Poderoso Joe

29 3 0
                                    

Olá frondoso diário. Há dias venho ruminando uma possível forma de reatar minha estrambólica amizade com Joe.

Por vezes e outras nos vemos parados à frente de nossos portões de grades estreitas e frias - a não ser pelo fraco sol de Outono que trouxe um clima ameno, mas não menos corrosivo quanto nossos sorrisos amarelos e as cáries de Joe - nos encarando como duas crianças ranhentas de doze anos que não  podem brincar de bola na rua.

Bem é verdade que nos falamos alguns raros momentos, mas minha confiança no ex amigo já não brindava mais meu âmago, não a ponto de nos vermos envoltos à conversas frívolas e juvenis.

Joe pouco se importava com meus receios, apenas queria reaver sua rotina de tardes amistosas onde eu era o único amigo que perdia consecutivamente no vídeo game fazendo-o sentir-se o galo da vez.

Apesar de seus defeitos irritantes, não me via à vontade com Paulo. Certas conversas haveria de ter apenas com Joe, mesmo que sem conclusão ou alguma a qual eu mesmo arranjara para encerrar o assunto.

Joe é metido à esperto, brincalhão,  exaltado em seus modos e avesso à padrões de higiene, mas qualquer argumento de nada me servia para afastar a ideia de resgatar nossa relação conturbada. Ainda mais minha humilde, mas nem tão  humilde pessoa ter que dar o primeiro passo.

É. De fato nos falamos, mas apenas como conhecidos e isso é pouco, aliás, não justo para quem necessitava de desculpas. Joe foi canalha com a história de me forçar a ter relações com uma garota a qual não via interesse. Me senti traído ao extremo e vê-lo indiferente me torna ainda mais colérico.

Aproveitando a visita de uma tia de minha mãe a qual sempre fora apontada como uma pessoa sensata, relatei, sem jeito consta-se nos altos, os últimos acontecimentos. Eis que ouço:

- Teddy, confiança é algo que precisamos para nos sentirmos seguros o que traz a ideia de egoísmo, uma necessidade unilateral e não altruísta.

- Como assim Tia? - A chamava assim por preguiça de buscar a nomenclatura correta.

- Joe agiu conforme a forma dele ver a vida e não da sua forma de a ver.

- Então o egoísta é ele.

- E quanto à você? Agiu como uma criança mimada que não aceita que nessa fase moleque só tem bobeiras na cabeça.

- Então eu não devo confiar em ninguém?

- A questão aqui não é confiar Teddy. Eu mesma não confio em nada desde que inventaram a farinha de trigo com fermento.

Me vi intrigado com suas palavras porque realmente trigo com fermento não funciona. Meu bolo de aniversário de dez anos confirma sistematicamente essa premissa.

- O fato é porque precisa confiar tanto?

- Tia. Vou sair por aí confiando em tudo e em todos pra não ser egoísta? Quer dizer que eu devo ir até o joe pedir desculpas por ser ingênuo?

- Desculpas, desculpas... Duas palavras bobas Teddy: Confiança e desculpa. Acha mesmo que seu amigo deve lhe pedir desculpas por ser quem é?

Refleti o suficiente pra achar a infantilidade citada ao início da conversa.

- Realmente. Joe tem certa dificuldade em distinguir algumas coisas que possam magoar os outros - Admito, vencido e levemente envergonhado.

- E nem você deve se desculpar Teddy. Você estava certo em não querer fazer o que não sentia ser correto, mas Joe não se afastou de você por isso...

- Seria até ridículo né?

- Você acha? Quando você deixou claro que não queria sair com a garota?

- Nem precisava né tia?

- Não mesmo? Então tá.  Quando vocês voltaram a falar sobre o assunto?

- Não falamos.

- Você saiu da escola e nem avisou seu amigo e quer que ele te peça desculpas?

- Agora eu sou o errado mesmo. Deixa o Joe lá, o cheio de razão.

