Amanhecer
Sempre era meu pai que me acordava, mas não naquela manhã. Houve um roubo na cidade e como ele ainda ajudava com esses casos saiu cedo e não voltou até pegar a ladra. À noite, quando chegou, me contou que uma garota da minha idade estava há dias roubando sem que ninguém notasse, mas dessa vez, ela fez algo grande: invadiu a morada do nosso Papa VI e acabou matando um servo, o pior dos crimes, occidere. Acharam ela perto da baía da domum, mas a garota não roubou nada valioso, era apenas comida do banquete do Papa – aparentemente o guarda havia atacado ela. Não era tão comum papai conversar tanto, principalmente porque ele chegava cansado. Houve apenas uma vez, a única vez que papai nos contou uma história completa – geralmente ele cansa no meio e desiste, soa engraçado – Soror ainda era muito pequena, nem deve lembrar. Eu, por outro lado, lembro muito bem: "Uma rocha, uma grande rocha reside às terras da raposa; Um homem, um homem que cheira como carne, mas que conhece, do mundo, cada mariposa; A rocha deixada com a partida do hediondo, para sucintas terras onde só um sol cobre, não perdura em paz, pois quem a ela ferir, caberá a real verdade!". O cômico é que essa rocha existe e tem desenhos gravados nela, mas foram feitos pelos garotos da domum, que hoje devem ser adultos, ou até velhos – essa parte ficava mais legal da forma como papai falara, espontâneo. Além disso, a terra que vivemos se chama raposa e perto da rocha, tem mariposas. Uma bonita história, mas foi criada sem muito esforço, me pergunto se isso faz dela menos preciosa.
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Quando chegado o dia da iudices, em que todos votavam na praça pública em prol da domum, eu vi a garota que roubava para sobreviver, ela era diferente de todas as outras, não tinha medo de estar ali, sendo julgada por tantas pessoas. Seu olhar era frio e só, as vezes até olhava para outra direção, mas no resto do tempo apenas fitava um garoto pequeno no outro canto da praça. Pela idade, conclui que era seu irmão, ele estava chorando, mas também se mantinha firme, com as mãos retas e sua volumosa cabeça erguida, como um honrado guerreiro. No momento dos votos me distrai e nem ouvi o que falaram dos outros criminosos, mas finalmente descobri o nome da ladra: Iuve. Do meio da praça, o bispo, frio e radiante com sua roupa clara, descreveu o crime como pudor ao excelentíssimo Papa e occidere. Ele ergueu sua mão contra o vento e por meio do mesmo gesto, os ali presentes, expressaram a opinião. Todos os votos foram para iustitia, pena de morte. Fiquei pasma, nem falaram que a garota só tentava sobreviver, omitir algo tão importante me fez pensar que talvez todos que estavam ali sofreram a mesma injustiça. Minha fúria fez eu arquear as costas, como se eu fosse fazer algo, mas meu pai prendeu meu ombro direito com a mão, sem mover sua postura. Segundos depois, apertou com um pouco mais de força e voltou seu braço à cintura, então pude ver novamente o rosto da garota, ela estava chorando, ainda se mantendo firme e fria, mas um pouco do cabelo caíra sobre a testa e uma linha de poças no chão alinhavam-na com seu pequeno irmão. Quando se virou, vi seu olho direito, era muito claro, quase branco. O irmãozinho dela chorou alto e foi puxado por uma mulher grande de vestido de flores enquanto os detidos saiam em fila. Eu não me aguentei e saí devagar. Já fora da praça, apressei meus passos e vi a mulher levando aquele garotinho pra sua casa – um grande lar com vidraças quebradas, um símbolo de raposa no telhado e grama esquecida na frente – eles entraram e não pude mais ouvir o choro.
Naquela noite tive cogitatios, mas os esqueci pouco depois de levantar, dizem que quando eles não somem da memória é sinal de sorte, mas não foi o caso daquele dia, como sempre. Passei a manhã inteira correndo pelos grandes campos, tentando achar um lago pra pegar frutas molhadas, mas todos estavam secos, a vegetação morrendo e a areia endurecendo. Sem muita escolha fui até a feira para comprar comida. Lá vi a grande mulher com seu filho, a família da ladra que havia visto no dia anterior. Eles andavam devagar, como se levassem uma grande mala nas costas, a moça que vendeu as frutas para eles ficou furiosa porque pechincharam e acabaram não comprando. A domum inteira está pobre no últimos anos, o calor está estragando as plantações, secas intermináveis e o número de ladrões só aumenta. É visível que nada aqui está vendendo bem, os vendedores estão indo na calçada para oferecer seus produtos e os preços aumentam todo dia. Como meu pai é um homem importante jamais passamos fome, então corri até a mulher com o menino e ofereci minha sacola de frutas:
– Senhora, por favor, minhas plantações não estão tão ruins e você precisa mais do que eu, pegue.
