46-Liza

22 12 0
                                    

O sonho acabou.
Fora interrompido por um som estranho que preenchia o ambiente. Uma obtusa luz amarelada passava pela fresta da porta.
A garotinha levantou a cabeça meio atordoada e forçou os olhos a ficarem abertos. O que poderia ser?
O barulho era sufocado, mas parecia ter uns gritos misturados. Ela nunca havia escutado algo assim, tão amedrontador!
Visto que não conseguiria dormir, calçou seus chinelos surrados e correu até a janela para ver se o som era da rua. Como era muito alta, a garotinha utilizou um banquinho para subir e poder abrir ela. Por estar enferrujada suas mãozinhas demoraram muito para conseguirem liberar uma visão mínima de fora, além de reproduzirem um barulho razoável. A casa vizinha estava totalmente apagada. O cachorro dormia profundamente; não havia gatos no telhado. Ela escutou o barulho novamente. Com certeza não vinha de fora!
Fechando a janela e descendo do banquinho, a garotinha correu até a porta e ficou na ponta dos pés para alcançar a maçaneta. A porta se abriu.
Seus passos pequeninos seguiram o som que fica cada vez mais alto a medida que ela chegava a sala. Sorte que esta era praticamente de frente ao quarto da garotinha. Ela deu a volta no sofá gigantesco, comparado a ela, e teve sua visão liberada. Seus olhos se tornaram medrosos. Sentiu que algo está errado. Quem estava batendo na mamãe? A jovem mulher tentava de tudo para tirar as mãos do agressor de sobre si, mas seu corpo frágil não conseguia nem impedi-lo de dar-lhe um tapa. O ambiente estava iluminado apenas por uma vela solitária.
Na manhã do mesmo dia, mamãe havia dito que a luz demoraria para voltar, porquê ela havia tirado férias, e que agora teriam a companhia das velas a noite. Ela convenceu a filha que as velas eram seres mágicos que protegiam a casa de monstros das trevas. Isso fez a menina não ter medo de estar no escuro. Mas agora, ela estava duvidando de tudo. Quem era aquele ser a sua frente se não um monstro? Mesmo com a vela ali, ele ainda estava tendo a coragem de espargir todo aquele ódio!
A garotinha correu até a mãe gritando, o que fez as coisas pararem por alguns segundos. A mãe da garota parou de chorar e recebeu um abraço da menina que chorava. A mulher ficou paralisada olhando para aquele homem e ao invés de retribuir o abraço, de dizer para a menina sair, ou até mesmo chorar. Ela suplicou desesperada algo que a garotinha não entendia, pois a mãe havia tido a boca machucada. Só sentia ela tentando protegê-la, agora, com seus braços. Por favor! Não! Por favor! Eu faço qualquer coisa!
Então a menina olhou para ele, e parou de chorar. Papai? Quem é você?
Não poderia ser ele! Papai sempre fora o super herói! Papai era carinhoso, amável e respeitoso! Ele a ensinara todas as palavrinhas mágicas, a ensinará a cuidar das plantas do Jardim e dos animaizinhos. Até construíram uma casa de pássarinhos uma vez! Não, aquele definitivamente não era o papai!
A garotinha procurava no rosto do homem algo que fosse familiar, algo que a fizesse confiar nele e acreditar que estava fazendo isso porque dentre todas as hipóteses aquela era a melhor coisa a se fazer. Mas infelizmente aquele tsunami já havia imergido toda a praia, e agora estava chegando as ruas e aos prédios. Não havia como evitar!
O homem não deu importância as súplicas da esposa. Em sua mão, havia um cabo de vassoura, com manchas vermelhas que fizeram a garotinha questionar se eram de tinta. Papai, porquê você está assim? Você foi possuído por um monstro das trevas?
Ela se solta dos braços da mãe e caminha até ele, Sou eu papai! Sua filha Lisa! Consegue me ver? A mãe começava a se desesperar pedindo para a menina ir para o quarto. Ela tentava se arrastar até a garotinha que há estava distante mas era impossível, a dor era grande demais. Calma mamãe! Talvez ele não saiba que somos nós!
Filha! Volte aqui por favor!
A garotinha não entendia, se aquele era seu pai, porquê mamãe estava com tanto medo?
Mas as ondas acabaram destruindo os prédios, e mesmo que todos gritassem de medo, elas ainda os faziam afogar pouco a pouco sem o oxigênio que era tão importante para a sua sobrevivência.
A grande mão esquerda que estava livre, pegou a garota desprevenida e segurou o seu pescoço, a tirando do chão.
NÃOOOO! FILHA!
Os olhos da garotinha se tornavam turvos, as lágrimas molhavam a mão que a erguia. Tentava se desvencilhar enquanto ele ria do desespero da filha. Papai? Sua voz estava sufocada! Sentia que todo o oxigênio do mundo havia se extinguido, e havia dado lugar a dor e o calor que percorria como choque por todo o corpo. Eu... ela tossia muito.
Solta Ela! SOLTA ELA!
Preci... ar... a mão macia dava soquinho no monstro, esse que a olhava sem nenhum sentimento. A olhava bem no fundo dos olhos, apreciando todo o sofrimento de sua filha. Essa que ainda pensava que ele era bom!
Ele havia mudado tanto! Essa forma de agir tão imponente, seguro!
Esse que agora olhava com desprezo para o ser que um dia tanto amara.
O corpo da menina fora largado no chão.
A mãe naquele momento gritou deseperada e mesmo com dor tentou ir até a filha_ pensara que ele a havia matado! Mas sua movimentação era tão mínima que o pai nem se preocupou em detê-la.
Lisa Lisa! Ele ria da filha de apenas 5 anos praticamente desacordada. Estirada no chão frio.
Era possível escuta o choro falhado da mãe. Isso é tudo culpa da vagabunda da sua mãe! Ele vociferou segurando o rosto letárgico da filha, vermelho como sangue. Analisando bem, sua voz havia mudado também. Agora, se assemelhava a um dos vilões dos filmes da Disney que Lisa via passar na televisão dos vizinhos. Algo como o Scar daquele filme de leões! Isso fazia a parte consciente de Liza estremecer. Com toda certeza, esse não era o seu pai!
Seu monstro!
Ela fez tudo isso! Ele continuou rindo.
Você é louco! A mulher gritou.
Cale a boca!
Agora eram duas.
Ele pegou o corpo da filha e colocou para dormir sobre a cama com um beijo de boa noite. Depois levou a mulher desmaiada para o quarto.

PassarinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora