CAPÍTULO 11

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Gabriel entrou em casa aborrecido. O encontro com Lanira no restaurante transtornara-o . Ele estava apaixonado por ela. Seu rosto bonito, seu olhar inteligente, suas atitudes, diferentes das moças que conhecia, haviam-no impressionado a princípio e, depois, com a convivência, sentira-se atraído, acabando por descobrir que pela primeira vez estava enamorado. Habituado a ser muito paparicado pelas mulheres que circulavam à sua volta disputando sua preferência, Gabriel vivia sempre procurando maneiras de escapar delas, a fim de garantir sua privacidade. Com Lanira não acontecera isso. Ela agia com naturalidade, sem os joguinhos e circunlóquios, colocando francamente suas idéias.
Não fora a atitude dela esclarecendo que não desejava namorar e ele já teria se declarado. Al lado dela, quase não resistia ao desejo de tomá-la nós braços, de beijar sua boca carnuda, de perguntar se ela sentia alguma coisa por ele.
Percebia que ela gostava de sua companhia, que a seu lado sentia-se à vontade, olhando-o com carinho e prazer. Gabriel tinha esperança de vir a conquistá-la vencendo a barreira que ela havia colocado.
Foi na faculdade que ouviu alguém comentar sobre o escândalo envolvendo seu pai. Imediatamente comprou o jornal e o que leu deixou-o estarrecido. Nunca se dera bem com o pai. Apesar de ele tentar se aproximar, acabavam sempre não se entendendo. Gabriel admirava apaixonadamente a mãe. Quando menino, ouvirá uma conversa entre ela e o pai e descobrirá que eles não viviam bem. José Luís tinha negócios com os quais sua mãe não concordava. Ouvira-o claramente ameaçá-la.
- Se você abrir a boca, nunca mais verá seu filho.
- Você não fará isso! Não seria capaz!
- Experimente me desafiar! Garanto que vai se arrepender.
- O que você pode fazer?
- Você sabe que tenho meios de separar você dele! Não me obrigue a fazer isso. Se for razoável, continuaremos as nossa vida e ninguém saberá de nada.
Escondido atrás da porta, Gabriel ouviu que o pai saiu enquanto sua mãe chorava copiosamente. Ficou com medo de ser castigado pelo pai e não teve coragem de sair de seu esconderijo. Mas a partir daquele dia começou a observar o pai e notou que ele não amava sua mãe como parecia. Diante das pessoas ele mudava completamente, tratando-se com carinho e deferência. Assim que ficavam a sós, mal se falava. María Júlia assumia aquela fisionomia triste e Gabriel percebia que ela sofria. Nunca teve coragem para conversar com ela sobre o assunto, mas rodeava-a de carinho, na tentativa de compensar a frieza do marido. No dia em que os jornais publicaram as declarações de Daniel, Rubinho e Alberto, seu pai fechara-se no escritório com sua mãe e Bóris, durante muito tempo. Maria Júlia havia saído de lá pálida, enquanto José Luís, com ar preocupado, saíra com Bóris. Gabriel aproximara-se de Maria Júlia, com o jornal nas mãos.
- Mãe, Isso é verdade? Ela o olhou assustada.
- Você acha que seríamos capazes disso? Gabriel hesitou.
- Não sei. Você, não. Mas... papai...
Ela aproximou dele colocando a mão em seu braço.
- Seu pai não faria isso. Esqueça essa história.
- Nesse caso, por que estão tão preocupados? Vocês ficaram no escritório mais de duas horas.
- Sabe como é, um escândalo desses é sempre preocupante. A maldade das pessoas, os invejosos vão atirar lama em nossa família. Temos que nos defender.
- Será fácil provar que isso é uma calúnia. Vocês devem possuir todos os documentos, testemunho de pessoas, tudo.
- já faz muito tempo. As pessoas que poderiam testemunhar dispersaram-se. Seu pai vai falar com o Dr. Loureiro. Ele vai imediatamente dar um basta neste assunto.
- Por que será que Daniel e Rubinho prestaram-se a esse papel? Nossas famílias são amigas. Houve algum problema entre vocês?
- Absolutamente nenhum. Seu pai vai imediatamente conversar com Antônio e Ernesto para exigir que os filhos retirem essa queixa.
- Quer dizer que é uma calúnia?
- Claro! Como pode acreditar em uma coisa dessas?
Gabriel acalmou-se um pouco, entretanto na faculdade os comentários maldosos incomodavam-no. E Lanira, o que estaria pensando? Estaria do lado do irmão? Teria acreditado naquela história? Sentiu vontade de falar com e, mas não teve coragem. Resolveu esperar para ver como as coisas se sucederiam.
