Nem tudo é o que parece ser

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De volta a seu castelo, Evie não tinha conseguido dormir. Talvez seus sonhos fossem atormentados por Malévola ou a barreira quebrada. Malévola não aceitava a amizade de Mal com a filha da Rainha Má. Anos poderiam ter se passado, mas Malévola e Rainha Má ainda eram aqui-inimigas, tudo isso para governar a Ilha dos Perdidos.

Evie se levantou e foi à sua escrivaninha, com alguns livros antigos de quando tinha aula em casa. Ela pegou seu favorito, um grimório de couro gasto que era o livro de feitiços da Rainha Má.

Até certo momento, aquele era um livro inútil, mas após a azulada ver o que a máquina de Carlos tinha causado, talvez a barreira estivesse ficando fraca com o tempo.

Evie gostava de ler os encantamentos. Era como um catálogo dos dias gloriosos de sua mãe, de tempos antes de ela gastar horas e horas inúteis perambulando pelas salas vazias do castelo imitando a voz do espelho. Fazia Evie se sentir melhor às vezes. Lembrar que as coisas nem sempre tinham sido assim.

A garota virou as páginas amareladas do livro de feitiços, como fazia quando era pequena. Ela se debruçou sobre ele do jeito que imaginava que as princesas aprendiam sobre as outras princesas.

Havia feitiço da verdade, envolvendo velas e água, encantos de amor que usavam pétalas de flor e sangue, sortilégios para a saúde e para a prosperidade, para a sorte e para o azar. Feitiços de disfarce eram seus favoritos, especialmente o de uma velha vendedora ambulante que sua mãe havia usado para enganar aquela tola da Branca de Neve. Esse era bom.

Um clássico, até.

— Oi, querida — disse a Rainha Má, entrando no quarto. — Está pálida de novo! Vamos colocar um pouco de blush! — ela pegou um aplicador e começou a colorir as bochechas de Evie. — Rosa como uma flor de maçã. Aí está. Muito melhor. — ela olhou o livro nas mãos da filha. — Ah, essa coisa velha? Eu não entendo. Por que é que você tá lendo isso de novo?

— Não sei. Talvez porque eu não consigo imaginar. Você fez mesmo esse feitiço? Você? — Evie não conseguia imaginar sua mãe como uma velha bruxa assustadora. Certo, ela podia ser cheinha, estar na meia-idade e não se parecer mais com o retrato formidável pendurado na sala principal, mas estava longe de ser feia.

— Ah, sim, isso foi o máximo! Branca de Necas de Inteligência foi totalmente enganada! Que loucura — a Rainha Má riu. — Quer dizer, oláá? Velinha vendedora de maçãs? No meio da floresta? — ela suspirou. — Ah! Bons tempos…

Evie balançou a cabeça.

— Ainda assim.

A Mãe mexeu nos cabelos dela.

— Espere. O que está fazendo aqui? Não deveria estar na escola?


Até o furo em seu telhado estava começando a parecer o Olho de Dragão.

Mal olhava para cima, observando o buraco de sua cama, paralisada. Tinha acordado supercedo, pois não conseguia dormir, pensando na missão para qual a mãe a havia despachado imediatamente. Malévola era assim: quando punha uma ideia na cabeça, nada podia detê-la. Não importava se era sua filha ou um de seus capangas. Ela queria que todos parassem e deixassem tudo de lado para fazer sua vontade.

Esse era o jeito Malévola de ser.

Mal sabia que não havia exceção para filhas, não se você era uma das piores vilãs da Ilha dos Perdidos. Era impossível ser o número um se você fosse piedosa, ou até mesmo racional.

Não quando você era parte da elite do mal.

Malévola queria o Olho de Dragão de volta, o que era ótimo e tudo mais, e a garota entendia. Mas descobrir onde ele estava na ilha era algo completamente diferente.

Pois é.