Ela olhou diretamente nos meus olhos por um momento, abaixou a cabeça e sussurrou:
– Não se preocupe, as coisas vão melhorar, muito obrigada por sua gentileza, jovem.
Firmei minha mão e aproximei a sacola:
– Eu não estou oferecendo, estou te dando, se não pegar deixarei aqui mesmo.
Com algum remorso ela pegou e me agradeceu, eu perguntei seu nome. Beth e o garoto era Codrim. Depois de dizer meu nome, eles reverenciaram e se viraram para ir embora, mas não pude resistir, coloquei minha mão no ombro dela e falei:
– Eu sei que sua filha só estava tentando ajudar, eu sinto muito.
Suas expressões mudaram.
– Você conhece a Iuve? – Disse Beth com os olhos profundos nos meus.
– Não, mas meu pai me contou o que aconteceu, ele ajuda em casos assim. – Respondi com delicadeza.
Ela perguntou no que meu pai trabalhava, provavelmente imaginando se ele não era culpado pelo que aconteceu. Depois de explicar que papai apenas atua em campo, para minha surpresa, Beth me convidou para comer em sua casa, em agradecimento pelas frutas. Eu aceitei sem titubear, o garoto ficou animado, seus olhares sobre mim eram de reconhecimento, imaginei que por ter a mesma idade de Iuve, éramos parecidas. No caminho, Beth me contou que seu marido faleceu honrando a domum, desde então Iuve era a cuidadora da família. Ela havia treinado com garotos mais velhos, caçava, pescava e trazia comida, mas a crise de agora a fez não ter escolha e roubar pequenas coisas. Todos os sábados ela ia até a morada se confessar e voltava pra casa comentando sobre as riquezas de lá, principalmente a comida, até não aguentar mais e no fatídico dia, entrou para roubar. Por algum motivo me identifiquei com Iuve, sem notar eu já estava na casa de sua família, comendo e rindo sobre suas histórias, eventualmente o clima pesava e todos ficávamos tristes, mas descobri que ela ficou cega do olho esquerdo quando treinava com os garotos mais velhos da vila, meus pais dizem que eu tenho problemas de visão também, mas nem posso imaginar o que é não poder enxergar, já ouvi falar que os deficientes são mandados para fora da domum, por não ajudarem.
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Jamais sabíamos quando um detento era executado, então por semanas fiquei imaginando se Iuve ainda estava viva, ela passou a ser um objetivo pra mim, algo no que se inspirar, senti-me responsável por sua família e passei a ajuda-los, principalmente com a pesca, ensinei muitas coisas para o garoto Codrim. Certo dia falei-o sobre o disparet, uma placa ondulada que se jogada certa, volta na mão de quem jogo. Isso foi a única coisa que meu pai me ensinou, ainda não entendi bem como fazer, mas Codrim adorou e ficou horas no campo jogando nas árvores enquanto eu colhia frutas. No começo ele errou muito, mas estava realmente melhorando, talvez até mais do que eu. Algum tempo e ele acabou deixando de lado, disse que não era útil, pois se o disparet bate em alguma coisa, caí e não volta mais. Apesar de jovem, Codrim era esperto, não muito inteligente, mas esperto. Ele não conheceu seu pai, e sua mãe não falava muito dele, mas antes da crise, os mais velhos da vila contavam sobre o herói pescador que salvou o Papa V, num ataque desconhecido de nuvens. Dizem eles que nuvens caíram do céu e carregaram pessoas, animais e até construções.
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ASINUS PRIMA
De TodoAsinus Prima é uma aventura em um mundo fantástico e mistico, na visão de uma garota que se vê imponente perante aos costumes e tradições da sociedade em que vive. Ela acaba perdida em uma jornada tendo que proteger duas crianças, enquanto desvenda...