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A voz de John Mayer propaga-se por cada canto do carro. Pelo espelho retrovisor consigo ver o sorriso da minha mãe. Não sei ao certo do que tamanho é o mundo, mas sei que as dimensões dele e do sorriso dela neste momento são iguais.
Hoje o sol irradia a cidade. A minha mão está de fora do carro e o vento frio de inverno atravessa os meus dedos. Sempre gostei de sentir isto. É possível tocar-lhe mas nunca de o prender na nossa mão. Ele escapa-se por entre os dedos, e só numa fração de segundo é que podemos tê-lo como nosso. São estes momentos que me fazem esquecer todos os tormentos da vida. São estas viagens de carro com a música nas alturas, com o vento a bater nos cabelos que levam a tristeza para longe e que trazem a gratidão de poder ainda sentir o perfume da minha mãe espalhar-se pelo ar. É nestes momentos em que o meu corpo se recarrega para depois transformar toda esta alegria em lágrimas das próximas noites. O mundo é tão incerto, a vida é tão irónica. Num dia pensamos que nada da nossa vida nos traz felicidade, que não temos nada, e no outro somos confrontados com isto. Com o terrível cancro que leva tudo e que não deixa nada. Podemos achar que somos os maiores sofredores da Terra, que a dor decidiu habitar em nós, mas somos uns parvos.  Enquanto seres humanos tentar agarrar a vida nós tentamos viver um dia de cada vez. Talvez porque não temos tudo o que queremos, talvez porque não nos sentimos felizes o suficiente, amados o suficiente. E esquecemos-nos dela. Da vida.

Aproximadamente vinte minutos depois, o cheiro do rio Douro invade as minhas narinas. Turistas passeiam à beira rio e algumas crianças ocupam-se na ciclovia com os seus pais. Quando o meu pai estaciona o carro, saímos em direção às mesas perto do areal.
-Escolhemos mesmo bem o dia para passear de barco -  a minha mãe diz.
-O quê? - eu e o meu pai dizemos ao mesmo tempo.
-Sim! Está um belo dia para uma viagem de barco.
-Mãe, o quê que tu fizeste? - pergunto um pouco irritada.
-A tua mãe comprou cinco bilhetes para conhecermos o Douro.
-Cinco? A Joana também vem? - o meu pai pergunta.
-Sim. Falei com ela ontem ao telefone quando já estavas a dormir.
-Mãe, já não sei o que te dizer. Bom pelo menos não é um safari. 
-O quê? - a minha mãe questiona confusa. 
-Nada, Helena. Não é nada- diz o meu pai entre gargalhadas.
-Chegaram! - grita a minha mãe e o seu sorriso-mundo volta a iluminar o dia.
Ao longe, vejo a minha irmã e Pedro, o seu namorado de longa data. Eles começaram a namorar no início do secundário e agora, já formados, continuam a amar-se com a mesma intensidade. Deus, como os odeio! Quer dizer, isto não é ódio, apenas tenho um pouco de inveja por eles terem o que sempre sonhei para mim. Ou então sonhava antes de perceber que não conseguiria viver sem outras coisas mais importantes.
-Olá família! - a minha irmã saúda.
-Olá filha - diz a minha mãe sem deixar de sorrir - Estou tão feliz por estarem aqui todos. Obrigada - Ela tenta parecer forte mas lágrimas surgem em cada canto dos seus olhos.
-Claro que nós viríamos mãe. - a minha irmã responde enquanto a envolve nos braços.
- Bem, vamos lá que o barco não espera por nós! - o meu pai interrompe o momento cliché.             -Barco? Então não era só um almoço? - questiona a minha irmã.                                                                   -Já não sabes como é que é a mãe?- digo enquanto sorrio.

