Capítulo Sexto

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A manhã que veio deu faces sombrias e pesadas, enquanto no quarto o cenário superava-se em cada nuance. Jojo tentava esquecer-se a todo custo, esforçava-se para negar o que seu próprio consciente dizia. Infâmia era a única palavra que manchava seus lábios, tão próxima e similar ao nome daquele que causava-lhe tanto mal. As roupas jogadas da noite passada cheiravam ao perfume de rosas maldito que Dio usava. Os lençóis não tinham mais a cor branca de uma alma pura, mas um vermelho escuro e vibrante vindo da essência frágil suas aves feridas. E eram da mesma cor dos olhos de um certo alguém e suas flores perversas. O céu que antes dava-se de azul mostrou-se completamente negro e Jonathan estava efetivamente perdendo-se.

Com as janelas abertas, o Joestar via cada gota carmim escorrer de uma fonte infindavelmente dolorosa e apaixonada. Como o gato fazia, ele havia pulado de sua própria janela, havia exposto tudo aquilo que tanto prezava guardar. Mas, diferente do que pensava, ele era o único a encurralar e macular as aves. A queda era alta, mas suportava-a pelo céu que tanto admirara, mas que agora repugnava com cada músculo de seu corpo eivado. Havia recebido não só um gole do egoísmo exacerbado do Brando, mas como havia recebido uma corda para enforcar-se, um apoio para subir e jogar-se de vez pela janela. Matava-se aos poucos e o loiro assistia à peça com olhos infernais, enganando-o. O céu estava caindo sobre si, preensando suas aves contra os espinhos ácidos de dezenas de príncipes negros. E fora ele, Jonathan Joestar, quem causara tudo isso.

Havia desistido de tentar extrair as marcas alheias de seu corpo, preocupando-se apenas com a última ave que parecia morrer em sua esperança, numa contorção lancinante. Não só espinhos, como cacos de vidro de sua própria prisão, tiravam-lhe a seiva escarlate. Desamparada e com asas impossibilitadas de buscar uma saída, a ave deu seu último suspiro no peito e Jonathan sentiu algo extinguir-se de seu interior.

• • •

O gato passou pela porta do quarto como se pertencesse àquele lugar. Na cama, um corpo pálido repousava suas atrocidades em ânsias deploráveis.

— Caíste como a chuva, Jojo, na armadilha que tu mesmo fizestes — resmungou satisfeito enquanto lembrava-se de cada corte deixado para trás, em cada milímetro de pele delicada coberta pelo imaculado véu da inocência de Jonathan. Não pretendia levantar-se, mas ao ouvir um miado ácido no sul de sua cama, irritou-se. — O que fazes aqui, praga? Queria-te morto.

Com cólera, o felino pulou na cama e seguiu os olhos de Dio até que estivesse sobre seu corpo. Seu interior pulsava e cheirava como os príncipes negros, mas esquivava-se dos olhos azuis do gato. Um vento frio veio de fora da janela, arrepiando todos os pêlos possíveis e, quando Dio deu-se, o animal olhava-o com o mais logrado possível. Parecia chorar, à medida que seus pelos caíam flácidos sobre o corpo agora magro. Por um instante, o loiro pensou estar vendo os olhos azuis de Jonathan sobre si, mas quando piscou, o gato não estava mais em seu quarto. Levantou-se, irritadiço, arrastando consigo um véu negro, igualmente manchado de carmim. Parou ao pé da porta de Jojo, mas, ao ameaçar bater, foi puxado para dentro com força.

Seu corpo desnudo chocou-se com o ar gélido do quarto, enquanto os olhos de Jonathan queimavam-o vivo.

A casa parecia estar imersa num silêncio mórbido, onde apenas os rugidos dolorosos do peito de Jojo ecoavam através de seu peito.

— Por que, Dio? Por quê? — questionava-se, enquanto fixava os olhos nas penas avermelhadas. O véu agora rubro dançava sobre a janela estilhaçada, provando uma última vez daquela brisa tão hostil que o céu fazia existir. Trovejou gravemente quando a voz de Dio fez-se audível.

— Eu fui tolo, Jojo — tentava ainda fazer-se complacente, imaginando obter as mesmas respostas que o corpo de Jonathan dera-o noite passada. — Quem diria que sentia-se assim, eu sequer pude imaginar.

— Não sabes como me sinto — a gravidez de sua voz arrastou-se com cacos até o peito do Brando, deixando uma ponta de desgosto. — Fizeste-me de arma para minha própria mutilação, usando de mim mesmo para designar o que você não soube descobrir. Você é uma criatura ignóbil, Dio.