E Diablo não ajudava em nada. Tudo que o corvo fazia era soltar um barulho estranho quando Mal o cutucava.

— Onde está, D? Se você voltou à vida, então não deve estar muito longe, certo? Mas onde? — ele tentava bicar seus olhos quando ela vinha mais perto. Aquele pássaro idiota sempre quis Malévola só para ele. Ainda assim, para ele, Mal não chegava a ser uma ameaça, apenas um incômodo.

Por outro lado, outras coisas a perturbavam além de um simples pássaro.

As ameaças da mãe eram difíceis de ignorar. Como de costume, a feiticeira sabia exatamente onde bater. Ela encontrava os pontos fracos da filha hoje em dia tão facilmente quanto antigamente, quando ela ainda era um bebê e tinha uma moleira no topo da cabeça.

Você não quer provar seu valor para mim?

Prove que é digna do nome que eu lhe concedi!

Mal se virou em sua cama dura e barulhenta, irritada.

Ela não tinha um exército maligno sob seu comando. A garota se virava com o que tinha: latas de tinta roubadas, pegadinhas nos colegas de classe, um closet cheio de casacos de pele e armadilhas de caça. Certo, talvez ela não estivesse aprisionando castelos em sebes de espinhos, mas todo vilão tinha que começar de algum jeito, não é?

Mal se revirou de novo.

Reinava o silêncio no Castelo da Barganha, o que significava que Malévola ainda não tinha saído na sacada para discursar e humilhar seus súditos. Quando Mal finalmente escorregou para fora da cama, enfiando-se em sua roupa púrpura e saindo do quarto nas pontas dos pés, ela percebeu que a porta do quarto de sua mãe estava trancada, ou seja, Malévola não deveria ser perturbada em nenhuma circunstância. Ela fazia questão de dormir oito horas de “sono horrível” e recomendava uma dieta saudável de pesadelos para manter as garras afiadas.

Tinha funcionado para ela até agora, não é?

Mal nem pensou em desobedecer a mãe, descendo as escadas corroídas.

O Olho de Dragão era amaldiçoado, como Malévola havia contado a ela, o que significava que qualquer um que o tocasse imediatamente cairia no sono por mil anos. Essa era mesmo a especialidade de sua mãe: colocar as pessoas para dormir contra sua vontade. É claro, não tinha exatamente dado certo durante o desastre da Bela Adormecida, mas isso não queria dizer que o cetro do Olho de Dragão estaria menos poderoso agora. Quando Mal o encontrar, deve tomar cuidado para não tocá-lo e achar um jeito de trazê-lo de volta sem despertar a maldição.

Se ainda estiver funcionando.

Se eu conseguir encontrar.

Se é que ele existe.

Mal pegou sua mochila e se sentiu ainda pior. Nem mesmo o fato de ela ter colocado umas latas extras de spray na bolsa a animou.

Talvez Jay estivesse certo.

Talvez fosse idiota demais embarcar naquela busca. Ela nem sabia por onde começar a procurar a arma perdida de sua mãe, não importa o quão poderosa ela tenha sido.

Quem ela achava que era para encontrar algo sumido há tanto tempo? Era melhor deixar para lá e voltar para sua rotina de furtos e de espalhar papel higiênico por aí.

Além do mais, nada do que Mal fizesse mudaria a forma como sua mãe a via. Mesmo que ela conseguisse encontrar o Olho de Dragão, a garota sabia que não podia mudar quem fora seu pai, e no final Malévola jamais a perdoaria ou a deixaria esquecer isso.

Era a única coisa que Mal não podia consertar.

Então para que se importar?

Para que tentar?

Era melhor aceitar e seguir em frente. Era o que sua mãe esperava dela, afinal.

Falhar. Desapontar. Desistir. Entregar os pontos.

Assim como todo mundo neste lugar.

Mal abriu a porta do castelo e foi para a escola, tentando não pensar mais no assunto.

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