrependimentos para trás.
Não tenha medo.
Siga em frente...
Deixe sua marca no mundo,
uma que nunca se apague,
uma que esteja sempre fixa nas
pessoas que deixou para trás.
Assim, mesmo que não esteja aqui,
as pessoas se lembrarão de você...
Até que elas também parem de
caminhar sobre essa mesma Terra.

— Maxfield Ephraim

O mato baixo esconde tocas de coelhos, as árvores altas comportam ninhos de águias, os rios rápidos escondem o atum, as cavernas sombriam pertencem à ursos

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O mato baixo esconde tocas de coelhos, as árvores altas comportam ninhos de águias, os rios rápidos escondem o atum, as cavernas sombriam pertencem à ursos. Não deixe o equipamento fora da bolsa ou será levado por guaxinins. Não leve comida de mais, pode estragar. Não leve comida de menos, pode faltar. Esteja sempre pronto para os pernilongos. Não acenda fogueiras em mata fechada, pode provocar um incêndio. Cuidado com as clareiras, é muito exposto. Saia sempre do caminho das cobras. Não coma qualquer frutinha, pode ser sua última. Olhe onde pisa, onda toca, onde senta, onde anda, para que lado está seguindo. Se se perder, abrace uma árvore. Não grite tão alto, não faça movimentos bruscos se encontrar qualquer coisa estranha. Não use roupas muito curtas, leve sempre um agasalho, não beba a água de qualquer rio. Mantenha os fósforos secos, use lenha seca. Se encontrar uma serca, fique longe. Se encantar caçadores, fique longe. Se encontrar o Pé Grande, fique longe. Não se aproxime de reservas, não mate nenhum animal, não os alimente com sua comida industrializada. Fique sempre alerta. Não suba montanhas sozinho, não entre em cavernas sozinho. Cheque sempre a barraca antes de entrar. Cheque as roupas antes de vestir. Cheque a comida antes de comer. Mantenha-se hidratado...

As regras da floresta são sempre fáceis de lembrar, porém difíceis de cumprir. Sempre que acampamos, queremos apenas um pouco de liberdade, um pouco menos de regras. Mas é isso que eles sempre nos dão.

Ah, as regras... Se não foram feitas para serem quebradas, também não foram feitas para serem seguidas. E é disso que se trata tudo. Há sempre um outro propósito, uma segunda serventia para cada coisa ou pessoa no mundo. Talvez por isso sempre vivemos sem destino, aceitando cada pedra no caminho.

Mas, no que estou pensando? É como se estivesse me despedindo de tudo...

O ônibus azul ainda é visível entre os arbustos. Duece tenta prender os galhos soltos no parabrisa, os arranhões que os galhos deixam na pintura nunca serão apagados. São as marcas desses anos todos, diz Pete, as marcas que nos fazem lembrar o primeiro propósito que demos ao ônibus, para que nunca nos esqueçamos que, ele estar aqui, hoje, no meio do nada, foi uma obra do destino.

Lembro perfeitamente como conseguimos o azulão. Juntamos nossas mesadas, nossos salários, as economias para os quadrinhos. Queríamos um bom carro. Mas são pessoas de mais para só cinco lugares. Tentamos comprar um trailer — no verão, trailers são tão caros quanto as luas de Marte seriam se estivessem à venda. O ônibus estava ali há um tempo, disse o atendente da concessionária. Ele parecia perfeito, nosso covil, nosso esconderijo secreto, nosso próprio QG.

Sua cor original era um laranja desbotado, haviam marcas de tiros e arranhões pouco aparentes. O que mais se pode esperar de uma loja de usados? O motor estava bom, uma troca de óleo e ele rodaria matede do globo só com três possíveis paradas em oficinas.

Logan, um cara barbudo, aparentando ser muito mais velho do que realmente é, deu um belo desconto para fazer as melhorias. Eden disse que precisava de uma pintura. Todos pensaram em corvos, esse era o símbolo do time. Lincoln e Todd queriam tudo azul. E Logan o pintou. Os bancos ganharam um novo estofamento, o carpete no chão foi coisa do Don. A lataria interna ganhou cores demais, parecia um campo para refugiados hippies. Eles até pintaram símbolos de paz e amor em alguns lugares. Mas Eden estava com a criatividade lá nas alturas e Logan comprava cada uma das ideias dele – Logan comprava as ideias de qualquer um que tivesse dinheiro. Eles pintaram um grande tigre branco nos fundos do ônibus. Os bigodes deram uma volta até as laterais, os olhos ficavam sobre a vidraça e as presas pareciam projetadas, incrivelmente reais. Assim, nos tornamos os tigres exploradores. Selvagens e raros.

O primeiro arranhão foi culpa do Pé Grande que Lincoln encontrou. Aquele bicho trouxe preocupações demais para uma coisa que só existe nos pensamentos malucos de um moleque sem noção alguma sobre o mundo real. Ele correu metade da floresta, gravando, documentando a aparição da "Coisa" — ele o chamou assim por muito tempo, até encontrar marcas no chão, como pegadas gigantes, e foi aí que a coisa toda virou de cabeça pra baixo.

Todos se meteram nessa, mas, ao contrário de Lincoln, eles queriam provar que tudo não passava de uma grande, imensa, enormemente gigante estupidez de sua parte. Por algum milagre não pronunciado, eu estava no controle da situação, dirigindo o azulão como se soubesses mesmo fazer isso.

Todas as guinadas arrastavam as mochilas para um lado e outro do ônibus e se emaranhavam nos bancos. Os meninos gritavam e sorriam são mesmo tempo. Lincoln reclamava da pouca visibilidade, que o filme iria sair péssimo, que eu estava chacoalhando tanto que, a qualquer hora, a câmera poderia voar de suas mãos e ir parar na boca larga e cheia de dentes do Pé Grande.

O ônibus virou e se enfiou entre algumas árvores, os galhos arranharam a lataria e alguns bigodes do tigre branco tiveram que ser refeitos. O Pé Grande com certeza estava lá, rindo de nós, da nossa proeza estúpida, do trabalhão que foi pôr o ônibus no lugar e sair da floresta. O filme ficou mesmo horrível, no entanto toda a nossa alegria estava lá, gravada, e Lincoln passaria todos os dias revendo aquilo e rindo de tudo.

Lembro que, naquela primeira noite, eu tive um sonho estranho. Um sonho sobre tudo o que tínhamos e que tudo estava prestes a terminar. Não haveria sangue, nem mortes muito estúpidas... Mas, nesse sonho, todos os andorinhões que víamos na floresta tornaram-se negros e grandes como corvos. Eles invadiram nossas casas e levaram tudo, todos. Sobraram apenas nós, os tigres desbravadores, os garotos tolos de Raven Town. Ah, isso jamais aconteceria, claro que não, de forma alguma. Sim, nós iremos crescer e nos tornaremos grandes homens, teremos um emprego, um trabalho idiota onde precisaremos usar terno e sapatos lustrosos, teremos uma família grande e tempo para nada, mas ainda voltaremos aqui, vamos nos enfiar nesse ônibus e voltar aqui para pegar um Pé Grande ou dois, beber até não lembrar de nada, pescar o que não sabemos cozinhar e fingir, outra vez, que tudo nesse mundo, desde os vales até o rio, do Buckingham à Raven Town, é inteiramente e completamente... Nosso.

 Nosso

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Os Garotos de Raven TownOnde histórias criam vida. Descubra agora