— Oh, achas? Explica-me, então, como o teu corpo desmentia-se sob o véu — o Brando andava silenciosamente até o azulado, cujas mãos tremiam em antecipação. — Explica-me o porquê de teus braços não alcançarem a força para um distanciamento, mas emanavam o calor da proximidade — uma das mãos do loiro guiou-se obscenamente pelo próprio torso, enquanto redesenhava linhas percorridas pelos dedos do Joestar. — Explica-me teus lábios, diligenciando o caminho longo até os meus e cada curva de meu corpo — e, em menos de um instante, os corpos já tocavam-se em esquinas, queimando-se no caminho. Com uma voz ainda mais tentadora, o loiro anunciou sua morte aos próprios céus, enquanto pisava nos estilhaços falhos de seu plano mortal. — Explica-me, Jonathan, por que ainda me amas.

O azulado engoliu um seco, sentindo um refluxo asqueroso querer vir com o gosto dos lábios alheios. Fechou os olhos por um instante e estreitou o olhar até o fundo de seu ser, buscando por baixo de todo aquele amor e cavalheirismo uma ponta sórdida capaz de derrubar o Brando. Sentia-se imundo à medida que as reais intenções do loiro transpareciam tanto quanto suas veias azuis na pele alva. A nudez parcial daquele que olhava-o, ainda esperando uma resposta que sabia não conseguir obter, causava-lhe asco. Enquanto notava no quão fundo era o túmulo que ele próprio havia cavado, o Joestar decidiu render-se às atrocidades do loiro, aproveitando – se é que ainda fosse possível – de seu sabor amargo.

— Eu não saberia explicar nem a mim mesmo — sentou-se na cama, dando-se vencido. As penas já decompunham-se para originar uma outra ave, abominável, mas fruto do que realmente deveria sentir. De penas escuras em contraste com o pelo branco do felino desolado, a ave grunhia ferozmente, manifestando-se com o resto de sanidade que ainda podia haver em Jonathan.

Dio sorriu falsamente, vendo Jojo baixar a guarda com tamanha miséria. Realmente, fui tolo de achar que não tinhas mudado, pensou. Viu o outro afastar os cabelos do rosto e alcançar a mesa ao lado da escrivaninha, com algumas bebidas e copos, opacos e imundos como os corpos ali presentes. Seu pai teria vergonha.

Pensando em ainda laçar seu fitilho perverso no pescoço de Jonathan, Dio sentou-se ao lado, deixando que os espinhos de suas rosas esgueirassem-se até a janela vulnerável do azulado. Não contava, pois, que, no meio dos cacos que ele mesmo fizera quebrar, estava a essência de sua sina impiedosa.

— Às vezes penso que falas sem pensar, Jojo. Andou bebendo durante o resto da noite? — o Brando perguntou secamente, quase sentindo a bebida queimar a sua garganta também.

— Quem sabe — resmungou arrastado, esperando apenas pelo momento exato. Estava indo contra todos os seus ideais? Sim, estava, mas já quase não sentia remorso. A alma esquálida de Dio havia tomado-o em seus braços gelados, abaixo de um céu diluvial e tempestuoso, preso em uma gaiola de espinhos. — Devemo-nos distanciar pela manhã, se alguém desconfia, podes ser expulso.

E não terá o que quer, de qualquer maneira, Jojo quis terminar, mas contentou-se apenas em exibir suas olheiras macabras ao loiro.

— Andas estranho, Jojo. Será que envenenei-te mais que o necessário? — com um dos dedos a acariciar o queixo gélido do Joestar, o Brando deixou sua dúvida fazer-se reversa, evidenciando silenciosamente o que aguardava-o.

— Podes vir hoje à noite checar minha dosagem? Acho que ainda não foi suficiente — provocou, arrancando um riso de escárnio do loiro.

— Sois repugnante em teu âmago, Jonathan — e Dio deixou o quarto, com os pés ensanguentados de sua própria destruição, deixando entrar pelas feridas o elixir de seu fim.
A ave negra despertou e bateu suas asas até sentir-se viva, enquanto o gato ainda tentava ver – não no céu, mas dentro da própria janela – algum resquício de complacência por trás de tantos vidros quebrados. O dia não seria tão longo, talvez sequer terminasse.

Um Gato Pulando A JanelaOnde histórias criam vida. Descubra agora