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Que o seu chegar seja mais que um simples chegar. Que seja o símbolo de um tempo
de demoras e permanência. Deitarei a toalha branca sobre a mesa e permitirei que suas pontas venham
cobrir também a minha alma.
Cada vez que nossa mesa é posta, muito mais que um alimento,
a vida nos é oferecida!
Que seja assim.
Que nossa fome de amor
e de fraternidade seja sempre saciada nos olhares dos quais nos serviremos.
JESUS E SEU OLHAR SIMBÓLICO
A história humana está repleta de personagens simbólicos. São pessoas que construíram pontes para que a humanidade pudesse atravessar, chegar e alcançar uma evolução. O contexto cristão é de uma riqueza insondável. Homens e mulheres que entraram na história pela força de suas
travessias no tempo histórico, vivendo de forma única. No cristianismo, essas pessoas são elevadas à condição de santas. Para ser santo é necessário elevar ao máximo, na história pessoal, a vivência de uma virtude evangélica.
Todo modelo de santidade cristã tem sua raiz na pessoa de Jesus, Deus encarnado na história. Jesus representa para o cristianismo a grande manifestação do Sagrado no tempo. Nele, toda uma Antropologia é proposta, de maneira que, na expressão bíblica de Pilatos — "eis o homem"—, toda a humanidade recebe a revelação máxima de sua condição. Vale considerar que
aTeologia Cristã considera que todo discurso sobre Deus é também um discurso sobre o ser humano, de maneira que a plenitude da revelação de Deus, em seu filho Jesus, está a serviço do autoconhecimento que a humanidade precisa viver.
Jesus é um construtor de pontes em seu tempo. Sua vida e missão estão sempre voltadas para repatriar os que estavam fora da vida social, política e religiosa de seu tempo. A categoria sempre usada em seu discurso — "Reino de Deus" — refere-se a uma forma de antecipação histórica de toda uma promessa bíblica de "terra prometida" e lugar de "felicidade definitiva". Sua pregação não é projeção de um céu imaginário, ideal, mas é uma pregação que não desconsidera o fio da história, atando-o constantemente às promessas escatológicas e futuras.
As palavras de Jesus são simbólicas o tempo todo. Há sempre um ensinamento que extrapola o significado das palavras. As palavras são sempre pontes. O principal era a travessia que elas poderiam favorecer. Havia sempre um
algo a mais, um lugar mais profundo a ser alcançado.
E muito interessante perceber que, no contexto histórico de Jesus, o sequestro da subjetividade era constantemente aplicado pelas autoridades religiosas e políticas. Cultos e impostos serviam como instrumentos de fragilização do tecido social, por meio da exclusão dos menos favorecidos. Veja bem que a palavra de Jesus está sempre comprometida com a libertação dos que estavam cativos. Os cativeiros daquele tempo ele resolveu enfrentar por meio de uma força incomum: a palavra simbólica e os gestos poéticos. Sua força não era física. Aos sequestrados do seu tempo ele dirigia a força de seus gestos poéticos, e
assim os libertava de seus cativeiros.
Vale a pena recordar uma sequência narrada nos evangelhos sinóticos que testemunha muito bem a força desses seus gestos.
A cena é dramática, mas é também fascinante. Uma mulher está prestes a ser apedrejada. Foi pega em adultério e a lei de Moisés prescrevia condenação pública para esses casos. A multidão está convencida de que o certo
se cumprirá. Matar em público é um jeito de manter a ordem, de fazer prevalecer a força da lei.
Jesus observa os acontecimentos enquanto a multidão enfurecida se prepara para o ato definitivo. As vozes uníssonas gritam a sentença. Não há o que fazer. A mulher será morta. O que agora descrevemos não está relatado, mas podemos imaginar.
No meio de tantas vozes que gritavam, Jesus não tinha muito o que fazer. É muito difícil ser voz única, gritando uma sentença diferente no
meio de uma multidão que grita absolutamente o contrário. Certamente ele fez um esforço de adentrar a multidão para que tivesse um acesso maior à condenada. Deve ter aberto discretamente espaços entre as pessoas que circundavam e compunham a moldura daquela cena.
