Capítulo Décimo

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Part I – of the end.

O amontoado de cacos cachoalhava em seu peito, não mais ardendo ao tangenciar feridas antigas. Ainda que cobertas superficialmente, guardavam o amargo de cada gota envenenada que os espinhos fizeram pingar ali. Uma brisa fria corria pela casa e, antes de deixar o telefone de lado, desdobrou a própria carta e correu os olhos por seu interior. A letra aparentava estar trêmula e arrependida, mas não passava de uma memória antiga de um "ser" que abandonara há tempos. O outro pequeno papel redobrava-se no fim da folha e a tinta manchava o escrito de suas mãos. Sentia-se a ponto de chorar, mas até mesmo seu interior repugnaria tal ato. Jonathan dobrou-a e colocou cuidadosamente sob o velho livro de anotações do pai. Sentia muito ao mesmo que não sentia nada.

Fechou as janelas com cautela, prezando as trancas. Futuramente, o velho pai podia vir a precisá-las – caso não morresse de desgosto antes. Maltido seja, Dio, pensou antes de puxar uma das maiores rosas do vaso de príncipes. Os dedos sangraram com alguns espinhos, mas valeria a pena assim que chegasse o tempo.

Assim que o frio fez-se mais presente, o tempo escureceu e tornou visível toda o rastro nebuloso do Brando. O jovem Joestar seguiu-o, sem cambalear em um instante, esfriando os punhos e amaciado o toque. E, em cada passo, o rapaz sentia-se cada vez menos humano, deixando toda a sua perversidade acordar em um soluço. O Brando despertava o pior em si.

O corredor escuro rangia, como quem chorava, e trepidava suas madeiras no ambiente totalmente mortiço. Com dois toques sutis na porta, Dio abriu-lhe a passagem para o inferno onde abrigava-se. O quarto arrumado denunciava um cuidado articulado, como uma armadilha efetiva. No entanto, a bagunça sobre a escrivaninha via-se necessitada de atenção.

— Demoraste — num resmungo, Dio espreguiçou-se. Sequer parecia estar procurando pelo livro de legislação quando Jonathan chegou no quarto. — Como está George?

— Bem — respondeu fria e imediatamente. Curvou-se para deixar o paletó sobre a cadeira, enquanto incinerava com os olhos as pétalas dos príncipes. — Que tal encontrarmos logo esse livro? Não creio que meu corpo responderá bem na abstinência de seu caliginoso veneno, Dio. — adoçou a voz, umedecendo os lábios enquanto via as extremidades do loiro avermelharem-se. O mesmo sangue que corria por debaixo daquelas veias podia parar a qualquer momento.

Oito.

No bolso, o tilintar de vidro confundia-se com os cacos misturados em penas negras e vestígios de pétalas secas. Finalmente, Jojo percebera a quantidade intimidadora de espinhos que vagavam pelos arredores de Dio. Rosnavam como feras toda vez que ele mexia-se e aumentavam silenciosamente de tamanho enquanto dirigia a palavra a Jonathan. No entanto, chamavam-no quando afastava-se. Dio era traiçoeiro, mas havia algo de tênue em si. O azul dos cabelos de Jojo parecia desbotar, não com a idade que o poderia ter alcançado, mas pela quase perda total de si. Enojava-se a cada tangência nos pertences daquela criatura ignóbil, ao mesmo tempo que algo muito fraco dentro de si implorava pelo perdão compreensivo.

— Achaste algo por aí? — por trás de algumas prateleiras, e Jojo sentia, o Brando esgueirava-se, tocando em garrafas vazias de conteúdo, mas repletas de intenções. Mexia em potes pequenos, grandes, velhos e recentes, como as emoções que tilintavam entre as pétalas de seus amados e amargos. Com a avidez de uma vitória, encheu uma dessas garrafas com seu orgulho e um plano sedutor, tentador e perverso. No entanto, nem tudo é perfeito e está constantemente cambaleando nos dedos do fracasso. — Jonathan? — praticamente miou, enquanto escurecia o céu e escondia despretensiosamente os cacos. Ocultá-los talvez seja a maneira menos dolorosa de chegar até o âmago do azulado, mas o Brando não contava com tudo o que por lá havia.

Nove.

