RELAÇÕES QUE SEQÜESTRAM
Como vimos, o processo de ser pessoa está diretamente ligado à problemática do sequestro da subjetividade. A razão é simples. Se uma pessoa está privada de ser ela mesma porque alguém a trancafiou em uma relação de sequestro, é bem provável que ela deixe de dispor de si mesma e conseqúentemente deixe de dispor-se aos outros. Os sequestros da subjetividade deixam marcas nas duas perspectivas: indispõem a pessoa para si mesma e também para o outro. Por isso, temos duas realidades dignas de análise que podem ser assim simplificadas: ou vivemos só para nós ou vivemos só para os outros. Nos dois casos há um grande erro sendo cometido.
Viver a dinâmica que o conceito de pessoa nos sugere é tra- balhoso. Se nos fecharmos na disposição do que somos, e se não dermos o passo na direção do outro, cairemos numa espécie de solipsismo4, ou então
numa negação da subjetividade concreta.
O eu, na solidão, sem interação, não poderá crescer. O outro tem o poder de indicar nossas possibilidades e limites. O que dispõe de si mesmo carece de entrar na disponibilidade das relações. Elas o aperfeiçoarão.
Por outro lado, a conjugação deste nós, sem que antes tenha ocorrido a disposição do eu, caracteriza-se como forma de comu-nitarismo infértil. A qualidade da vida social está diretamente relacionada à qualidade das pessoas e suas articulações particulares.
Antes da disponibilidade para o outro, é indipensável a
disposição de si, porque só assim haverá liberdade real. Só quem é dono de si pode oferecer-se aos outros, sem tantos riscos de se perder no outro.
O desafio consiste em equilibrar os dois pilares. Não há pessoa sem a solidão do eu, tampouco há pessoa sem a interação plural. As duas realidades se complementam. A qualidade humana das relações depende das dosagens que fazemos desses dois pilares. As medidas do meu ser precisam ser balanceadas com as medidas daqueles que são e estão ao meu lado.
Um ser humano bem equilibrado e socialmente saudável consegue identificar essas medidas, e empenha-se para que uma realidade não estrangule a outra. Quando essa conduta não é assumida, o que temos é uma relação que tem o poder de provocar o sequestro da subjetividade.
Relações que sequestram são aquelas em que um eu tenta sufocar outro tu, reduzindo-o a mero instrumento de sua afirmação. O outro não é considerado em sua alteridade, mas é visto como extensão das necessidades de quem o enxerga.
A esse processo, Martim Buber chamou de relações objetais. O outro é visto como um isso e não como um tu. Não há epifania da sacralidade do outro. Feito um objeto, o outro perde o direito de ser ele mesmo, desprende-se de sua identidade, de sua condição real, e passa a ser "coisa" na mão de quem o desconsidera.
Alguém, quando é colocado na condição de algo, vive a negação de sua dignidade; desumaniza-se, porque deixa de ser considerado como pessoa, e passa a viver a condição de objeto. Deixa de ser "organismo" para se transformar em "mecanismo".
Nos seqüestros do corpo, esse processo é evidente. O se- questrado não tem valor como pessoa. E uma coisa a ser negociada. E um bem útil
que será avaliado e possivelmente trocado. E um mero mecanismo para se chegar a algum objetivo. Um mecanismo que satisfará a necessidade que o seqúestrador tem para alcançar um resultado.
No seqüestro da subjetividade, o mesmo acontece. O seqúestrador passa a ser o proprietário. Ele definirá o ritmo da relação, e o sequestrado, vivendo a condição de vítima, será incapaz de reagir de forma contrária aos desejos de seu proprietário. O rapaz e sua dependência química, a menina e seu namorado são exemplos dessa incapacidade de romper com o seqúestrador.
O seqüestrado permite essa relação. O medo de ser deixado, abandonado, o encoraja a sofrer todos esses malefícios. Nesse caso, vale aquela máxima popular: "Ruim com ele, pior sem ele!"
E lamentável, mas esse discurso tão cheio de conformismo é muito comum entre nós. Ele evidencia o quanto as pessoas estão indispostas para
um rompimento com as relações de seqüestro, justamente porque a quebra do cativeiro gerará um sofrimento nos seqüestrados. No caso dos dependentes químicos, o sofrimento da abstinência e, nos dependentes afetivos, o sofrimento ao romper os vínculos.
Por isso a dificuldade em tomar iniciativas. O cativeiro, por pior
que seja, acabou por se tornar um lugar seguro. O sequestrado está esquecido da vida livre; já não sabe como é ser gente fora das prisões. Esqueceu que é rei e vive como se fosse escravo. O tempo no cativeiro o fez acostumar-se com a comida qualquer, com o amor qualquer, com o cuidado qualquer.
Quem sobrevive de qualquer maneira facilmente também se considera qualquer pessoa; inclui-se no contexto da multidão como se fosse apenas mais um.
É a cultura do "qualquer jeito" que tem anestesiado tanto as
pessoas para as transformações necessárias. A mediocridade existencial tem sido a opção mais fácil.
Este é o resultado psicológico desta modalidade de sequestro. O que temos é uma vítima acostumada com a violência que sofre. A vítima torna- se a principal responsável pela condição mantida. É a violência assumindo o seu caráter destruidor e definitivo. Violência sutil, velada, que não tem as mesmas características do ato violento declarado.
Façamos esta distinção.