Estou um pouco nervosa. Nunca andei de barco, e andar num deles nunca foi um dos meus maiores desejos. Não percebo como uma coisa feita de tábuas de madeira e tão pesada não é engolido pela água. Água. Muita água. A minha mente trabalha a mil à hora! O meu corpo está paralisada no meio do cais. Não! Mãe não podes entrar nesse barco! Tento dizer mas ninguém me ouve.
-O que se passa Mi? - sinto uma mão quente no meu braço.
-Mãe... não...não! Eu não consigo... não não podemos... tu não podes... não... não.
-Ei, filha, está tudo bem. Não me vai acontecer nada, ouviste? Vamos só dar um passeio pelo rio e depois voltamos para casa. Vamos ver todos os filmes do Nicholas Sparks enquanto comemos gelado e pipocas. Como fazíamos antes.- Antes? Parece que vivo num universo paralelo. Parece que todos os momentos de felicidade passados com a minha mãe foram à anos e não à quatro meses atrás.
Agarro-me a ela com todas as forças que tenho. Não a posso perder. Como vou poder eu encarar o mundo sem ela? Como pode ela não estar presente nas minhas maiores conquistas? Quando os meus filhos nascerem? Quem é que os irá buscar à escola quando eu estiver retida no trabalho? Não posso. É impossível viver num mundo onde não consigo ouvir a minha mãe a cantar na cozinha enquanto lava a louça. Num mundo em que não a tenha a gritar comigo quando cometo erros. Num mundo onde o seu sorriso não exista. Num mundo onde não exista a sua luz. Num mundo triste. De trevas. De mágoas.

- Anda filha. Vamos ter com eles. 
Agarro a mão da minha mãe e um senhor vestido com um fato acena-nos enquanto nos manda entrar naquele barco.

Lentamente, todos os fantasmas vão para o fundo do mar. A minha mãe continua a agarrar-me a mão e confortou-me durante todo o início da viagem. Agora estou mais calma. O rio transmite-me paz. O sol penetra na minha alma. O dia torna-se cada vez mais bonito. A minha mente vai ficando mais clara. O meu coração volta a bater no ritmo normal.
O Porto é realmente bonito. As cores das casas, o verde azulado do rio, os casais que passeiam na ribeira enquanto trocam juras de amor, a ponte D. Luís I que se enche de cadeados em nome de amores que aqui ficaram prometidos, o rio que hoje está calmo, a vida que se vai tornando mais bonita por uns minutos.
A minha irmã e o Pedro trocam alguns beijos e pedem-me para tirar fotografias. Agora já não sinto nenhum rancor em relação a eles. A minha irmã é feliz, passamos pelo mesmo na vida, mas ela teve a sorte de encontrar alguém para amar mais cedo que eu. E está tudo bem. Tudo vai ficar bem. Eu vou encontrar isto. Vou encontrar a felicidade. Vou poder encontrar um par de asas que me embale quando toda eu for tempestade.

Quando saímos do barco, o meu pai estende uma toalha em cima da mesa de pedra e coloca o almoço em cima da mesa. E nesse momento percebo que nos esquecemos de o preparar. Olho para o meu pai com cara de espanto. Ele sorri e olha para a minha mãe e depois para mim. Olho para a minha mãe e sorrio.  Ela olha para mim e arregala uma sobrancelha. Abano a cabeça e pego numa sande que está etiquetada com as palavras "atum e maionese". Como posso sobreviver num mundo onde as sandes não são etiquetadas pela minha mãe?
O resto da tarde é passado no rio a jogar às cartas, a relaxar, a recordar tempos antigos e a ter dores de barriga de tanto rir.

Ao por do Sol, decidimos que está na hora de ir para casa. A minha mãe convida a minha irmã e o Pedro para jantarem uns grelhados feitos na nova churrasqueira do meu pai, mas ela diz que já tem planos. Vai ver um concerto ao qual Pedro lhe tivera oferecido os bilhetes no seu aniversário. Elas despedem-se com um abraço apertado e trocam umas palavras que nos fazem desabar em lágrimas.
Quando chego a casa, entro no quarto e vou tomar um banho. Visto o pijama e amarro o cabelo num coque bagunçado.
Desço as escadas e encontro a minha mãe também de pijama deitada no  chaise longue do sofá da sala.
-Já mandei vir piza e já fui procurar todos os filmes do nosso autor favorito no Netflix.
A minha mãe, tal como eu, é uma romântica incurável. Acho que herdei isso dela. Ambas choramos ao ver filmes, adoramos ler romances e desde que me lembro, oferecemos livros uma à outra e quando acabamos de os ler, trocamos os livros e fazemos comentários sobre os mesmos ao pequeno almoço, almoço, jantar, ceia e o meu pai fica a olhar para nós com cara de quem não percebe nada. Chega até a ser engraçado.
-Podia pedir melhor?- pergunto ao tentar conter as lágrimas. Pode ser a última vez que isto acontece.
-Anda filha, senta-te aqui à minha beira. 
E assim passamos a noite. Com lágrimas de duas românticas, com os restos de pizza e o pote de gelado em cima da mesa da sala. E amor. Muito amor.

Nas tuas asasOnde histórias criam vida. Descubra agora