— Penso ter encontrado — Jonathan, agachado, parou-o com uma mão sobre o falso ventre. Acima de sua própria cabeça, o livro de capa negra sumia entre penas, mas reluzia no clarear fraco dos lampiões. — É este?

— É sim — os dedos esquálidos, cobertos por espinhos, alcançaram o livro e dispensaram-no com inconveniência. Falsamente, Dio deixou que o vidro de sua garrafa batesse contra a mesa. Os olhos acarminados forjaram um brilho embriagante e correram até os confins cor cerúlea de Jojo. A hora no relógio parecia passar rápido demais e Dio foi o primeiro lado a investir. Ou forçaria Jojo a baixar a guarda ou cairia junto dele.

Tombando a cabeça sobre o peito silencioso de Jonathan, Dio resmungou algo e pôs a garrafa sobre a escrivaninha. Guiou as mãos até os próprios suspensórios; os dedos que firmaram-se enquanto o caminho alheio era percorrido deram ao loiro a total ciência de cada efeito, sentido a palma de Jojo esquentar-se em seus contornos. Deslizou as tiras de couro pelas costas, tendo como guias as mãos do outro, pecando em cada músculo. Estava rendendo-se, mas não deixava cair a guarda dos olhares famintos.

No mundo, sempre há a infindável batalha do bem contra o mal. Desde jovens, eram ensinados que o caminho do mal era errado, mas nunca lhes fora dito o que era errado e por quê. Sendo assim, o bem perdia forças pela simples dúvida do certo ou errado, e, tamanho era o mal no mundo, o pouco bem que existia ia sumindo. E, na exaustão de ânsias semelhantes, o mal virou-se contra si próprio, numa luta sangrenta e dissimulada, onde os olhares jamais caiam por um simples instante. O primeiro a baixar a guarda perdia em todos os casos, mas, se isso fosse impossível, ambos cairiam juntos.

Nove e meia.

E o relógio apressava-se.

Dissimuladamente, Dio incentivava Jonathan a tocá-lo com cada vez mais volúpia. O volume crescente nas calças sociais tornaria-se um empecilho notório não fosse o rude puxão sofrido pelos quadris do loiro. A garrafa, que ainda permanecia nos arredores de Dio, rolou para um ponto onde permaneceria até que uma tangência eivada tirasse-a de lá. Como um par de criaturas maquiavélicas, Jonathan e Dio dissipavam-se um no outro, formando uma só essência tão libertina quanto aquela que Deus repugnou e expulsou de seu céu.

Enquanto o vazio do peito de Jojo ecoava rugidos furiosos, o Brando tentava enchê-lo com a doce malícia disfarçada de suas rosas, com a mansidão rouca de suas palavras e com a languidez de seus toques acalentados. Do lado de fora, a neve ameaçava cair a cada menear do pêndulo platinado do relógio. Mary ainda não voltara e, tarde como estava ficando – e como o rumo das coisas seguia no andar de cima – era melhor que não voltasse. Por motivos de temor aos próprios residentes, a casa estremeceu quando selou-se o beijo, aquele que marcou o início do fim. As porcelanas e cristais balançaram, ecoando gemidos de dor e desespero enquanto o frio assolava cada espaço dali. No quarto, o calor tendia a manipular os envolvidos, mantendo-se nos poucos arredores que os corpos deixavam desconectados.

Mãos apertavam firmemente os braços de Jonathan quando os olhos carmim abriram-se para fitá-lo. A luxúria era evidente e questionava-se do que Dio enxergava em si. Talvez fosse a passada inocência, o senso tolo que deixava-o ser tão facilmente enganado, ou então a relutância – tão passada quanto – em acreditar que o bem poderia sobrepor-se ao mal. Que Deus o perdoe, diria Mary, como sempre fazia aos maus comportamentos de um dos meninos. No entanto, era como se Jonathan ouvisse a voz do próprio pai a proferí-la, com uma tristeza carregada em seus tons graves. Estava imundo e era toda essa sujeira que movia-o até a beira do abismo, onde poderia afogar-se em quaisquer fossem os venenos, cortar-se em quantos espinhos quisesse e contornar em seu corpo, com cacos de vidro, cada erro cometido para que nunca mais se esquecesse. Mas Dio prendia-o ali, entre suas garras, com a maciez falsa de suas palmas e com o amor repleto de escárnio em seus lábios.

Um Gato Pulando A JanelaOnde histórias criam vida. Descubra agora