E se o mundo deixasse de nos quebrar? Será que encontraríamos a felicidade ou será que o nosso inconsciente encontraria novos motivos para nos deixar quebrados?
Acordei com a chuva forte que embatia na janela do meu quarto. Era de manhã. Mais uma manhã em que, sem saber bem como, acordei no meio da cama por cima dos lençóis. Sem meias, com o cabelo no ar e sem vontade nenhuma de abrir os olhos a um mundo em que só encontrava razões para me sentir ainda mais quebrada do que o normal.
Estranhamente acordei cedo. Muito mais cedo do que o normal. Sem desligar os cinco despertadores que tenho programados para a mesma hora da manhã. Nem no mundo dos sonhos consigo encontrar paz para a minha mente.
Levanto-me da cama, um pouco sem saber em que dia da semana estou, mas rapidamente percebo que é quarta. E que ontem foi terça. E que ontem tive um jantar na casa das pessoas que "não são assim tão simples". E que ontem quase estive perto de ter um orgasmo só por sentir o Dinis tão perto de mim. Mas não tive. E porquê? Porque o Dinis é um rapaz fodido da cabeça. É que só o pode ser mesmo.
Tira esses pensamentos da cabeça Matilde, tira esses pensamentos da cabeça! Respiro fundo e tento voltar ao mundo, apesar de existirem pessoas que só parece que sabem mexer com o nosso psicológico.
Voltando ao mundo real, dirijo-me à casa de banho e deixo a água do duche a correr enquanto tiro o pijama. Quando me baixo para o apanhar do chão, dou de caras, mais uma vez, com o meu corpo nu no espelho. São tantas cicatrizes. Não são visíveis mas estão lá. Demasiadas vezes a ser quebrada pela vida. A ficar à deriva num mar de lágrimas. A viver num constante sobressalto. A viver não. A sobreviver. Apesar da gordura do meu corpo ser muita, ela não consegue esconder as cicatrizes. Apesar de ter um corpo que funciona como uma espécie de capa que as esconde, ninguém consegue olhar para mim sem perceber o quanto a vida já me feriu. Porque as cicatrizes deste meu corpo, que não são muitas, foram as suficientes para que ele marcasse a sua presença em mim. E essas cicatrizes não são visíveis. As verdadeiras cicatrizes estão na alma. Estão continuamente presentes nela. Nesta minha alma. Que já nem é alma. São só pequenos pedaços de caus que tentam permanecer colados. Porém essa cola que os une não é forte o suficiente para o manter unidos durante muito tempo. E às vezes eles soltam-se. Andam perdidos dentro do meu corpo. Com vontade de fugir dele como todos os outros o fizeram. E é nesses dias que me perco cada vez mais um pouco. E lá vou eu outra vez. A repetir o processo de união. A tentar colar esses pequenos pedaços de mim. Mas de cada vez que me quebro, menos vontade tenho de voltar a ser outra vez meia inteira.
-Matilde, esse chuveiro já está com a água a correr à horas! Matilde!
Perco-me do meu devaneio com o meu pai a bater com um pouco de força a mais na porta da casa de banho.
-Está bem. Ah... já percebi. Desculpa...
Pagar um pouco mais de água ao final do mês não é nada comparado ao que fizeste à minha alma.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Nas tuas asas
Romance"Nas tuas asas" somos transportados para o universo de Matilde e de Dinis, que encontraram um no outro a cura para as doenças das suas almas feridas. Porque depois de todas as tempestades, alguns ninhos resistem. Porque o amor acaba sempre por nos e...