Antes, a solidão do eu; depois, o estabelecimento do nós. Encontro de pessoas. Um eu que se encontra com um tu e que juntos estabelecem um nós.
Martim Buber, grande nome da filosofia personalista, nos propõe esta bela e fecunda verdade. No encontro entre um eu e um tu, uma terceira pessoa de existência própria se estabelece3. Nossos olhos não podem enxergá-la,
mas a nossa sensibilidade nos aponta para ela. O nós é o que sobra do encontro entre o eu e o tu.
E importante salientar que, embora a reflexão de Buber seja importante para o nosso contexto, ela ainda não alcança o significado a que necessitamos chegar. Buber não se ocupa com a "subsistência". Seu empenho está em relatar o segundo aspecto do conceito de pessoa. Sua reflexão está situada no encontro e não nas fontes particulares que geram o encontro. Este avanço quem o faz é Zubiri, que salienta a necessidade de pensar a relação humana a partir do
momento da subsistência, para depois chegar aos encontros e atos dela surgidos.
Talvez seja por isso que os outros nos despertem simpatias e antipatias. Gostamos mais de estar com uns que com outros justamente por causa disso. O que nos atrai no outro é a terceira pessoa que conseguimos fazer nascer com o nosso encontro.
Esse processo de agregação possibilita ao ser humano o crescimento de seu horizonte de sentido. Tornamo-nos mais ricos com a presença dos que nos agregam. Relações saudáveis são relações que nos devolvem a nós mesmos — e, o melhor, devolvem-nos melhorados. O outro, ao passar pela nossa vida, encontra-se com nossa subjetividade. Ao estabelecer conosco uma relação, ele está nos permitindo adentrar o seu território subjetivo. Esse encontro faz
surgir uma terceira pessoa, o nós. Respeitadas as subjetividades, isto é, as pessoas não deixam de ser elas mesmas, o encontro humano alcança o seu poder de integrar as partes, entrelaçando-as sem que elas se confundam.
O amor talvez seja isso. Encontro de partes que se complementam, porque se respeitam. E, no ato de se respeitarem, ampliam o mundo um do outro. O recém-chegado não tem o direito de reduzir o mundo de quem se deixou encontrar. O amor não diminui, mas multiplica.
As caricaturas do amor são prejudiciais porque fazem absolutamente o contrário. Diminuem o horizonte, restringem, aprisionam, sequestram. Em nome do amor, cometemos atrocidades. Amarramos os outros em nós, porque nos equivocamos na compreensão do que consideramos ser amor. Amar não é fazer do outro nossa propriedade. Ninguém é tão completo que seja capaz de
preencher totalmente as necessidades do outro. E absurdo pensar que nós possuímos
todos os elementos de que o outro precisa para o seu crescimento. Por isso há modalidades de amor.
O namorado que chega não tem amor de pai para oferecer. E por isso não terá o direito de afastar a menina de seu pai. Ele não tem amor de mãe, de irmão. Ele é portador de um amor novo que chegou, e por isso encantou, mas não
é o amor único. Ele é recém-chegado, e ainda que a menina não tenha sido amada o suficiente em sua casa, o amor de que ela dispõe na família é muito importante para que continue se construindo como pessoa.
É nesse momento que necessitamos de muita sabedoria para não nos prejudicarmos com nossos amores. O risco do sequestro está na pretensão do novo que chegou. Ele não pode desconsiderar o mundo particular e subjetivo construído antes de sua chegada. Sua presença deverá enriquecer, e não o contrário. Vivendo a condição de novo que acaba de chegar, seu papel será, num primeiro
momento, observar. Amar é antes de tudo conhecer. É investigação da história, dos sentimentos, dos desejos, medos e anseios. Só quem ama tem disposição de ir além da superfície.
No aprimoramento da visão que temos do outro seremos capazes de identificar o quanto amamos, ou não. Quem ama quer conhecer. O objetivo é simples: acrescentar, multiplicar em vez de subtrair.
Não é tão simples saber se o outro nos ama ou não, mas há uma pergunta que podemos nos fazer e que contribuiria para que nos aproximássemos de uma resposta. Depois que ele chegou, a nossa vida, nosso mundo, diminuiu ou dilatou-se?
Sempre que alguém chega à nossa vida nunca vem sozinho. Ele traz o
seu horizonte de sentido. Pessoas, coisas, valores, ideias. Traz o alicerce que o faz ser o que é.
O exemplo é simples e nos ajuda a entender. É impossível
comprar uma casa só com as paredes e acabamentos. Não é possível transplantar uma casa. Se quiser a casa, terá de ver o local em que ela está construída. Comprar uma casa pronta exige uma atenção muito especial. É preciso que estejamos atentos quanto à sua localização: vizinhança, alicerces, paredes, acabamentos. Para qualquer mudança que queiramos fazer, teremos que considerar a sua estrutura fundamental.
Casas e apartamentos são construídos a partir de alicerces, paredes e vigas de concreto. As paredes podem até sofrer alterações, mas as vigas de concreto terão que ser respeitadas. Retirar vigas é prejudicar a
sustentação da construção. Paredes até poderão ser destruídas, mudadas de lugar, mas a estrutura não poderá sofrer mudanças.
O processo de feitura da pessoa humana é semelhante às construções. Desde nossa vinda ao mundo, recebemos um formato, uma estrutura. Amar alguém consiste em observar onde estão as vigas de sustentação, para que não corramos o risco de derrubar o que a faz permanecer de pé. O interessante é que a construção poderá ser reformada, melhorada, sobretudo
nos acabamentos. O amor é criativo, dribla os limites, supera expectativas.
Voltamos a dizer: pessoas são semelhantes às construções. Possuem históricos que necessitam ser respeitados. Não acreditamos que alguém se interesse por uma propriedade, ou dela queira aproximar-se, para torná-la pior. Se alguém precisa comprar uma casa, já o fará pensando nas melhorias que poderiam ser feitas, mas regredir nunca.
Se nossas relações com as coisas já são assim, cheias de cuidados, muito mais deveriam ser com as pessoas. Nossos encontros, ainda que
rápidos e transitórios, deveriam ser moitivados pelo desejo de fazer crescer, melhorar, avançar aqueles que encontramos, e a nós mesmos.
É assim que podemos intensificar o nosso processo de "ser pessoa". Á medida que motivamos e somos motivados para o autoconhecimento, tornamo-nos proprietários do que somos e naturalmente colocamo-nos à disposição dos outros.
É muito interessante perceber que onde existe uma pessoa de verdade, isto é, no sentido exato do termo, ali outras pessoas também estão sendo feitas. Isso se explica por uma razão muito simples. O processo de tornar-se pessoa é contagiante. Quando encontramos alguém que verdadeiramente está desbravando seu universo de possibilidades e limites, de alguma forma nos
sentimos motivados a fazer o mesmo. Não me leve de mim.
Leve-me até mim.