Capítulo 1

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"Me sinto tão estranho aqui
Diferente de você, irmão
A sua forma e distorção
Não pareço com ninguém, sei lá

Pois eu sei que nós temos o mesmo destino então
'Tô tentando me encontrar
'Tô tentando me entender
Por que 'tá tudo assim?

Meus olhos grandes de medo
Revelam a solução
Meu coração tem segredos
Que movem a solidão, a solidão"

Acordo num sobressalto, envolvida pelo escuro do meu quarto constatando o silencio total no apartamento. Decido que foi o som seco da porta batendo que me fez despertar de modo tão abrupto.

São cinco e trinta, o que me faz ter certeza de que sim, foi a porta.

Ergo-me numa preguiça destacável, passando rapidamente em minha mente, a agenda do dia, algo que me dispus a fazer nos últimos meses por necessidade pessoal. Tenho metas para bater e possíveis clientes em destaque. Há boas possibilidades para o dia dar certo, diagnostico mentalmente, sorrindo enquanto caminho com passos suaves em direção a cozinha.

— Desculpe, não foi minha intenção acorda-la.

— Imagine Caio. — Alcanço sua figura jovem em pé, à beira do fogão aguardando a água do café ferver. — Aproveito para dar uma caminhada pelo quarteirão.

— Ainda está escuro lá fora. — Ele alerta, direcionando uma expressão séria primeiro, até que sorri por fim, ao passar os olhos para mim. — Está bonita. O que andou aprontando?

— Cabelos? — Passo as mãos entre as madeixas castanhas, constatando o volume e o brilho das mexas. — Colori — respondo quando ele faz um sinal positivo — tirei um pouco do vermelho, estava muito opaco.

— Decidiu seguir minhas recomendações, finalmente.

— Sim.

Há um bom tempo não mudo o visual.

Nos últimos dias, tenho sentido essa necessidade de mudança, de me sentir diferente. É como se houvesse um ímpeto dentro de mim, que me seduzisse a querer fazer algo novo e forte.

— Fez bem. Estava precisando, aliás.

Perpasso meus olhos em seu rosto jovem com resquício de maquiagem e posso dizer que o conheço o bastante, para saber que não está em um bom dia. Caio é alegre, bonito e positivo. Aos vinte e dois anos, levava a sério seu trabalho como Fernanda Night Glow com shows drags, além de atuar em aniversários e eventos. No início, ele teve dificuldade em assumir sua profissão como drag queen, algo que exigia muito talento e personalidade. E mesmo questionado quanto a sua preferência sexual, ele sempre se assumiu hétero e, nunca teve problemas de existência.

"O problema, está na cabeça das pessoas." Ele vivia repetindo em casa.

Hoje eu penso se este foi o principal motivo que o fez se afastar da família e dos amigos. Caio gostava de se vestir como mulher, mas não significava que era uma. Ponto. Meu irmão estava feliz, com sua profissão, com seus shows e com sua nova namorada, a Pamela.

— Como foi o show? — Pergunto suave, compreendendo que algo pode ter dado errado em algum momento.

— Uma merda. — Reage num sopro, desfocando de sua tarefa em coar o café. — Um bando de gente acaralhada que finge que gosta do que está fazendo. Bando de hipócritas!

— Hei — o consolo tocando seu ombro — vai ficar tudo bem.

— Não vai. É cansativo Lili, é desumano o que fazem com a gente.

Meu coração sangra quando percebo que vai chorar. Caio é sensível acima de tudo, e posso compreender que suas decisões em se manter como transformista, teve um preço. Estava tendo, na verdade.

O Poder Da SeduçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora