𝒆𝒂𝒔𝒚 𝒄𝒐𝒎𝒆, 𝒆𝒂𝒔𝒚 𝒈𝒐.

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Cape May, 28 de setembro de 2019.

Medicina.

Era o que eu queria e de fato, iria cursar na faculdade. Lembro-me de quando fixei a ideia em minha cabeça, passei uma semana dormindo às 4 da manhã lendo livros sobre anatomia humana.

Aprendi que nosso cérebro tem dezesseis tipos de neurônios diferentes, decorei o nome de cada um.

Aprendi remédios que dariam reações com algum tipo de remédio, doenças incomuns de certas pessoas e um tipo de doença em um certo continente.

Eu sabia que seria difícil, sabia disso. Sabia que chegar a Harvard seria muito difícil. Eu ainda teria de passar muitas noites em claro para alcançar meu sonho.

Mas eu tinha outras opções se Harvard não me aceitasse, claro. NYU, ou alguma universidade da Califórnia. Eu poderia facilmente ir morar com minha tia na Califórnia. É, eu bem que podia.

E eu vi todos esses sonhos, metas e desejos derreterem por meus dedos enquanto Jack Grazer sangrava incessantemente no chão à minha frente.

— Jack, calma, por favor!

Minha mão pressionava fortemente o corte desleixado feito na lateral de sua barriga. O garoto chorava e gritava. Esperneava ao que eu tentava conter o sangramento. Noah chegou correndo, com a caixinha de primeiros socorros e me entregou. Ele olhava com pena para o garoto sangrando, os outros faziam o mesmo.

— Tudo bem, eu só vou costurar, ok? Só costurar. — Os olhos dele se arregalaram tanto que achei que pudessem pular. Ele se desesperou, negando freneticamente com a cabeça, e eu? Bom, eu afirmava pra ele de volta.

— Isso é mesmo necessário? — A voz de Sadie se fez presente, agoniada provavelmente. E eu apenas assenti.

— Vai ser apenas um furinho, é uma agulha, não vai doer tanto. — O garoto soltou um muxoxo quando viu a agulha e o pedaço de linha fina e branca em minhas mãos.

O que eu poderia fazer? Os equipamentos não eram adequados, o máximo foi passar álcool em tudo e torcer para que aquilo estivesse desinfetado.

Desde sempre, me fascinei com a ideia de literalmente poder mexer em um corpo humano. Poder descobrir tudo que havia por dentro. Mas não em um corpo humano vivo.

Um dos motivos por eu ter escolhido a profissão de médica legista, foi não ter que carregar a responsabilidade de vida de alguém em minhas mãos. Eu só teria que saber a causa da morte, basicamente. A vida dela não era minha responsabilidade. Mas a de Jack, parcialmente era.

A agulha atravessou a pele aberta, a linha, antes branca, agora estava ensangüentada. Eu só faria o suficiente para não deixar o corte exposto. Grazer grunhia, com as mãos apertadas as de Noah, o olhar dele direcionado a mim era de tortura.

— Só mais um, eu juro. — E fácil assim, passei a agulha uma última vez pela pele do menino, como se estivesse cozendo uma blusa de pele.

Fiz uma careta com o pensamento, fazendo um nó ao acabar, suspirei e peguei rapidamente o esparadrapo já com pedaços de algodão espremidos nele. Posicionei gentilmente na ferida, Jack já havia se acalmado um pouco. Mas ele só relaxou mesmo, quando eu me afastei dele, me sentei no chão ofegante, apoiando meus braços em meus joelhos suspensos.

O clima tenso daquele porão estava me deixando mais tensa ainda. Natalia chegou correndo no local sujo e escuro, com a arma na mão e uma expressão assustada.

— Que merda aconteceu aqui? Por que Jack estava gritando?

E eu só fiz me jogar no chão, o cheiro de sangue penetrado em minhas narinas me fazendo ter ânsias.

Dizem que nós geralmente associamos cheiros, sons e objetos a pessoas. Eu nunca concordei de fato com essa teoria, nunca tive esse sentimento por ninguém. Alguém tão íntimo que ligaria tal quando visse algo. Mas, naquele momento, o sangue, os murmúrios e a adrenalina. Tudo isso misturado me lembrava o menino que morreu em meus braços, Luke. E foi isso que me fez levantar do chão, com ânsia e vontade de achar um vaso para despejar todos os biscoitos que havia comido.

Corri até o banheiro, chegando lá a primeira coisa que fiz foi abrir a tampa do vaso e fazer o que eu tanto queria.

Senti uma mão acariciando minhas costas, e pelo toque deduzi ser Finn. O carinho leve e delicado dizia silenciosamente que ele estava ali. Estava ali por mim e para mim.

—Lindo, uma médica legista com medo de sangue. — Dei descarga, fechei a tampa e sentei no chão me encostando na parede. O garoto segurava minhas mãos e sorria pequeno.

— Você não tem medo de sangue, realmente tinha muito sangue lá. E você passou por umas coisas bem pesadas nas últimas horas, não se cobre tanto, ok?! — Ele se aproximou beijando minha testa e levantou, me puxando para fazer o mesmo.

Me virei imediatamente para lavar a boca, queria ter escovado os dentes, mas não havia pasta e escova de dentes alguma ali. Os braços longos do cacheado rodearam minha cintura, e ele colocou sua cabeça encostada na minha, pelo espelho pude ver seus olhinhos fechados. Uma lágrima solitária escorreu por sua bochecha.

— O que foi? — Minha pergunta saiu mais ríspida do que o necessário, a preocupação me fez dizer assim.

— Nós matamos alguém, Brown.

Meus olhos ficaram arregalados, meu rosto empalideceu e minhas mãos começaram a suar frio.

— Ele morreu? — Perguntei trêmula, recebendo apenas uma afirmação de cabeça. — Isso não é culpa nossa, tá legal? Ele tentou te matar, Finn.

Horas antes, quando estávamos todos dormindo, estava amanhecendo e a única pessoa que permanecia acordada era Jack. Segundo ele, estava indo beber água e sentiu uma ardência horrível na barriga, gritou e a faca, que ele disse ser tão grande quanto o pé de Finn, atravessou novamente sua carne. O primeiro a descer foi Heaton, seguido de Caleb e Noah, e assim por diante. Eu e Wolfhard acordamos assustados, ele me mandou ficar ali que ele mesmo desceria e veria o que estava acontecendo.

Eu obedeci. Por um minuto, mas obedeci.

Quando cheguei na cozinha, o mesmo homem que me atacou no posto de gasolina estava com a data apontada diretamente para o pescoço de Finn Wolfhard. O mundo passou rápido pelos meus olhos, tudo que consegui fazer foi erguer minhas mãos em sinal de calma e rendição. Houve uma pequena discussão, claro, o homem estava impaciente. Mas a impaciência dele não durou muito, o estalo foi ouvido dez segundos depois. O louro ficou de joelhos em nossa frente, soltando Finn e dando-nos uma visão ampla de ninguém mais, ninguém menos que Sadie Sink segurando a arma que matou o homem que iria matar o meu homem.

— Você tem noção de onde isso pode chegar? Nós podemos ser presos! — O garoto em minha frente chorava. Chorava tanto que achei ser impossível ele não desidratar. O abracei.

Eu tentava passar naquele abraço tudo que eu mais pensava ser valioso. Carinho, amor e a esperança de que eu estava, de fato, bem ali. Para ele e por ele. Finn tremia, soluçava em meu ombro molhando meu cabelo e com certeza minha blusa. Eu não me importava, não mesmo.

Não quando eu tinha o garoto dos meus sonhos chorando em meu colo.

𝒔𝒂𝒕𝒖𝒓𝒏 || 𝒇𝒊𝒍𝒍𝒊𝒆Onde histórias criam vida. Descubra agora