Dali a alguns dias, o jornal relatou minuciosamente a história de Alberto com todos os detalhes, e, lendo-a, Gabriel começou a juntar algumas lembranças de sua infância. Muitas vezes saía com a mãe a pretexto de fazer compras, e ela ia a uma agência de correio em que despachava um envelope para a Inglaterra. Ele lera o endereço e ela lhe pedira que não contasse a ninguém.
- Esse será nosso segredo - dissera. - Ninguém pode saber que escrevi está carta.
- Por quê?
- Trata-se de uma amiga muito querida que mora na Inglaterra. Brigou com nossa família, mas eu continuo a me relacionar com ela. Precisa de ajuda e eu lhe mando dinheiro. Se seu pai descobrir, vai brigar comigo. Ele a odeia. Por isso, peço-lhe que guarde segredo!
Gabriel estremeceu ao se recordar. E se aí invés dessa amiga ela mandasse dinheiro para sustentar o neto do Dr. Camargo? Não podia acreditar que sua mãe tivesse participar de um negócio desses,a por que ela mandaria dinheiro para a Inglaterra, escondido do marido?
Seria muito coincidência.
Sabia que Maria Júlia não gostava de Bóris. Entretanto suportava sua presença. Ele percebia o quanto o russo era intrometido e ousado. Usufruía de regalias que nenhum mordomo que ele conhecia tinha. Notará que até seu pai contemporizava com Bóris, submetendo-se a seus caprichos.
Pensando nisso, Gabriel sentiu aumentar suas suspeitas. Bóris estava na casa desde aqueles tempos. Teria alguma coisa a ver com essa história? Estaria seu pai sendo chantageado pelo criado?
A cada dia suas suspeitas aumentavam. A firmeza dia dois advogados que enfrentavam tudo para apoiar aquele caso fazia-o desconfiar que eles possuíam dados e provas conclusivas. A cada notava que seu pai ficava mais nervoso com o assunto e muitas vezes fechava-se com Bóris no escritório por largo tempo.
Se ele tivesse certeza de que seu pai era inocente, teria enfrentado todos os comentários sem se preocupar. Mas, pensando na culpa deles, perdia toda a coragem. Como proceder se ficasse privada a culpabilidade de seu pai?
Não podendo suportar a situação, Gabriel trancou a matrícula e afastou-se da faculdade. Sua mãe chorou, mas compreendeu que ele preferia esperar tudo passar para voltar a estudar. Gabriel foi para o barco e durante mais de quinze dias circulou pelas praias das pequenas cidades vizinhas, ancorando aqui e ali, para abastecer, voltando à sua solidão. Fazia dois dias que havia regressado. Recebera os recados de Lanira, mas não se sentia com coragem de conversar com ela. O que lhe diria?
Sua irmã, Laura, não escondia sua revolta para com os dois advogados. Chamava-os se invejosos e oportunistas, querendo fazer carreira a custo do sensacionalismo barato. Tinha certeza de que logo eles seriam desmascarados e tudo voltaria a ser como antes. Apesar disso, tinha resolvido dar um tempo, não aparecer em público, para não ter que discutir com as pessoas, nem suportar sua curiosidade.
Maria Júlia, vendo Gabriel entrar com ar preocupado, aproximou-se:
- O que foi, Gabriel? Você parece aborrecido. Aconteceu alguma coisa?
- Nada de mais. Estava acabando de almoçar quando Rubinho, Daniel e Lanira entraram no restaurante.
- Você falou com eles?
- Não. Eu estava no fundo e eles não me viram. O restaurante estava cheio e fiz de conta que não os tinha visto. Saí logo.
- Não foi agradável. Você gostava de sair com Lanira. Estavam namorando?
- Não, mãe. Era apenas amizade. Ela acha que é cedo para namorar.
- Naquele tempo cheguei a pensar que estivesse apaixonado por ela. Seus olhos brilhavam quando falava nela.
Gabriel suspirou, ficou silencioso por alguns segundos, depois disse:
- Eu gosto dela. É diferente das moças que tenho conhecido. Inteligente, alegre, tivemos bons momentos juntos.
- Vocês continuam saindo? Ela tem ligado para você.
- Não. Não há clima. Ei não saberia o que lhe dizer.
- É uma situação constrangedora. Por isso ficou triste? Gabriel abraçou-a com carinho:
- O que posso fazer? Enquanto essa situação não ficar devidamente esclarecida, não sei o que falar com ela. O que diz o Dr. Loureiro? Que providências tomou para acabar com isso?
- Seu pai não foi à audiência, mandou o Dr. Loureiro. Ele levou os documentos que comprovam a morte de Marcelo, e tudo o mais. Estamos esperando a decisão do juiz. Com certeza vai indeferir a queixa e encerrar o caso.
- Tem certeza?
- Claro. Não há nada que prove o contrário.
- Mãe, e se não for assim? E se o juiz der andamento ao processo? Maria Júlia estremeceu:
- Isso não vai acontecer. Eles nunca poderão provar que esse moço é Marcelo. Gabriel ficou calado por alguns instantes. Por fim, não resistiu e disse à queima-roupa.
- Mãe, por que é que você mandava sempre aquele dinheiro para a Inglaterra?
Ela se sobressaltos:
- Psiu! Não fale nisso, por favor. Seu pai não pode saber nunca, principalmente agora.
- Porquê?
- Ele não concordaria. Já lhe disse, era para uma amiga. Ela brigou com nossa família. O que está querendo insinuar?
- Marcelo viveu na Inglaterra. Não era para sustentá-lo que você mandava aquele dinheiro?
Maria Júlia empalideceu e teria caído se Gabriel não a tivesse abraçado assustado:
- Mãe, o que foi? Você está pálida!
- Por favor, meu filho! Nunca mais repita isso! Já pensou se alguém escuta? Seu pai nunca pode saber disso. Jure que nunca vai contar!
- Eu juro. Não vou contar nada. Acalme-se! Sente-se no sofá. Ela se sentou e, segurando as mãos dele, disse nervosa:
- Nunca mais repita isso, peço-lhe. Jure que nunca mais voltará ao assunto!
- Fique tranqüila, não vou falar com ninguém.
- Jure.
- Mãe, eu toquei neste assunto porque algumas lembranças estão né preocupando desde que começou esta história. Percebo que há alguma coisa que eu não sei é que você não quer me contar. Eu preciso saber. Seja o que for que tenha acontecido, eu estou do seu lado, farei tudo que puder para ajudá-la. Mas tenho que saber a verdade. Todos esses anos tenho observado sei sofrimento. Sei que tem sido ameaçada por papai, e sinto que até Bóris pode estar envolvido.
- Você me assusta. Não queria que meus filhos se envolvessem nessa história. Peço-lhe, fique fora disso!
- Não posso, mãe. Por que não me conta tudo? Do que tem medo? Esse moço pode mesmo ser Marcelo?
María Júlia, torcia as mãos nervosamente quando disse:
- Eu pensei que tudo tivesse acabado! Meu Deus! Estou sendo castigada!
- Então é verdade? Marcelo está vivo?
Maria Júlia levantou-se e olhando-o nós olhos tornou:
- Prometa que nunca mais falará sobre isso aqui em casa! Por favor! Eu prometo que quando puder contarei toda a verdade. Não aqui. As paredes têm ouvidos. Vamos prometa.
- Está bem, prometo. Mas você têm que me dizer tudo.
- Direi, desde que atenda meu pedido
- Quando?
- Tem que esperar. Ninguém pode saber que você sabe de alguma coisa. Entendeu?
- Entendi. Poderemos nos encontrar fora daqui e conversar. Não agüento mais esperar.
- Às vezes é melhor não saber.
- Tudo é melhor do que a dúvida.
- Precisa ser em um lugar sossegado, onde ninguém possa nos ouvir.
- Deixe comigo. Sei como arranjar tudo.
- Sinto-me cansada...
- Você está abatida.
- Vou para o quarto me arrumar um pouco.
Quando ela saiu, Gabriel sentou-se pensativo. Era evidente que havia um segredo e era muito provável que Marcelo estivesse vivo mesmo. A atitude de sua mãe não deixava margem a dúvida. Por que seu pai não podia saber que ela mandava dinheiro para a Inglaterra? Ardia de curiosidade para conhecer a verdade.
Não acreditava que sua mãe fosse culpada. Era uma mulher de princípios. Se ela ajudara o marido encobrindo essa farda, foi por ter sido ameaçada de alguma forma. Talvez até para salvar os filhos. Não ouvirá o pai ameaçá-la de tirar-lhe os filhos? Era difícil acreditar que um pai ameaçaria a própria família. Seria verdade o que ele ouvira quando criança?
Resolveu que naquele dia mesmo daria um jeito para sair com a mãe sem despertar suspeitas. No jantar, comentou diante de todos que a estava achando um pouco abatida, ao que ela respondeu:
- Estou um pouco adoentada. Não é nada.
- Você precisa de ar puro. Ninguém consegue respirar mais nesse Rio de Janeiro. Amanhã cedo vamos dar uma volta de barco. Quero mostrar-lhe algumas mudanças que fiz. Garanto que o ar do mar lhe fará bem.
- Não posso, meu filho. Temos alguns compromissos.