Jesus chegou perto. Preferiu não gritar. Utilizou-se de uma linguagem que é infinitamente superior à linguagem das palavras: o olhar. Fixou os olhos na mulher e começou a dizer, sem dizer, tudo o que ela precisava ouvir naquela hora. Aquela criatura jogada ao chão protagonizava a dura experiência de um sequestro que durou sua vida inteira. Entregue à prostituição desde muito cedo, a mulher experimentava naquela hora o risco de morrer sem que alguém lhe pagasse o valor do resgate.
Tratava-se de um sequestro da subjetividade. Os muitos homens que deitaram em sua cama a sequestraram aos poucos. Levaram dela todo amor próprio, todo valor, toda dignidade. Por isso ela se entregava ao suplício
do apedrejamento. Ela tinha consciência de sua culpa. Vivera a condição de vítima, internalizou o poder dos seqúestradores que um dia a fizeram acreditar que o cativeiro era o seu destino único.
Jesus, no ato de olhar, começa a devolver àquela mulher tudo o que a vida lhe havia retirado. Era como se os portões de um porão escuro recebessem uma chave iluminada de novas esperanças. A mulher não sabia que sabia. Esquecera do valor que possuía. A vida vivida na condição de objeto de prazer, o corpo entregue à condição de praça pública, lugar comum que não merecia cuidado, tudo era fator que a prendia ao chão e que a convencia de que
estava recebendo o destino merecido.
Mas os seus olhos encontram os de Jesus. Ela percebe que eles não falam a mesma coisa que a multidão. Nos olhos daquele homem recém- chegado ela identifica um poder superior a tudo o que ela já tinha encontrado na vida. Eram olhos que possuíam o dom de realizar devoluções. Naquele olhar estava sendo devolvida a sua dignidade, o seu desejo de continuar viva, de
reencontrar o sentido do seu corpo, e até mesmo alimentar a esperança de um amor que a pudesse amparar na vida.
Aqueles olhos tinham o poder de lhe devolverem a ela mesma. Ela, que tantas vezes fora roubada, levada de si, agora estava diante de um homem que lhe devolvia novamente o que aos poucos a vida lhe levara.
E eis que a coragem a domina. Ergue-se; e no ato de erguer-se assusta a multidão que não entende o gesto. A multidão se cala; e só neste momento as palavras de Jesus quebram a lógica da lei. Uma frase simples, mas
uma frase capaz de ser simbólica, de estabelecer pontes.
Aquela que estava prestes a ser morta retoma a vida. O cativeiro foi aberto. O resgate foi pago. Tudo por causa de um gesto simbólico, pleno de significado, que foi capaz de devolver à mulher a condição de pessoa.
Gestos simbólicos são salvíficos, redentores, ao passo que gestos diabólicos são condenatórios, desagregadores. A mulher experimentou esta verdade.
No meio de uma multidão diabólica surgiu um olhar simbólico, e o milagre da reversão dos fatos aconteceu. Na experiência de sermos o que somos estamos constantemente vivendo a metáfora da multidão. Ou porque estamos na condição de acusadores, ou porque estamos na condição de acusados. Nem
sempre é fácil prestar atenção no olhar raro. A multidão parece ter mais força. Nem sempre também é fácil ser portador de um olhar raro. É mais fácil integrar a multidão e suas soluções simplórias. Interpretar a lei ao pé da letra dá menos
trabalho que descobrir as chaves que nos possibilitam interpretações mais profundas.
O inegável é que, no ato de sermos o que somos, há sempre uma cena semelhante à cena do evangelho sendo construída ao nosso lado, diante dos nossos olhos. Como reagimos? Não sei. Tudo é uma questão de escolha. Ou vivemos para simbolizar, e assim fazemos a diferença no mundo, ou vivemos para gritar o grito que é comum a todos; o grito fácil e a diabolização democrática.
Olha devagar para cada coisa. Aceita o desafio de ver o que a multidão não viu. Em cascalhes disformes e estranhos diamantes sobrevivem
solitários.