CAPÍTULO 7

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Na segunda-feira seguinte eles chamaram Jonas ao escritório e encarregaram-no de investigar a vida da família Camargo. Resolveram que enquanto esperavam não tomariam nenhuma providência legal, tentando encontrar as provas de que precisavam. A custo conseguiram convencer Alberto a esperar. Ele estava impaciente, dizendo ter a certeza de que não havia mais nada a fazer senão abrir o processo. Entretanto, Daniel e Rubens não queriam arriscar-se a perder. A derrota em um caso desses iria levá-los ao descrédito. Por outro lado, a vitória iria dar-lhes fama e credibilidade. Era uma cartada ousada e eles queriam jogar da maneira certa.
Duas semanas depois, Jonas procurou-os levando uma pasta na qual além dos jornais da época havia as informações que ele conseguirá obter.
A notícia do acidente que havia vitimado Marcelo. Várias notas sobre a saúde do Dr. Antônio Camargo depois da morte do neto e por fim seu passamento, vitimado pela dor que o abateu. Havia ainda notícias do acidente de barco, um ano depois, ocorrido em uma pequena cidade da Itália
- Interessante observar - disse Rubinho - que, um ano e meio depois da morte de Marcelo, todos haviam morrido. Tudo aconteceu muito depressa!
- O que vocês não sabem é que, na data em que aconteceu o acidente com os pais de Marcelo, o Dr. José Luís e a esposa também estavam na Europa. Inclusive levaram o mordomo!
Aliás, eles sempre viajam com ele!
Daniel e Rubinho entreolharam-se admirados.
- Bem que eu desconfiava desse acidente! - observou Rubinho.
- Talvez você esteja exagerando - tornou Daniel.
- É, pode ser. Mas não deixa de ser uma hipótese plausível.
- Concordo - disse Jonas. - Nada mais conveniente para eles do que esse acidente. Mas eles estavam na França nessa data.
- Nesse caso, não tiveram nada com o acidente - aventou Daniel.
- Eu não acho. Quem nos garante que Bóris não tenha feito esse "serviço"? - sugeriu Rubinho.
- Ou contratado alguém - tornou Jonas.
- Não podemos fantasiar. Temos que nos ater às provas. O que estão fazendo são meras suposições - disse Daniel.
- Temos que aventar todas as hipóteses. Não se esqueça que quem teve coragem para fazer o que fizeram com Marcelo e a própria família é capaz de tudo.
- Investiguei a vida de Bóris. Ele pertencia à nobreza russa. Perdeu a família e tudo que possuía na revolução. Nada pude descobrir sobre ele durante o tempo em que perambulou pelo mundo depois disse. Sei que chegou ao Brasil trazido pelo Dr. José Luís, e desde então eles não fazem nada sem ele. Nunca se casou. Relaciona-se com uma alemã, que mora em uma bela casa, aonde ele vai em seus dias de folga. Tem dinheiro no banco, um belo automóvel e gosta de luxo.
- O Dr. José Luís deve ser muito generoso - comentou Rubinho.
- É de admirar, pois não é o que se comenta em sociedade, em que ele é tido como mão-fechada. É difícil arrancar dinheiro dele - esclareceu Jonas.
- Por que está sendo tão generoso com Bóris? - perguntou Rubinho. Daniel abanou a cabeça pensativo, depois respondeu:
- Isso é suspeito, na verdade. Precisamos ir mais fundo. A chave do problema pode estar aí.
- Estive pensando em ir a São Paulo ver o que descubro sobre a ama. Mas se preferem seguir essa pista primeiro, verei o que posso fazer.
- Vigiar Bóris, saber o que faz além de ser mordomo. Ele deve desempenhar outras atividades para o patrão.
- O Dr. José Luís tem se ocupado mais em desfrutar da vida social do que em trabalhar. A clínica que montou, com dinheiro da herança, é uma das primeiras da cidade, mantém em seus quadros profissionais de alto nível. Ele comparece apenas para cuidar da parte gerencial, não trabalha mais com os pacientes. A clínica é procurada por pessoas importantes. Os preços são caros e o atendimento, diferenciado. Duas finanças vão muito bem - informou Jonas. - Tanto ele quanto a esposa são muito estimados. Vai ser difícil conseguir saber o que vocês querem.
- Você quer dizer que podemos estar sendo enganados? - perguntou Daniel.
- Não. De forma alguma. Os fatos que sabemos indicam que eles não são o que parecem ser. Estou habituado com isso. As pessoas não querem mostrar sua maldade e se cobrem com atos de aparência. Pura fachada. O que eu quis dizer é que eles fizeram isso tão bem está sendo difícil apanhar o fio da meada. Mas isso para mim é um desafio, e eu gosto de vencer os desafios - respondeu Jonas.
- Então continue mais um pouco nessa pista comigo. Quero estudar um pouco mais - pediu Rubinho.
- Está bem. Já vou indo. Darei notícias!
Ele saiu e os dois apanharam a pasta. Sentado lado a lado, começaram a examinar minuciosamente os recortes, anotando datas, informações. Eles queriam conhecer todos os detalhes, imaginar todas as hipóteses para cercar os vários lados do caso, preparando-se para qualquer eventualidade, no decorrer do processo.
Lanira olhou-se no espelho com satisfação. O tom verde-escuro ficava-lhe muito bem. Ia encontrar-se com Gabriel. Desde a festa que ele a procurava, ora convidando-a para um cinema, ora para um sorvete na confeitaria ou mesmo uma conversa no clube. Iria passar em sua casa às sete. Quinze minutos antes ela já estava pronta e desceu para esperar. Vendo-a Maria Alice olhou-a com satisfação.
- Vai sair?
- Vou. Gabriel vai passar aqui às sete.
- Vocês estão namorando?
Ela abanou a cabeça negativamente.
- Não é nada disso. Somos apenas amigos.
- Quer dizer que ele ainda não se declarou?
- Não. Espero que ele não o faça.
- Por quê? É um belo rapaz e parece muito interessado em você.
- Isso não basta, mamãe, para namoramos.
- Se ele se declarasse, você o rejeitaria?
- Claro. Gosto de sua companhia, mas amor e outra coisa. Por enquanto estamos apenas saindo juntos, conversando. Nada mais. É bom não ficar imaginando coisas.
- Não estou imaginando nada. Vocês são jovens, saem juntos com freqüência. O que posso pensar?
A campainha tocou, Lanira espiou pela janela e disse:
- É ele. Vamos só tomar e sorvete. Voltarei cedo.
Ela saiu deixando uma onda de perfume no ar e Maria Alice aproximou-se da janela, seguindo com o olhar brilhante a figura da filha cumprimentando Gabriel, a gentileza do rapaz abrindo a porta para ela entrar. Acompanhou-os com o olhar até que o carro desapareceu no fim da rua.
Sua filha era linda, inteligente. Casando-se com Gabriel, faria uma aliança brilhante. O que poderia desejar mais? Nesse mundo de aparências, a posição social, o dinheiro eram muito importante. O amor não passava de um jogo de interesses, sempre colocado no convencional. Acabava na primeira decepção e só se sustentava quando havia interesse em manter as aparências e as vantagens da família.
Maria Alice havia se casado por amor. Entretanto, depois de tantos anos de vida em comum, percebia que nada havia sido como ela imaginara. As primeiras decepções ao notar que a prioridades do marido eram muito diferentes das suas. Enquanto ela dava mais importância a ficarem juntos, ele valorizava a vida social, a companhia de gente importante, as amizades de conveniência.
Quando ela reclamava sua ausência, sua falta de carinho, ele a chamava de imatura, salientando que apreciava a mulher equilibrada, de classe, capaz de governar a família com dignidade e firmeza. Decepcionada, Maria Alice esforçou-se para não desapontá-lo. Trancou os sentimentos e transformou-se na mulher que era. Agora, vendo a filha falando em amor, pensava como ela estava enganada.
O casamento, a família eram a riqueza de uma mulher. E essa riqueza tinha que ser preservada a todo custo, mesmo que para isso fosse preciso engolir a dor, a insatisfação, a raiva, fechar os olhos para tudo quanto pudesse ameaçar a estrutura familiar. Ela sabia da ligação do marido com Alícia. Ninguém lhe contara, descobrirá por acaso. Pensou em falar ao marido. Desabafou com sua amiga Angelina, que a ouviu em silêncio e depois considerou:
- Eu já sabia. Você até que demorou para descobrir.
- Sabia? Diz isso com essa calma!
- Digo porque já passei pela mesma coisa. Nesse Rio de Janeiro, que homem de nossa sociedade não tem uma amante?
Maria Alice olhou-a admirada:
- Aconteceu com você também?
- Faz tempo. A princípio fiquei revoltada. Depois pensei: se eu fizer barulho, escândalo, vai aumentar minha vergonha, todos vão saber. Separar eu não quero. Ficar por aí desquitada eu não suportaria. Depois, o que seria de meus filhos? Pensei, pensei e resolvi fazer de conta que não sabia de nada. Assim, não teria que tomar nenhuma decisão.
- Como agüentou?
- A princípio foi difícil. Depois achei que de alguma forma eu também estava enganando-o. Ele pensando que estava me fazendo de boba, mas era eu quem estava tapeando. Ficamos elas por elas.
- Você não o amava? Não sentiu ciúme?
- Amei, agora não amo mais. Que amor resiste a tantos anos de casamento? Hoje sei que nossa união é uma sociedade conveniente para ambos. Apenas isso.
- Você tem razão. O amor é ilusão.
- Depois, os homens precisam de uma mulher que lhes faça todas as fantasias sexuais. Com as esposas eles não se permitem nada disso. É até sinal de respeito.
- Pensando desse lado...
- Você se sujeitaria a qualquer coisa menos digna?
- Claro que não.
- Então! Uma amante é como uma válvula de escape para os vícios. A esposa é sempre a esposa. Por isso, continuei firme um meu lugar e não me arrependo. Ele me respeita, me trata bem e temos uma vida em comum equilibrada. Para que mais?
Maria Alice hesitou um pouco, depois disse:
- Ele ainda a procura?
- Claro. De vez em quando.
Depois dessa conversa, Maria Alice fez sua opção. Faria a mesma coisa que Angelina. Antônio nunca saberia que conhecia a verdade. Pensou na filha com tristeza. Ela esperava o amor, como todas as moças. Quantas decepções teria que passar para descobrir que estava enganada?
Esforçou-se para afastar aqueles sentimentos tristes. Ela não se permitia pensar nem se entristecer. Era uma dama e uma dama tinha completo controle sobre as emoções. Depois dos cumprimentos, Lanira sentou-se no carro e assim que Gabriel deu partida disse:
- Não esperava que me ligasse hoje.
- Porquê?
- Como não tem aula, pensei que tivesse ido andar de barco.
- Fiquei tentando. Mas entre ficar só no barco e passear aqui com você, preferi ficar. Lanira olhou-o um pouco tensa. Sua mãe teria razão? Gabriel estaria mesmo querendo namorá-la? Claro que ela havia percebido que ele se sentia atraído, e ela também gostava de estar com ele. Contudo, sabia que um namoro entre eles envolveria as duas famílias, poderia transformar-se em um compromisso formal e sério. Isso ela não desejava. Reconhecia que ele era encantador, mas ao mesmo tempo ela não queria transformar-se em uma dona de casa, como as que conhecia e abominava. Talvez fosse mais prudente espaçar os encontros com ele.
- Você tem muitos amigos que gostaria imensamente de fazer-lhe companhia. Acho que está se tornando mais metropolitano.
- Teria imenso prazer se você pudesse ir comigo. Mas sei que não aceitaria.
- Porque não?
- Só nós dois? Ela riu:
- Não ficaria bem. Mas se meu irmão também fosse, talvez Laura, ou Rubinho, não teria nada de mais.
Ele parou o carro no meio-fio e voltou-se para ela, olhando-a nos olhos:
- Você está apaixonada por Rubinho?
- Eu? Não! Que idéia!
- Desde a minha festa desejo perguntar-lhe isso. Vocês não se largam.
- Ele é sócio de Daniel e muito amigo. Apenas isso.
- Tem certeza?