A mulher a minha frente ri aquele riso
de quem sabe que não adianta argumentar, pois o outro está cego para a verdade. Apenas se vira com algum punhado de alguma coisa a qual nem identifiquei por achar o cúmulo ser o bufão da história.

Ao sair de casa, inconformado com as palavras daquela abusada tia de algum grau me deparei com Joe apertando parafusos de uma antiga bike. Se bem me lembro fora ganho por seu pai o qual após treze anos de casado descobrira que fora apenas um cuidador, pois o pai estava à quilômetros de distância. Me lembro do dia que beijara o rosto do pequeno Joe e saíra para nunca mais voltar.

De assalto uma  cena me rouba esse primeiro momento de devaneio.
Joe sentado em frente ao portão olhando para o lado que provavelmente seu pai apareceria.

Não fora um dia. Nem foram vários. Todos os dias Joe inventava algo para fazer no portão e não era bem procurar minha companhia. Talvez ter me a seu lado lhe ajudava engolir a seco a realidade que seu pai não iria  retornar.

Me vi tão pequeno por um momento enquanto encarava aquele jovem resistente às agruras da vida. Sua mãe aparece uma vez por mês com um cara ou outro. Nesse dia Joe sai, e para onde?

O egoísmo citado anteriormente lascou um belo tapa no meu rosto. Sem jeito parte dois, me dirigi até o portão de Joe, mas desta vez porque almejei e não por cordialidade.

Ele ergueu o rosto com os olhos cerrados pelo fio de sol que achou de se jogar exclusivamente sobre ele. Abri o portão,  me abaixei e comecei a lhe entregar as roscas para encontrar a que melhor se encaixa aos parafusos. Não mais me encarou. Voltou rapidamente a se concentrar no que estava fazendo.

- Cadê seu amigo gravatinha?

- Sei lá. Não moro com ele.

Joe voltou-se pra mim com um largo sorriso.

- Respondão.

Passei outra rosca a qual se encaixa perfeitamente ao parafuso.

- Essa bike ainda está maneira - Observei.

- Vou dar uma volta.

Me levantei prontamente.

- Tudo bem. Depois nos falamos.

Joe riu como se não possuísse cáries.

- Pega sua bike zé ruela.

- Mas o único Zé ruela é você rosqueando esse parafuso igual doido.

Rimos de balançar os ombros. Peguei minha bike que estava em ótimas condições, pois Aninha ainda usa para ir às aulas de inglês na casa de uma americana naturalizada no Brasil. Aninha já é craque na língua o que enche minha mãe de orgulho. Enfim, subimos em nossas magrelas e deixamos que o sol vestido de frio nos abraçassem.

Não foi preciso combinarmos o rumo. Apenas seguimos, pois havia algo que ia além da confiança envolvida nesse momento, tínhamos familiaridade, tínhamos um itinerário intrínseco, fruto das reminiscências da infância. Não. Não era questão de confiança, era sim, isso sim, questão de respeito às diferenças.

Joe não era meu amigo por questões óbvias e sim por ser um sobrevivente, a dor de perder em vida, quem mais confiou sem ao menos saber o porquê e sem ao menos poder perguntar.

Enquanto seguimos olho para meu amigo de uma forma como nunca o havia visto. Nunca mais o afastaria de nossa família, a única a qual ele se sentia seguro.

- Teddy preciso te pedir uma coisa...

- Deixa pra lá Joe. Está tudo bem.

- Não, não é isso.

- Então?

- Posso jantar na sua casa? Meu arroz acabou.

- Hoje vamos para um restaurante.

- Ah. Entendi.

- Não Joe. Nós de você também.

Sorriu satisfeito e seguimos, de volta pra casa, rápido, pois havia três dias que Joe não jantara. Ah, íamos levar minha tia avó para jantar também.

TEDDY O COITADINHOOnde histórias criam vida. Descubra agora