Observado

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te olho sozinho no quarto -quase- totalmente escuro, te vejo com as pernas cobertas por uma calça de moletom velha demais, acho até que já fora de outra cor; o tórax e o abdômen estão livres de panos, totalmente nus. você está sentado na cama e olhando para as mãos, as mãos com poderes. você analisa cada linha que há nas suas palmas e tenta conecta-lás de alguma maneira que faça sentido. o cabelo cai no rosto e você passa as mãos apressadamente por ele o levantando pra cima de uma maneira já conhecida pelas pessoas que o cercam. suas mãos continuam te intrigando, mas você as esquece por enquanto. seus olhos cinzentos -agora, na luz da noite, estão quase negros- mudam o foco para sua barriga, olha o lado direito e depois o esquerdo, mira no umbigo e passa um tempo contemplando as linhas que já fazem parte definitiva do seu corpo, linhas que desenham sua história. depois disso desce a cabeça e sente a nuca encostando no macio travesseiro. você olha pro teto, abre bem os olhos e tenta -como um gato- absorver toda a luz possível para quê consiga enxergar além do que a escuridão permite. dentro de você tem um outro G que chama pelo nome de I, mas chama tanto que as palavras quase saem por sua garganta. você poderia deixar sair, mas prefere conter, não que a vontade de vê-la não seja real, mas sim porque tem medo de não controlar o volume desse chamado, não quer acordar a casa inteira. também tem receio de I não querer vir, talvez seja um pouco de orgulho de ambas as partes, mas você não quer incomodá-la. o G de dentro parece subir pelas suas cordas vocais, mas você o detém, engole como se fosse ânsia de vômito e quase que subitamente os seus olhos se enchem de lágrimas, a primeira a escorrer é a do olho direito, você sente a gota molhando a extensão da bochecha, um pouco da orelha e logo em seguida pingar no travesseiro, depois disso já se vê com o travesseiro úmido, com olhos vermelhos e a respiração ofegante. por quanto tempo terá que fazer isso? eu me pergunto e acho que você também.

lá fora começa a cair finos pingos de chuva e seus ouvidos captam logo no primeiro minuto aquela garoa. o som é inconfundível, lembra os dias de inverno na casa de I quando ela fazia o almoço enquanto você brincava com algumas folhas e gizes de cera de várias cores (mesmo que houvessem vários brinquedos espalhados pelo chão). o G de dentro pede, com cuidado e um pouco de receio para quê você pelo menos vá até a janela admirar as gotículas que caem com pressa do céu. você se levanta, gira a cabeça pro lado uma vez e depois anda com passos silenciosos e calmos até a janela fechada do quarto. vejo você a abrir e olhar para o céu escuro, no meu relógio já são mais de três horas da madrugada, mas pelo que vejo o sono ainda não chegou a você.

e assim se passam horas, seus olhos iluminados pela luz de algum poste próximo agora brilham em dourado, o G de dentro se aquieta e agora só sobrou o G de fora, o que tem as mãos lisas, o cabelo pra cima e a barriga totalmente exposta nesse momento, e é esse G que eu fito desde cedo, é ele quem eu via antes e ele quem eu vejo agora.

certamente, o G de dentro voltará no dia seguinte, e vai ser mais difícil ainda contê-lo do que foi hoje, porque todo dia é pior. a saudade aumenta e não cabe mais no espaço reservado à ela, os dois G's sentem.

G, pela visão de um outro.Onde histórias criam vida. Descubra agora