29- Bonito Pra Chover

22 4 0
                                    

De onde eu venho, quando o céu está nublado, nós dizemos que está bonito para chover. E é assim que o céu está hoje. Eu estava em Chicago, nesse momento, na casa do George (pai do Colin) que morava junto com a Mary, sua atual esposa, e eles tinham o pequeno Brian de cinco meses.

Brian era fofo, ele lembrava um pouco o Colin. Ele era quieto, observador, tinha uns olhões acinzentados que combinavam perfeitamente com as bochechas enormes, tão boas de apertar. Era engraçada essa eterna vontade de apertar as bochechas de um neném gorducho.

Enfim, quando chegamos Mary já sabia quem eu era. Nesse instante todos sabem quem eu sou. Pois eu sou a vítima de uma invasão; De um ataque; De uma crueldade. Porém, também sou a eterna culpada pelo sofrimento de um ator muito querido e sou, ainda mais, uma mãe horrível por não ter comparecido ao velório do próprio filho. Eu sou julgada o tempo todo; a cada passo; a cada olhar lançado. As pessoas não me entendem ou não querem entender, na verdade, eu não estou me importando com nada disso. Na verdade, nos últimos dias, poucas coisas tem real importância pra mim.

A casa da família do Colin era tipicamente americana. Era uma pequena propriedade de dois andares, daquelas com janelas enormes na frente. Eu ficava ali boa parte do tempo. Escrevendo. Trabalhando a todo vapor.

Mary veio, como em todas as tardes, me convidar para ir ao parque, no entanto, como em todas as tardes, eu declinei do convite alegando ter muito trabalho a fazer. Uma total mentira, afinal já estava duas semanas a frente da quantidade de artigos incumbidos a mim.

-Vai chover em breve. Eu acho. – Falei com hesitação na minha voz.

-Você está certa. Bem, Brian está entretido com uns brinquedos novos e os rapazes não voltarão até tarde da noite. Vamos tomar um chá?

George e Mary abriram uma lanchonete quando ainda eram apenas amigos. Eles se conheceram no A.A. e juntos se ajudam a permanecerem sóbrios. A lanchonete cresceu e hoje tem algumas filiais, esse foi um dos motivos de ele ter ido a Londres daquela vez.

O sorriso dela foi o golpe que me incapacitou de negar o convite. Ela trouxe uma bandeja com uma boa variedade de chás.

-Colin parece estar gostando de ajudar o pai. – Ela disse enquanto nos servia, parecia querer colher informações.

-Ele está feliz. – Respondi calmamente.

-Bonita a amizade de vocês. – Falou colocando a sua máscara mais simpática.

Mary realmente queria informações, eu comecei a me perguntar quando o assunto chegaria a minha relação com o Tom.

-Obrigada. – Forcei um sorriso. – Colin é muito importante pra mim.

Ela se aproximou colocando uma mão na minha.

-Você está bem?

Eu a encarei por um tempo antes de baixar a cabeça. Não a respondi. Não conseguiria.

Mary passou a me contar sobre a filosofia do A.A. e sobre como botar pra fora os seus problemas muitas vezes ajudava. Simplesmente falar para pessoas atentas e sem julgamentos.

-Isso não é pra mim. – Respondi. – Estou bem. – Minha voz saiu trêmula.

-Ninguém pode estar bem depois de perder um filho, principalmente uma mãe. – Disse ela.

Ela chegou ao ponto em que queria. Senti-me encurralada, como um ratinho preso em um canto de uma sala com vários humanos tentando pegá-lo. Ele não era culpado por estar ali, mas ele já estava sentenciado à morte.

Minha sentença era diferente, porém igualmente dolorosa. As lembranças daquela fatídica noite jorravam na minha mente enquanto comecei a me abrir para aquela mulher. Acontecia como em um sonho no qual você não é o dono da ação, pois está apenas se observando e perguntando a si mesmo qual o motivo daquele ato, sem ter qualquer capacidade de pará-lo.

-Eu não chorei.

-O que? – Disse ela.

-Eu não chorei quando Arthur morreu. Apenas desmaiei. Isso é engraçado...

-Por quê?

-Porque eu acordo chorando todos os dias, desde então.

-O que aconteceu?

Com seu jeito delicado Mary conseguiu me fazer falar. Contei a ela detalhes que nem sabia ter prestado atenção. Como o cheiro amadeirado que aquela garota exalava, ela usava o perfume do Tom. Seu olhar fixo e enlouquecido, seu sorriso cínico e suas mãos trêmulas. O quanto repetia que eu não merecia o Tom, que ela era seu verdadeiro amor e eu apenas estragava tudo.

O meu maior medo sempre foi da morte, mas naquele instante o medo do Arthur morrer era maior. Como uma idiota eu coloquei a mão na frente da barriga, como se aquilo fosse parar uma bala, eu narrei a Mary.

-É uma reação comum. – Ela disse.

Isso era pra me confortar?

Pessoas tendem a transformar teu erro em algo comum a todos na tentativa de te fazerem sentir-se melhor. Eu nunca me sentia melhor. Eu sempre pensava que poderia ter feito algo diferente. 

Mas, o que? 

Eu nunca tinha essa resposta.

-Lembro-me de sapatos.

-Sapatos?

-Sim... Sapatos e sons. O som do rosnado do Slash, o som da bala saindo da arma, o som dele sendo atingido, o som do meu corpo caindo da escada, o som dos gritos dela e de outras pessoas de fora.

-E quanto aos sapatos?

-O sapato preto do Matt, ele foi o primeiro a chegar, pois ia passear com o Slash. Os sapatos dos paramédicos, das enfermeiras e os sons novamente... Conversas, eles me falavam coisas, no entanto eu não entendia nada. Era como se tivesse esquecido o idioma.

-E quanto ao seu noivo?

Bingo. Chegamos ao Tom, porém, sinto muito possível fã exasperada, eu não tenho a mínima vontade de falar a respeito dele.

-Sinto muito, mas minha cabeça está estourando.

Sem dizer mais nada, eu apenas levantei e fui deitar. Eu não a conhecia o suficiente para contar mais detalhes. Nem conseguia me abrir para os meus amigos. A forma como essa mulher me fez falar foi incrível, porém no momento estava com sensação de que havia me aberto excessivamente.  

The love between usOnde histórias criam vida. Descubra agora