- Tenho. E já que tocou nesse assunto, gostaria de dizer-lhe que por enquanto não penso em namorar. É muito cedo.
- Muitas meninas se casam com sua idade.
- É justamente isso que desejo evitar.
- É contra o casamento?
- Não me agrada a idéia de transformar-me em matrona, nem de arranjar alguém que mande em mim.
- É essa idéia que faz a vida em família? Não pensa em casar-se?
- Não, enquanto puder evitar. Ele abanou a cabeça:
- É difícil acreditar. Você não existe.
- Porquê?
- Você é diferente. As outras só pensam em se casar. Não posso compreender. Você vem de uma família bem formada, seus pais levam vida exemplar. De onde tirou essas idéias?
- Observando, amigos, conhecidos. Enquanto as mulheres cuidam de manter as aparências com classe, os homens se dividem entre o interesse, o jogo de poder. Vale tudo, desde que nada venha à tona.
Pelos olhos dele passou um lampejo emotivo quando disse:
- Você está sendo dura. Não acredita no amor e na felicidade?
- Às vezes penso que sim, outras que não.
- Pois eu também odeio esse mundo de aparências, onde quem tem mais dinheiro vale mais, onde se passa por cima de todos os sentimentos para alimentar a ambição. Quando tudo isso me enoja, refugio-me no barco em busca de paz.
Lanira surpreendeu-se:
- Não sabia que sentia isso.
- Tem razão. As pessoas fazem qualquer sacrifício para acobertar suas mazelas. Em sociedade é preciso dissimular, sorrir mesmo quando o coração está amargurado e infeliz. Lanira olhou-o sem saber o que dizer. O rosto de Gabriel estava sombrio, e havia tanta amargura em seu tom que ela se arrependeu de haver tocado no assunto. Tentou confortá-lo:
- Nós não precisamos ser iguais a eles. Podemos ser diferentes. Não desejo me casar por conveniência, nem me transformar em uma mulher como tantas que conheço. Quero ser eu mesma. Quando eu amar, terá que ser de coração, e farei tudo do meu jeito, sem ligar para as conveniências.
O rosto de Gabriel desanuviou-se, ele sorriu. Lanira considerou que ele ficava lindo quando sorria.
- Se você se apaixonasse por um joão-ninguém, teria coragem de casar-se com ele?
- Se ele me amasse sim.
- Seus país não aprovariam.
- Eu enfrentaria todo mundo para ser feliz. E isso que eu quero. Tenho pensado muito nesse assunto, Gabriel. A vida só vale a pena se houver felicidade.
- Tomara que continue pensando assim quando chegar o momento. Lanira riu contente. Sentia-se aliviada. Conseguirá posicionar-se sem ferir os sentimentos dele. Depois dessa conversa, tinha certeza de que ele não lhe daria nenhuma declaração. Poderiam continuar a ser amigos. No dia seguinte, conversando com Daniel, ela considerou:
- Gabriel parece-me infeliz. Não sei por quê, mas há momentos em que ele se revela magoado, amargurado.
- Será? Ele é muito elogiado em todos os lugares. Bonito, rico, respeitado. As mulheres suspiram por causa dele. Por que estaria infeliz?
Lanira contou-lhe a conversa que haviam tido e finalizou:
- Suas palavras fizeram-me pensar. Há alguma coisa que o está incomodando.
- Será que ele sabe de alguma coisa sobre o passado dos pais?
- Não sei. O que sinto é que, quando fala de família, ele se emociona, fica amargo, parece infeliz.
- Talvez seja bom você continuar saindo com ele. Quem sabe um dia acaba contando o que queremos saber.
- Vou ser bem sincera com você. Na festa aproximei-me dele com essa intenção. Porém, agora, reconheço que ele se transformou em um amigo. É inteligente, sincero, generoso. Não estou saindo com ele para descobrir nada. Estou saindo porque gosto de sua companhia. Eu o aprecio.
Daniel sorriu malicioso:
- Você está se apaixonando por ele.
- Não é nada disso. Ele é apenas um amigo. Nada mais do que isso. E vai continuar assim.
- Alegra-me saber. Logo entraremos com a ação e se estivesse apaixonada seria um problema.
Lanira ficou pensativa por alguns segundos, depois disse:
- Às vezes penso nisso e sinto um aperto no coração. Vocês vão mesmo mover essa ação?
- Tudo indica que sim. Ela suspirou:
- Vai ser um deus-nos-acuda. Aqui em em casa dele. Nossa amizade vai acabar com certeza.
- Isso a entristece?
- Preferiria que nada disso fosse com ele.
- Se ele gostar mesmo de você, se fizer questão de sua amizade, saberá separar as coisas. Você pode jogar toda a culpa em mim.
- Nem quero pensar. Mamãe então vai ter um ataque. Em que pé estão as investigações?
- Jonas foi para São Paulo tentar obter informações sobre a ama. Deve estar de volta amanhã.
- Quando pensam entrar com a ação?
- Alberto está impaciente. Está difícil segurá-lo. Se tudo der certo, entraremos com a petição na próxima semana.
- Já?
- Parece que ele descobriu algumas coisas importantes com relação a ama. Amanhã decidiremos a data. Pensando bem, é melhor enfrentar as feras logo. A espera deixa-me tenso.
- A mim também.
- Você? Não desejo envolvê-la de forma alguma.
- Já estou envolvida.
- Ninguém precisa saber disso.
Daniel deixou Lanira e foi para o quarto. Deitou-se e custou a dormir. Sentia-se inquieto. A petição formalizando a denúncia e solicitando a abertura de um inquérito estava redigida, faltando apenas alguns detalhes que deveriam incluir com as novas informações de Jonas.
Sabia que sofreria pressão da família. Estava preparado. Ele e Rubinho haviam combinado que se a situação fosse insustentável, eles sairiam de casa, alugariam um apartamento modesto, dividiriam as despesas.
Mais calmo, adormeceu. Sonhou. Viu-se, um pouco diferente, mais velho, em um quarto lindamente decorado, sentia-se inquieto, desesperado. Aproximou-se do leito em que a mesma mulher que o acusará estava deitada, abatida, sem forças.
Ele se ajoelhou ao lado da cama, sentindo aumentar sua angústia. Tomou as mãos dela dizendo com voz suplicante:
- Lídia, não me deixe! Eu peço! Não me abandone! Farei tudo que quiser!
Ela abriu os olhos e fixou-o murmurando:
- Agora é tarde! O que está feito. Acabou.
Seus olhos se fecharam, sua cabeça caiu para o lado e ele percebeu que ela estava morta. Sentiu seu peito rasgar de dor e gritou:
- Não! Não!!!
Daniel acordou agoniado, soluçando. Levantou-se de um salto. Um sonho! Fora apenas um pesadelo. Um horrível pesadelo que havia dilacerado seu coração. O que estaria acontecendo com ele? Seria um aviso para não fazer o que eles pretendiam? Por que sonhara com aquela mulher duas vezes? Não a conhecia, entretanto sentia que na amava com loucura. Estaria perdendo o juízo?
Olhou o relógio: quatro horas. O dia estava amanhecendo. Deitou-se novamente, porém não conseguiu mais dormir. Sentia o peito oprimido por grande tristeza. Tentou reagir. Era loucura ficar tão impressionado por um simples sonho. Nada disso havia acontecido. Mas a emoção forte continuava presente como se tudo estivesse acontecendo naquela hora. Ficou se remexendo na cama, esforçando-se para convencer-se de que a verdade era muito diferente de seu sonho, mas aquela sensação desagradável e forte reaparecia, deixando-o inquieto.
Levantou-se muito cedo e chegou ao escritório antes das oito. Rubinho chegou meia hora depois e olhando para ele perguntou:
- Aconteceu alguma coisa? Você está com uma cara!
- Não aconteceu nada.
- Está doente?
- Não. Mas alguma coisa esquisita está se passando comigo. Ando impressionável, inquieto, tendo pesadelos.
- Aquela mesma história com Alberto?
- Não. Agora é com uma linda mulher. Não a conheço e tive dois pesadelos com ela. Em um acusava-me. Ontem sonhei que ela estava morrendo e que eu amava muito. Acordei angustiado, não pude mais dormir, e até agora ainda não me livrei daquela sensação dolorosa. Não consigo entender.
Rubinho balançou a cabeça, dizendo:
- Isso me parece coisa do passado. Você está revivendo cenas de outra vida.
- Você já disse isso mas eu não acredito. É muito fantasioso para ser verdade.
- Eu mesmo também não tenho certeza de nada. Mas se ocorre que é a única forma de explicar o que está acontecendo. Você sonha com uma pessoa que não conhece, sente que a ama, sofre por ela. De onde tirou esses sentimentos? Como apareceram com tanta força dentro de você? Para mim, isso é mais fantástico do que a crença em vidas passadas. Daniel balançou a cabeça interdito. Por fim disse:
- Só sei que essas emoções são muito fortes. Não consigo esquecê-las. Sinto remorsos não sei de quê, tristeza, dor. Estarei ficando louco?
- Você não tem nada de desequilibrado. E lúcido, tem bom senso.
- Às vezes penso que tem alguma coisa a ver com Alberto. Os pesadelos começaram um pouco antes de ele aparecer em minha vida. Até então eu nunca havia tido nada disso. Será que é para eu não me envolver com o caso dele?
- Não foi isso que você falou, lembra-se? Foi até aconselhado a aceitar o caso.
- Não consigo entender.
- Se você estiver tendo reminiscências de suas vidas passadas, ele pode ter se relacionando com você naqueles tempos.
Daniel passou a mão pelos cabelos inquieto.
- Não sei. Parece-me loucura acreditar em uma coisa dessas.
- Não é, não. Tenho visto pessoas de cultura envolvidas com o estudo desses assuntos. Garantem que têm provas concludentes de que isso é verdade. Já pensou que coisa extraordinária? Como nossa vida mudaria se pudéssemos ter essa certeza?
- Se isso fosse verdade, revolucionaria a sociedade. Ninguém fala nada. Acho que não existem essas provas.
- Em todo caso, vou telefonar para Júlio. Ele estuda isso e poderá nos esclarecer melhor. Passaremos em seu consultório quando saírmos daqui.
- Está certo. Preciso resolver esse problema, acabar com isso. Talvez como médico ele tenha alguma explicação melhor.
- Nenhuma outra conseguiria explicar o que lhe aconteceu.
- Jonas já chegou?
- Já. Está nos esperando.
Jonas entrou e depois dos cumprimentos foi direto ao assunto.
- Trago novidades.
- Vá falando - disse Rubinho.
- Conforme combinado, tenho seguido Bóris e descobri que ele mantém contato com a ama em São Paulo. De quando em quando manda-lhe dinheiro. Quem faz a remessa é Pola, a amante dele. Mas ela não tem posses vive do que ele lhe dá. Logo, é ele quem manda o dinheiro, certamente a mando do Dr. José Luís.
- Isso significa que essa mulher continua a chantageá-los - tornou Daniel.
- E o que parece. Por que ele haveria de dar-lhe tanto dinheiro? Bom, eu fui a São Paulo e fiz amizade com a criada de Eleutéria, por sinal um pedaço de morena.
- Acha que pode confiar no que ela lhe diz? - indagou Rubinho.
- Acho. Demo-nos muito bem. Está apaixonada por mim. Depois, ela não gosta da patroa. Diz que é grossa e muito mandona. Pretendia deixar o emprego, mas eu lhe pedi que não o fizesse.
- Não lhe contou por quê - disse Rubinho.
- Não. Só lhe disse que um cliente havia me incumbido de investigar a vida dela, que se ela me ajudasse não iria arrepender-se.
- Ela pode dar com a língua nos dentes - sugeriu Daniel. Jonas retrucou:
- Respondo por ela. Garanto que está do meu lado. Está interessada em nosso futuro. Se ela trabalhar direitinho, posso até pensar nisso.
- É sério, então? Está caído pela morena? - indagou Rubinho.
- Reconheço que ela é uma tentação. Mas é cedo para dizer. O que sei é que está totalmente do meu lado. Foi ela quem me contou de Eleutéria e que fala nisso abertamente com o marido, mencionando que deveria aumentar a remessa, dizendo que afinal eles são ricos e podem pagar. Chega a dizer que enquanto eles estão brilhando na alta sociedade, ela está lá, endo que arrancar o sustento da loja.
- Ela disso isso? - perguntou Daniel.
- Disse. O que comprova completamente a história de Alberto. Ela está chantageando o Dr. José Luís e a cada dia fica mais exigente. Como todos os chantagista, sempre acha que pode obter mais.
- Essa criada concordaria em depor se fosse preciso?
- Não sei. Talvez. Marilena é corajosa e não gosta deles. Posso ver o que consigo com ela.
- Tenho certeza de que, se conseguisse isso, Alberto seria reconhecido quando recebesse o dinheiro.
- Ela me conseguiu alguns extratos bancários de Eleutéria contendo os depósitos efetuados e percebi que eram realizados uma vez por vez por mês, sempre data. Aqui estão eles.
- Eleutéria não vai dar pela falta?
- Não. Ao que parece ela não é organizada com seus papéis. Tem pequeno escritório em asa, onde deixa tudo espalhado pelas gavetas. Marilena garante que ela nem vai perceber. Deixei-a encarregada de telefonar-me se acontecesse alguma coisa diferente e voltei para cá. Queria ver quem fazia o depósito do dinheiro. Ontem foi o dia previsto. Algo me dizia que Bóris tinha algo a ver com isso. Fiquei de tocaia em casa do Dr. José Luís. Eram mais de meio dia quando ele saiu e fui atrás. Foi diretamente à casa de Paola, ficou lá meia hora. Saiu e eu resolvi esperar. Se ele fosse fazer o depósito, teria ido direto ao banco. Meu palpite estava certo. Cinco minutos depois, ela saiu e segui-a. Foi direto à agência bancária. Entrei junto com ela, como se fosse também fazer um depósito. Vi quando ela preencheu a papeleta com o nome de Eleutéria, pegou um maço de notas e fez o depósito.
- Em dinheiro - disse Rubinho.
- Sim. Foram duzentos mil cruzeiros.
- Tudo isso?
- Em dinheiro, para não deixar nenhuma prova - comentou Daniel. - Eles nem imaginam que estamos investigando. Essa Eleutéria nunca vai querer depor a favor de Alberto. Primeiro porque seria enquadrada como cúmplice, segundo porque mataria a galinha dos ovos de ouro.
- Já esperava por isso - ajuntou Rubinho. - Em todo caso, parece que agora não temos mais duvidas. Podemos dar entrada na petição.
- Vamos chamar Alberto para conversar a respeito - disse Daniel. - Jonas vai continuar com as investigações. Falta-nos o paradeiro da verdadeira mãe do menino que foi enterrado no lugar de Marcelo. Alberto nunca conseguiu localizá-la.
- Talvez tenha morrido. Mas se conseguirmos encontrá-la viva, será difícil convencê-la a depor. Foi cúmplice e certamente será também responsabilizada - argumentou Rubinho. Jonas interveio:
- Se conseguirmos encontrá-la, não poderá furtar-se a prestar declarações à justiça. Poderemos conseguir a exumação do corpo.
- É muito tempo, e a exumação não tará muitos esclarecimentos ao caso - opinou Daniel.
- Poderemos tentar. Hoje em dia a perícia está muito adiantada - disse Rubinho. Jonas saiu e os dois se dedicaram inteiramente em trabalhar na petição de abertura da ação contra a família Camargo. Nela estavam relatados todos os fatos que conseguiram descobrir, com nomes e endereços inclusive com os comprovantes de depósitos bancários feitos à ex-ama de Marcelo. Era um trabalho de fôlego, que exigia deles o melhor que pudessem obter. Chamaram Alberto para que ele tomasse conhecimento dos documentos que eles haviam redigido e verificar se estava tudo de acordo com os fatos que ele vivenciará. Faziam questão absoluta de manter-se dentro da verdade, narrando os fatos que por si só constituíam-se em um libelo terrível contra Camargo.
Eles queriam cuidar bem de todos os detalhes. Dentro de dois ou três dias as cartas seriam lançadas e não haveriam mais como recusar.































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