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Dia de tempestade. Dia de chuva e de alma de vento.
Hoje as minhas aulas só começam às duas e meia por isso aproveito a manhã para tratar de alguns trabalhos, arrumar o quarto e correr. Consigo fazer tudo isto porque acordei às seis da manhã com mais pesadelos. Quando é que isto vai acabar?

Desço as escadas e vou ter à sala. A minha mãe ainda está lá mas agora a sala já não cheira a vómito, mas sim a flores. Ela tomou banho. Vestiu uma roupa bonita mas confortável, colocou um lenço coral, com algumas flores, na cabeça e uns brincos pequenos. Acho que é a sua tentativa de apagar da minha mente o que se passou ontem.
-Bom dia Mi -  ela diz com um meio sorriso.
-Olá mãe. Sentes-te melhor? Precisas de alguma coisa?
-Sim filha, estou bem. Foi só uma recaída. Não, não preciso de nada. Onde vais? 
Ela olha para a minha roupa desportiva e para os meus ténis.
-Vou correr...mas volto já -  tranquilizo.
-Está bem. Até já e boa corrida. 

Saio de casa e com os auscultadores enfiados nos ouvidos, começo a correr com a maior garra que consigo. Como eu preciso disto!

Paro na beira da estrada para fazer alguns alongamentos. Quando olho para a frente, a mata do outro dia aparece novamente no meu campo de visão. Decido percorrer o caminho de terra batida que me faz direcionar para aquela estrutura branca. É mesmo uma tenda. E é grande. Tem pelo menos dois metros e meio de altura. Aparenta-se com uma fortaleza de alguém. Dou uma volta em torno dela e tudo isso me transmite calma. Algumas eras começam a subir pelas suas paredes, o que torna tudo ainda mais bonito. Quando chego às traseiras fico espantada. A vista é incrível. Ouço água. Um ribeiro com água cristalina surge no meio de alguma vegetação e, no outro lado da margem, existe um campo enorme. Árvores e mais árvores sem folhas enchem todo o terreno. Numa das árvores mais altas existe um baloiço feito com uma tábua de madeira e uns fios resistentes. 

Volto a andar em direção à porta principal da tenda. Ela não está totalmente fechada. Percebo rapidamente que alguém está lá dentro e que ouviu o som dos meus pés a partir uns paus. Saio de lá o mais depressa que consigo mas uma voz com um timbre tão singular mas tão bonito não deixa os meus pés andar.
-Ei, quem és tu?" -  a voz propaga-se na mata (e por cada centímetro do meu corpo).
Nesse momento viro-me para encarar esse timbre que tanto me chama. Um rapaz de cabelos castanhos ondulados mas curtos, olhos verdes, rosto triangular, pele morena, e uns lábios carnudos, é quem me chama.
-Então? - ele volta a dizer com firmeza.
Percebo que fiquei sem dizer nada durante uns minutos. Fiquei a encara-lo nesse tempo.
-Desculpa, eu não devia de ter aparecido aqui - respondo mas não à sua pergunta.
-Isso até que é um pouco verdade, mas tecnicamente este terreno é público, não te posso culpar por teres aparecido. 
Os meus olhos são completamente consumidos por todos os movimentos que este rapaz sem nome faz ao comunicar-se comigo.
-Ainda não respondeste à minha pergunta. Quem és tu e o que fazes aqui? -  ele continua a sua fala.
-Ah pois, sim. Eu sou a Matilde e costumo correr por aqui e hoje encontrei este caminho de terra e fiquei curiosa. 
-E saciaste essa curiosidade? -  ele pergunta com um rosto indecifrável.
-Sim- digo. Não consigo perceber o que sinto. O meu coração bate muito rapidamente, estou com calor, muito calor, nervosa até. Não consigo ser eu própria. Não consigo estar tranquila.
-Não existe mais nada que te deixe curiosa?
-Tu és um bocado convencido não achas? - respondo com a maior frieza que consigo.
-Quem disse que estava a falar de mim? Podia estar a referir-me ao que se encontra dentro da tenda.
-Eu sei o que rapazes como tu querem dizer com as palavras.
-Rapazes como eu? Nem me conheces e já me estás a integrar num grupo?
Olho para ele, e tenho a certeza que consigo transparecer bem a minha raiva. Alguns minutos depois de nos encarar-mos, e de eu não conseguir decifrar os seus pensamentos, ele aproxima-se de mim. O seu peito sobe e desce muito rapidamente como se ele fosse um predador, e eu, uma presa fácil. Um dos seus braços fazem com que eu me aproxime dele. Os nossos narizes tocam-se e as nossas bocas estão entreabertas. O que é isto? O que é isto que sinto dentro de mim? Será desejo? Será a vontade de querer alguém? Será o que todos sentem quando desejam alguém?
Nesse momento um trovão é ouvido ao longe. Segundos depois, a chuva forte embala a Terra. No mesmo instante a lucidez volta a surgir no meu corpo. Afasto-o de mim e fujo daquela bolha. Corro o mais depressa que consigo até meio do caminho e paro no meio da estrada.
Estou sem fôlego, com o coração a bater mais rapidamente que nunca. O que foi aquilo? Como é que me envolvi tanto no momento? Como é que senti tudo isto com um desconhecido?
Como é que o mundo desapareceu por uns momentos? Como é que ele fez a minha pele arder só com o seu toque?

Respiro fundo muitas vezes seguidas e volto a correr por entre a chuva até chegar a casa.

Nas tuas asasOnde histórias criam vida. Descubra agora