Superando as idealizações

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Mundo projetado é mundo idealizado. Ideal é tudo aquilo que
compõe o objeto de nossa mais alta aspiração. O ideal pode ser muito benéfico na vida humana porque ele a movimenta constantemente, evitando assim sua estagnação, mas ao mesmo tempo pode se tornar altamente nocivo no momento
em que impossibilita a vida real, fixando a pessoa em projetos de perfeições inatingíveis e idealizações impossíveis.
O ideal, o projetado, só tem sentido para a vida humana se ele a conduz para o movimento que a aprimora. Em outras palavras: o sonho só vale a pena se estiver preso à realidade.
Estando preso ao que é real, o sonho perde o perigo de ser infértil, mas passa a representar, para aquele que sonha, um motivo a mais para ir além.
Ainda na perspectiva dos malefícios que o mito do amor
romântico provoca na vida das pessoas, continuamos a identificar a idealização do outro como forma de sequestro. A literatura que socializa a mentalidade do mito do amor romântico, perfeito, assegura que a pessoa ideal existe, e que é preciso intensificar o processo de busca. Termos como "alma gémea" e "cara metade" são muito comuns nessa literatura.
Essa mentalidade é responsável pelas relações tão marcadas pela transitonedade nos dias de hoje. Pessoas se elegem e se desprezam com muita
facilidade. Juras de amor eterno hoje, e amanhã nem uma satisfação pelo sumiço. E a vida e suas relações tão estranhas. É o trânsito intenso de pessoas pelas avenidas da alma. Procura incessante que nem sempre tem final feliz como nos contos de fadas.
Trata-se de uma compreensão desencarnada do amor. Nesse mito há uma projeção constante de que o amor do outro resolverá todos os problemas de nossa vida.
Uma coisa é certa: nós sabemos quem somos, mas os outros nos
imaginam. Essa frase expressa bem o processo de inadequação a que anteriormente nos referíamos. No ato de imaginar, o outro constrói a pessoa ideal, e essa pessoa ideal não existe, pois o próprio conceito já nos diz. Ideal só existe na idéia.
É dessa perspectiva que nasce a compreensão dita anteriormente, mas que vale ser ressaltada. Não existe pessoa "ideal", mas sim pessoa "certa". A pessoa certa condensa defeitos e qualidades, e a somatória de tudo resulta uma realidade pela qual o outro se apaixona.
Acredito que haja uma forma interessante de abrir as portas desse cativeiro em que tantas vezes entramos, ou somos colocados. Não acredito que tenhamos que procurar as realidades ideais, mas sim as realidades certas. A
profissão ideal não existe. O que existe é a profissão certa. Pronto. Com o conceito de "certo" podemos resolver o impasse.
Tudo o que é "certo" refere-se a uma forma de regularidade. O
relógio está certo? A pergunta quer saber se o relógio trabalhou com regularidade, isto é, se fez o que tinha que fazer. Se tiver trabalhado, estará marcando a hora certa.
"Certo" também diz respeito àquilo que é verdadeiro. Pois bem, a verdade não é expressão de perfeição, mas é demonstração da realidade como ela é. A verdade é a coerência estabelecida entre o discurso e a realidade sobre a qual o discurso foi feito.
Essa perspectiva é muito interessante. Muitos relacionamentos não são verdadeiros justamente por causa da ausência de coerência entre o
discurso e a realidade. Aquilo que digo ser o outro não condiz com sua realidade. O outro não é absolutamente nada do que falei sobre ele. Ele é o

fruto de uma projeção. Ele é ideal, e por isso não existe concretamente. Só existe na minha invenção.
Quando o encontro supera essas expectativas, e as pessoas descobrem a graça de se olharem como são, a relação passa a ser construída a partir da verdade de cada um. Com isso, deixam de viver a procura da pessoa
ideal e passam a descobrir a pessoa certa. A regularidade do conhecimento, da conquista e a constante vigilância para que a verdade prevaleça favorecem o surgimento de um amor maduro e sem idealizações.
Essa idealização só poderá deixar de existir no momento em que as pessoas se tornarem capazes de encarar o amor como uma equação matemática. Ê somatória de defeitos e qualidades. O resultado final é fator decisivo para saber se a relação é satisfatória ou não. Enquanto as pessoas estiverem imaginando príncipes montados em cavalos brancos e princesas
indefesas, acorrentadas em suas torres, a idealização continuará privando-as do melhor da vida.
O grande problema é que a idealização provoca uma com- preensão equivocada do amor. Na idealização, o amor é reduzido à paixão. A paixão é uma espécie de ante-sala do amor, mas ainda não é amor, porque não condensa os elementos necessários para um conhecimento do outro. Paixão é uma forma de visão turva. Vemos e, no fascínio do que vemos, imaginamos.
A paixão é diferente do amor justamente por causa disso. A paixão sobrevive de idealizações e o amor sobrevive de realidade. A paixão desinstala de uma forma infantil, tornando a pessoa vítima de suas fragilidades. O amor, ao contrário, amadurece e favorece a superação daquilo que a fragiliza.
Como já dissemos, a paixão sobrevive de prazer. Já o amor sobrevive de desejo. Paixão só aprendeu a ficar por pouco tempo. O amor gosta é de permanecer a vida inteira.
Esse caráter temporário da paixão é necessário para a construção do amor. O processo que nos leva a conhecer outras pessoas sempre começa em visões de superfície. A profundidade só é alcançada à medida que avançamos os territórios do outro.
A paixão é o resultado da primeira vista, dos primeiros detalhes do território encontrado, da mesma forma como a antipatia natural. A pessoa apaixonada vive uma experiência estranha de projetar o outro como o maior acontecimento de sua vida. E sempre assim. Todo apaixonado acha que agora encontrou o amor de sua vida. Mas, com o passar do tempo, se esse conhecimento
não o conduzir ao encontro real, concreto, de defeitos e virtudes pelos quais ele ainda continua apaixonado, a paixão dá espaço à desilusão e ao rompimento. O

amor só pode acontecer nas pessoas que atravessaram a ante-sala da paixão. Somente depois de conhecidos limites e virtudes é que o amor é real.
E por isso que as relações humanas são como pontes. Estamos sempre em travessia. Há sempre uma distância a ser percorrida, um passo a mais a ser dado no conhecimento do outro.
Pontes são simbólicas. Elas estabelecem vínculos. Por elas cruzamos os obstáculos que dificultam nossa chegada ao outro lado. Quanto mais construímos pontes, muito maior será a possibilidade de conhecermos verdadeiramente aqueles que fazem parte do nosso mundo.
E a atitude simbólica, que constrói e facilita os vínculos.

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