- Sua saúde é mais importante. Suspenda os compromissos e vamos passear um pouco. Garanto que lhe fará bem, que voltará mais corada e disposta.
- Gabriel tem razão. Você tem estado muito deprimida. Um pouco de ar puro fará bem a você - tornou José Luís.
- Está bem, iremos.
- Isso mesmo, mãe. Passaremos o dia inteiro no mar. Voltaremos ao entardecer.
Na manhã do dia seguinte, Gabriel levantou-se cedo. Estava ansioso, mas teve que esperar a mãe despachar seus compromissos. Eram mais de dez horas quando finalmente saíram.
O motorista deixou-os no cais, onde o barco estava ancorado. Na embarcação estava apenas o encarregado de cuidar de tudo, que muitas vezes acompanhava Gabriel em suas viagens, dividindo o leme e fazendo a manutenção.
- Bom dia, João - disse Gabriel entrando no barco. - Está tudo em ordem? Podemos zarpar?
- Bom dia. Podemos sim. Bom dia, D. Maria Júlia.
- Bom dia, João.
- Estou feliz por ter a senhora a bordo.
- Minha mãe precisa respirar um pouco de ar puro. Vamos passear o dia inteiro. Tem comida?
- Tem, sim. Podemos ir até Angra. Gostaria de fazer um almoço gostoso para D. Júlia.
- Está bem, João. Por enquanto, vamos dar uma volta.
Era um barco muito bonito, com duas cabines em baixo e uma boa sala de estar em cima, no meio do convés. Maria Júlia guardou a bolsa na cabine, trocou de roupa. Fazia tudo maquinalmente. Não queria dar a perceber o quanto estava nervosa.
Gabriel serviu um refrigerante à mãe, colocou salgadinhos na bandeja, apanhou um copo de cerveja, sentou-se a seu lado na pequena saleta dizendo:
- Relaxe, mãe. Veja que dia lindo.
- É verdade. Estou tão agoniada que nem reparei.
- Eu queria trazê-la aqui para que renove as suas energias. Não gosto de vê-la triste, abatida. Seja o que for que houver acontecido, ficarei do seu lado. Farei tudo para que fique bem.
Maria Júlia suspirou:
- Obrigada, meu filho. Quanto mais você me dá carinho, mais eu me arrependo do que fiz. Pode ter certeza de que estou sendo muito castigada por minha fraqueza. Gabriel segurou as mãos frias da mãe, apertando-as com força:
- Eu estou aqui, mãe. Do seu lado. Pronto para defendê-la de tudo, contra todos.
- Obrigada, meu filho.
- Agora, fale.
- Tem certeza de que João é de confiança?
- Absoluta. De onde ele está, não pode nos ouvir, e, mesmo que pudesse, garanto que faria tudo para nós ajudar. Não é apenas um emprego, é um amigo dedicado que tenho.
- Está bem. O que quer saber?
- Tudo. Desde o começo. Você se casou por amor?
- Não. Mas seu pai era um homem bonito, galante, atencioso e eu o aceitei. Mas não é de nossa vida que eu quero falar.
- Eu noto que vocês não se dão bem.
- Esse é um outra história. Vim aqui para falar sobre Marcelo.
- O que aconteceu realmente? Esse moço pode estar dizendo a verdade?
Maria Júlia olhou para o filho agoniada. Era-lhe muito difícil falar nesse assunto.
- Eu gostaria muito que você me poupasse e esquecesse o assunto. Ele meneou a cabeça negativamente.
- Não posso, mãe. Seja o que for que tiver acontecido, eu já disse: vou ficar do seu lado, dar meu apoio, mas eu quero a verdade. Tenho o direito de saber. Do que tem medo?
- Não é por mim que temo. Incomoda-me perceber sua animosidade com seu pai.
- Ele não se importa, mãe. Aliás, nunca se preocupou com o que eu sinto.
- É porque você o ignora.
- Não viemos aqui para falar de meu relacionamento com papai. Você sabe que não concordo com a maneira que ele a trata na intimidade. Afasto-me para não brigar com ele em respeito a você, para não desgostá-la. Mas agora não se trata mais de nossa intimidade. Fatos graves estão sendo levados a público e não posso contemporizar. Tenho que saber a verdade, ainda que ela seja dura, para poder preservar nossa dignidade. Não posso fechar os olhos e fingir que nada está acontecendo. Maria Júlia ficou silenciosa por alguns instantes, depois disse:
- Pensei que tudo estivesse acabado. Nunca imaginei que depois de tantas anos a vida viesse nós pedir contas.
- Então é verdade. Esse moço pode ser Marcelo mesmo.
- Pode, meu filho. E seu pai nunca poderá descobrir minha participação nessa história, senão vai acabar comigo.
Gabriel levantou-se e abraçou-a com carinho.
- Nunca permitirei que ele toque em você, seja o que for que tenha feito. Estou aqui para defendê-la. Você pode contar comigo incondicionalmente.
- Obrigada, meu filho - disse ela com voz que a emoção embargava. - Eu sei que posso contar com você. Vou contar-lhe tudo. Na verdade, não agüento mais manter esse segredo.
Emocionada, Maria Júlia iniciou seu relato:
- Como você sabe, sempre tratei nossos empregados com respeito e consideração. Logo que nos casamos tivemos uma empregada que nos serviu durante alguns anos. Veio para nossa casa com quinze anos. Era dedicada e eu gostava muito dela. Porém apaixonou-se por um dos amigos de seu pai que freqüentava nossa casa. Sem pensar em nada, entregou-se a ele e ficou grávida. Ele pertence a uma família muito importante e, claro, exigiu que ela fizesse um aborto. Mas Maria recusou-se e a família dele, quando descobriu, passou a ameaçá-la, exigindo que deixasse seu filho em paz. José Luís ficou muito irritado. Mantinha boas relações com essa família, não se conteve e exigiu que Maria fizesse o aborto. Pressionada, ela me procurou pedindo ajuda e eu condoída dei-lhe dinheiro para fugir. Ela foi para Petrópolis e eu a ajudei até que nascesse o menino e ela pudesse trabalhar. A criança nasceu alguns dias depois de Marcelo. Era um lindo menino. Ela arrumou emprego em uma fábrica e foi vivendo. José Luís descobriu que eu a ajudava e ficou muito zangado comigo. Foi ele que uma noite atendeu o telefonema de Maria desesperada. O menino havia caído de uma janela do segundo andar, onde ela morava, e havia morrido. Ela não tinha dinheiro para o enterro.
- Era noite e eu, chocada, decidi viajar para Petrópolis para socorrê-la. José Luís não queria, mas, como eu disse que iria de qualquer forma, mandou Bóris me levar. Fiquei contrariada, sempre achei que ele me vigiava, mas, naquelas circunstâncias, o que eu queria era ver Maria e fazer o possível para ajudá-la.
- Fomos . Chegando lá, o corpo do menino ainda não havia sido liberado do hospital. Bóris foi vê-lo e não me deixou entrar, dizendo que ele caíra com o rosto nas pedras e ficará completamente irreconhecível. Tratei de confortar a mãe e quando o dia amanheceu conseguimos liberar o corpo para o enterro.
- Quando saímos, estranhei. Quem estava nos esperando era o carro do Dr. Camargo com Alberico, o motorista dele, na direção. Maria estava tão abalada que nem percebeu. Em vez de irmos para a casa de Maria, fomos direto para a mansão dos Camargo. José Luís nós esperava na entrada, o que muito me surpreendeu.
- A família estava passando as férias de verão em Petrópolis, como faziam todos os anos. Marcelo estava dormindo, os pais haviam ido ao Rio para uma recepção. Na casa estavam apenas Eleutéria, a ama de Marcelo, e Alberico, o motorista.
- Entramos e eu não me contive:
- "O que estamos fazendo aqui? O que está acontecendo?"
- "Tenho um plano que vou pôr em ação. Estou cansado se ficar em segundo lugar enquanto eles desfrutam do bom e do melhor. Meu pai sempre me dizia que havia sido lesado por tio Antônio na herança da família. Chegou a hora de ter de volta com juros o que me pertence."
- Assustada perguntei.
- "O que vai fazer?"
- "Vou cuidar de tudo e você vai fechar a boca. Se abrir, vai se arrepender."
- "Onde está Maria?"
- "Dei-lhe um calmante e está dormindo. Estava muito nervosa. Quando acordar estará melhor."
- "E o enterro?"
- "Deixe por minha conta. Vai ser o maior enterro que você já viu. Com tudo de primeira."
- Eu estava cansada. Havia passado a noite, em claro e resolvi descansar um pouco. Tio Antônio nós oferecia a casa sempre que quiséssemos, por isso fui para o quarto de hóspedes e deitei um pouco tentando dormir.
- Não consegui. Estava muito tensa. Ouvi vozes no quarto ao lado, levantei-me e apurei o ouvido.
- Alberico e Eleutéria conversavam.
- "É pegar ou largar. E a change de nossas vidas. O menino já morreu mesmo. Não vamos matar ninguém" - dizia Eleutéria.
- "Não sei, não. Vai ser uma tragédia. O Dr. Antônio é louco pelo menino. Vai sofrer muito. Não é justo fazer isso com ele" - respondeu Alberico.
- "Qual nada. Gente rica logo esquece. Isso passa. E nós vamos ficar ricos! Sem falar que nossa fortuna nunca vai acabar. Eles vão ter que pagar sempre para nos manter com a boca fechada. Você vai poder comprar aquela casa que andava namorando. Já pensou?"
- Fiquei assustada. O que eles estavam tramando? Custou, mas Eleutéria convenceu Alberico.
- "Vamos levar Marcelo para a casa de D. Diva. Quando ela viajou, deixou a chave comigo para molhar as plantas e cuidar dos passarinhos."
- "O que vão fazer com ele? Não quero que nada de mal aconteça."
- "Não vão fazer nada. Só sumir com ele."
- "Sumir como?"
- "Sei lá, homem. Isso não me interessa."
- Fiquei horrorizada. Fui procurar José Luís. Ele estava reunido com Bóris a portas fechadas. Entrei na sala ao lado e tentei ouvir o que diziam:
- "Vai dar tudo certo, você vai ver" - dizia Bóris.
- "Não sei, não. Estou preocupado com minha mulher. Nunca vai aceitar uma coisa dessas. Pode dar com a língua nos dentes."
- "Ela sempre faz o que você quer. Use o mesmo argumento de sempre. Ela ficará calada. Depois, vai usufruir de tudo também. Será cúmplice e nunca abrirá a boca."
- "É. Você está certo. Mas e o menino? O que faremos com ele?"
- "O melhor é acabar com ele."
- "Isso, não. E uma criança. Repugna-me fazer isso. Vamos levá-lo a um lugar de onde nunca poderá sair."
- "Mas ele tem quatro anos. Fala e pode nos delatar. O melhor é mesmo acabar com ele. Para vencer é preciso ter coragem. Já combinei com Eleutéria e Alberico, que levarão Marcelo para uma casa cujos donos viajaram e ela tem a chave. Lá veremos quem vai cuidar de sumir com ele."
- "Não quero mais gente metida nisso. Ninguém mais pode saber de nossos planos."
- "E quanto a Maria?"
- "Vai dormir por algum tempo. Quando acordar, informá-la-emos que enterramos o menino."
- "Ela vai querer saber onde. Eu posso arranjar isso no cemitério local. Só preciso do nome todo dele."
- "Temos no atestado de óbito."
- Eu estava apavorada. Percebi que a vida de Marcelo corria perigo. Mas eu ainda não havia entendido o que eles iam fazer. Esperei Bóris sair da sala para que eles não desconfiassem de mim e abordei José Luís.
- "Quero saber o que vocês estão tentando fazer."
- "Não precisa. Só tem que ficar calada."
- "Estou metida nisto e tenho o direito de saber."
- "Está certo. Você vai ter que cooperar mesmo. Marcelo acaba de morrer em um acidente de carro. O corpo ficou irreconhecível. Eleutéria e Alberico vão testemunhar e eu vou dar o atestado de óbito. Por acaso nós viemos hoje a Petrópolis e ao chegar soubemos da tragédia. Tentamos socorrê-lo, mas a morte foi instantânea. Bateu o rosto nas pedras."
- "Isso é uma loucura! Ele está vivo!"
- "Vamos enterrar o corpo do filho de Maria como sendo ele."
- "Isso nunca dará certo. É um horror! Já pensou na dor da família? O que espera ganhar com isso? Com a morte dele você não herda nada. Ainda há Claúdio e Carolina! Só uma cabeça doente poderia pensar uma coisa dessas!"
- "Você vai calar e fazer tudo direitinho, senão já sabe o que vai lhe acontecer."
Gabriel não se conteve:
- Por que ele domina você desse jeito? Do que tem medo?
- Trata-se de um segredo de minha família que não posso revelar. Prefiro morrer a que alguém descubra.
- Por causa disso você concordou em fazer o que ele queria!
- Foi. Concordei. Só Deus sabe como foi horrível. Fizemos tudo de tal forma que ninguém desconfiou de nada. Eu estava atormentada. Sabia que Bóris era perverso e eu temia pela vida de Marcelo. Depois do enterro do corpo como sendo o de Marcelo, procurei Alberico sem que ninguém soubesse. Ele gostava muito do menino.
- "Você tem que ajudar. Marcelo corre perigo. Nós temos que salvá-lo."
- "D. Maria Júlia, não quero levar isso na consciência. Já chega o que eles fizeram."
- "Você sabe onde ele está?"
- "Sei. Mas eles podem tirá-lo de lá."
- "Precisamos agir de pressa. Se me ajudar, não se arrependerá."
- "O que quer fazer?"
- "Salvar Marcelo. Levá-lo para longe, onde ninguém possa fazer-lhe mal."
- "Deixe comigo."
- Depois e me contou que se comprometerá com Bóris a matar o menino, na intenção de protegê-lo. Recebeu dinheiro por isso e ficou satisfeito de poder enganá-los. Escondeu-o de todos alguns dias. Eu, pretextando abalo nervoso, convenci José Luís de que queria ficar algum tempo no convento das irmãs onde eu fora educada e ele concordou de bom grato. Temia que eu não suportasse e acabasse pondo tudo a perder. Combinado com elas a pretexto de ver uma amiga doente na Inglaterra, ajudaram-me a preparar a viagem sem contar para minha família.
- Essa é a mesma história que você me contava quando mandava dinheiro.
- Isso. Alberico me ajudou levando Marcelo ao aeroporto na hora do embarque. Fizemos tudo de tal jeito que ninguém desconfiou. Deixei-o no melhor colégio da Inglaterra, recomendando uma educação esmerada. Era o mínimo que eu podia fazer por ele depois de haver compactuando com aquela infâmia.
- Você lhe salvou a vida.
- Graças a Deus. Apesar de tudo, é isso que me conforta. Mandei-lhe dinheiro durante muitos anos. Ele estava já na universidade quando Bóris descobriu que eu remetia esse dinheiro e José Luís me pressionou para saber por que e para quem eu o mandava. Fiquei apavorada. Se eles soubessem o que havia feito, certamente me castigaram. Suspendi a remessa do dinheiro. Eu havia deixado um recado para que ele nunca voltasse ao Brasil. Agora vejo que ele não atendeu.
Gabriel, pálido, segurava as mãos da mãe penalizado. Ela se arriscada para salvar a vida de Marcelo.
- Mãe, ele tem o direito de reinvindicar sua herança. Vocês lhe roubaram tudo, o amor da família, os bens, até o país. Tenho a impressão de que ninguém vai poder impedir agora que a verdade apareça. Vocês não vão poder fazer nada! E Maria? O que houve com ela? Tomou conhecimento do que aconteceu?
- Não. José Luís, a pretexto de poupá-la, internou-a em um hospital psiquiátrico onde fez sonoterapia por um mês. Saiu de lá arrasada, visitou o túmulo em Petrópolis cuja a lápide tem o nome de seu filho e sumiu.
- Você sabe onde se encontra?
- Não. Ela desapareceu. Nunca mais soube dela.
Maria Júlia segurou as mãos do filho apertando-as com força e olhando-o emocionada.
- Está decepcionado comigo,meu filho?
- Não, mãe. Você foi mais vítima do que culpada. Só não entendo por que se submete a ele . Conheço seu coração nobre, sua postura ética, seus sentimentos bons. Que segredo é esse que a acovarda desse jeito, fazendo-a suportar uma situação tão contra seus princípios?
- Sinto muito, meu filho, mas não estou ainda preparada para falar sobre isso.
- Só quero ajudar. Estou e sempre estarei do seu lado. Eu a amo incondicionalmente. Por que não confia em mim?
- Um dia, talvez. Agora não posso falar. Estou esgotada.
- Estou pensando... uma desconfiança começou a me incomodar.
- O que foi?
- A morte de Marcelo não era suficiente para fazer papai receber a herança. Tio Antônio era vivo e havia seu filho e nora, que eram herdeiros diretos. O que eles tinham em mente quando fizeram isso? Será...
Maria Júlia sobressaltou-se tapando a boca de Gabriel com a mão:
- Não diga isso. Essa suspeita tem me.incomodado a vida inteira. Tenho pesadelos com ela, não quero pensar que possa ser verdade.
- Claro, mãe. Quando eles planejaram essa fraude, pensaram também em eliminar os outros herdeiros.
- Não, meu filho. Seria demais!
- Seria muita coincidência pensar que todos os três morreram em menos de dois anos.
- José Luís não seria capaz disso. É médico!
- Um médico tem muitos recursos para acabar com quem quiser. Ele era médico de tio Antônio.
Maria Júlia mergulhou a cabeça nas mãos arrasada. Gabriel continuou pensando alto:
- Claro. Teria sido fácil acabar com a saúde de alguém que já estava deprimido. Maria Júlia levantou a cabeça:
- Mas e os outros dois? Eles morrer em um acidente de barco na Itália. Seu pai estava comigo em Paris e nunca se ausentou.
- E Bóris, onde estava?
- Ele viajou conosco para Europa.
- Esteve o tempo todo com vocês?
- Não. Ele tinha alguns amigos russos e foi passar algum tempo com eles.
- Você consegue se recordar se ele estava fora quando aconteceu esse acidente?
- Deixe-me ver... sim, estava. Você acha que ele...
- Pode perfeitamente ter se ausentado para " providenciar". Que tipo de acidente foi?
- O motor do barco explodiu e incentiou-se. Os policiais disseram que foi um curtocircuto na parte elétrica. Gabriel segurou as mãos da mãe dizendo pálido:
- Mãe, essa situação é muito suspeita. Se eles cometeram todos esses crimes, temos que descobrir.
- Isso, não. Se isso for verdade, o que será de nós? Podemos ser arrolados como cúmplice. Eu sabia que Marcelo estava vivo e fiquei calada. Posso ser presa por causa disso. Eu não quero ser presa. Prefiro morrer a passar essa vergonha. Seu nome e o de sua irmã estariam para sempre na lama. A sociedade não perdoa.
- Mãe, não se importa o que a sociedade pensa. Minha consciência não consegue calar diante dessa suspeita.
- Prometa que não vai fazer nada. Vai esquecer isso e pronto.
- Não posso, mãe.
- É apenas uma suspeita. Não podemos levar isso adiante.
- Uma suspeita muito justificada. Tanto que se encaixa perfeitamente aos fatos. Entretanto concordo que antes de qualquer coisa temos que descobrir a verdade.
- Isso é impossível. Bóris é perigoso. Se desconfiar, sua vida corre perigo.
- O que não podemos é ficar à mercê de um assassino que a qualquer momento pode querer nos matar para salvar a pele.
- Meu filho, nunca deveria ter contado.
- Ao contrário, mãe. Agora estarei de olho neles para defendê-la.
- Prometa que não fará nada sem falar comigo antes.
- Prometo. Não pretendo fazer nada de mais. Apenas observar e investigar. Se tudo o que imagino for verdade papai também está nas mãos desse marginal. Eu já suspeitava que Bóris estivesse fazendo alguma chantagem. Nunca vi nenhum mordomo ter tantas regalias e fazer o que ele faz. Praticamente manda em tudo e em todas. Nem você faz o que quer dentro de sua própria casa.
- Se eu pudesse, já teria despedido. Mas seu pai não quer nem ouvir falar nisso.
- Claro. Tem medo de que ele dê com a língua nos dentes.
- Pensando nisso sinto o coração apertado..meu Deus, aonde nós levará essa desgraça?
- Não será compactuando com os erros que eles fizeram que vamos nos livrar. Penso até que está na hora de dar um basta e ir para o lado oposto.
- Não está pensando em fazer isso!!
- Não, mãe. O que eu quero é ir para o lado do que é certo e justo. Oprime-me ficar conivente com maldade deles.
- A min também.
- Nesse caso, vou investigar. Se tudo que suspeitamos for verdade, tomarei providências.
- O que pensa fazer?
- Ir viver minha vida longe daqui. Eu, você e Laura poderíamos ir morar em outra cidade e sair da vida dos dois.
- E nós separarmos de seu pai? Ele jamais vai concordar.
- Não faz mal. Iremos assim mesmo. Ele não vai poder fazer nada.
- Será um escândalo. Não podemos fazer isso. Toda a sociedade vai falar.
- A nossa felicidade vale mais do que o falatório dos desocupados. Mãe, se eles praticaram esses crimes, como poderemos viver lá com esse peso no coração? Não me sinto capaz. Você tem sofrido ao lado dele durante todos esses anos. Não se queixa, mas eu sei. Porque quer continuar um relacionamento que só lhe causa dor?
Maria Júlia apertou as mãos com força. Havia infinita tristeza em sua voz quando disse:
- Se eu pudesse, há muito teria feito isso. Infelizmente, não dá para fazer. Gabriel ia retrucar, mas ela continuou:
- Você nunca gostou de seu pai, não é? Desde pequeno não o suporta. Ele tem se esforçado em conquistar sua estima, mas nunca conseguiu. Porquê?
- Não sei explicar. A proximidade dele me causa sensação desagradável. Nós não temos nenhuma afinidade. - Ele fez ligeira pausa, abraçou a mãe com carinho e prosseguiu:
- Já com você é diferente. Gosto de ficar a seu lado, sentir seu perfume, beijar seu rosto, abraçá-la. Compreendemo-nos Maria Júlia apertou o filho nos braços com amor:
- você é meu tesouro.npor mim, você nunca tomaria conhecimento dessas coisas.
- Não sou ingênuo. Cresci, mãe. Sou um homem, quero estar a par de tudo, defendê-la como merece, cuidar de sua felicidade. Seja o que for que acontecer, nunca a deixarei. Os dois permaneceram silenciosos, abracados, sentindo-se bem dentro do afeto que os unia.











































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