O MITO E SUAS SUGESTÕES
Antes de tratarmos especificamente do mito do amor romântico, achamos por bem salientar o significado das elaborações mitológicas nas culturas.
A vida é o acontecimento de toda hora. Diante deste fenómeno que não pára, o ser humano sente-se constantemente impelido a buscar respostas que o ajudem a compreender o significado de uma gama de
acontecimentos.
No desejo de compreender, o ser humano faz perguntas. Na pergunta que formula, expressa o seu desejo de desvendar o mundo que o envolve. Somos seres naturalmente filosóficos.
Essa natureza filosófica, elemento que faz parte do estatuto humano, manifesta-se naturalmente na nossa vida por meio de explicações
simples que fazemos dos fatos. Nosso desenvolvimento cognitivo, isto é, nossa capacidade de raciocínio, passa por um processo de amadurecimento biológico. Assim corno o corpo precisa amadurecer para ser capaz de produzir uma outra vida, também nosso cérebro necessita amadurecer para executar raciocínios mais complexos.
É por isso que, no início de nossa vida escolar, os aprendizados seguem regras que consideram nossa maturidade cerebral. Não é possível, por exemplo, propor a uma criança de sete anos uma operação de álgebra. Ela ainda
não dispõe de amadurecimento cerebral para tal raciocínio. A mesma criança não será capaz de compreender a teoria do Big Bang, que procura explicar cientificamente a criação do universo. O melhor é contar a origem do universo por meio de uma história que se encaixe no seu universo infantil. Pois bem, na infância da inteligência, o mito é a elaboração possível.
Recordo-me que, quando era criança, sempre que trovejava eu ouvia minha mãe dizendo que o trovão era a manifestação da braveza de Deus com algumas pessoas no mundo. Escutava aquela explicação e nela colocava minha confiança. Deus estava bravo, mas não era comigo. Era com outras pessoas. A frase de minha mãe, ainda que absurda para um adulto, cessava, no meu coração de criança, o medo dos trovões. Dar nome ao medo é, de alguma
forma, começar a vencê-lo. Os mitos nascem assim. E diante de um não saber dizer que ele é construído.
Com o tempo, depois que aprendi que os trovões são fenómenos
naturais, causados por descargas elétricas, aquela explicação mitológica deixou de ter valor para mim.
O inegável é que, na infância da minha vida, aquela forma de compreensão da realidade fez parte de minhas crenças. Recordo-me também que minha mãe não nos permitia comer manga e tomar leite ao mesmo tempo. Entre um alimento e outro precisávamos observar um prazo de, no mínimo, oito horas. A razão para a proibição era simples: o mito de que a mistura dos dois alimentos era capaz de provocar a morte.
Mitos são tentativas de explicação daquilo que ainda não sabemos
compreender. São sempre contados por meio de narrativas que prevalecem no tempo, isto é, passam de geração em geração e se perpetuam.
Um mito está sempre cheio de intenções. Depois que vem a explicação racional para aquilo que antes era explicado por meio do mito, sempre fica o registro da explicação mitológica em nós. O mito sempre tem alguma coisa a nos ensinar, ainda que já tenhamos superado a sua formulação e a tenhamos substituído por uma explicação racional. E como se preservássemos uma inocência
que pode fazer bem, mas também pode fazer mal. Depende das influências que os mitos conseguem exercer.
Como já dissemos, o mito é sempre uma tentativa de explicação da realidade. Fortemente marcado pela linguagem metafórica, isto é, uma linguagem que procura fazer uma leitura do mundo através de símbolos, o mito é sempre uma elaboração altamente sedutora, e o símbolo está no cerne de sua estrutura.
O símbolo fala por si mesmo, não carece de explicações. Uma
linguagem simbólica não tem necessidade de ser aprisionada no que consideramos conceituai. Podemos dizer que o símbolo supera o conceito, porque parte do conceituai para entrar no horizonte da sugestão de um algo a mais. O simbólico é um instrumental para interpretarmos o mundo.
As culturas são construídas e manifestadas através de símbolos. As catedrais na Idade média representavam a supremacia do poder religioso. Os mosteiros eram os lugares reservados à salvação das almas, ao passo que as tabernas eram os lugares que evidenciavam a perdição assumida, a danação eterna.
As construções góticas, com seus traços suntuosos, simbolizavam o desejo humano de alcançar o céu. As altas torres, as paredes talhadas por desenhos de movimentos ascendentes, legitimam um desejo de alçar a eternidade
com as mãos.
As construções romanas, sempre horizontais, expressam o desejo romano de conquistar o mundo, os territórios. Construções esparramadas, nunca
voltadas para o alto, mas estendidas para a terra, para o horizonte. Símbolo de uma civilização que desejava incorporar o mundo como propriedade e tornar o restante do mundo uma extensão de Roma.
Os gregos e a sabedoria que gerou a cultura ocidental. Atenas, cidade da força intelectual. Esparta, cidade da força dos corpos. As duas cidades, de forte valor simbólico para a Grécia, parecem condensar e sintetizar a mentalidade de uma civilização que legou ao mundo a cultura da estética intelectual e a cultura da estética física.
Minas e suas estruturas barrocas. O barroco é o movimento dos
contrários. A igreja majestosa condensa em sua arquitetura a glória e a decadência. Numa mesma cena, há a grandeza de anjos sendo carregados por negros em
processo de penúria e sofrimento. O humano e a dura missão de sustentar o peso do divino. A madeira talhada a canivete revela a mentalidade de um tempo. É a realidade expressa e contada no símbolo de uma época. A catedral tem boca, e fala. Conta histórias de quem já não tem mais boca para contar. Revela, por meio do símbolo, o que só os mortos poderiam revelar.
Símbolos são testemunhas históricas. Por meio deles podemos fazer a leitura dos pensamentos que prevaleceram ao longo do tempo, pois eles condensam um universo inesgotável de informação.
Mitos e símbolos são dois caminhos que se encontram constantemente. Eles se complementam e se transformam mutuamente. Assim como a catedral é um símbolo que varou o tempo e legitimou nas culturas a ideia de que Deus esteve sempre presente nas cidades, por meio de paredes suntuosas, também o mito é uma forma de edificação que atravessa o tempo, legitimando e
sugerindo um jeito de pensar.
Podemos dizer que muitos mitos são tão sedutores que podem ser comparados às catedrais. Um deles é o mito do amor romântico.