Talvez hoje não seja meu dia.
Com certeza não é meu dia.
O relógio não despertou, o celular não carregou, o leite acabou e o café derramou sobre minha última camisa social limpa e descente.
Meu cabelo não cooperou comigo também, está armado, despenteado, sujo, e meu pequeno gatinho comeu minha touca da qual eu poderia o esconder, logo antes de fugir pela primeira janela do prédio que avistou e não voltar mais.
Perdi o horário do ônibus, optei pelo metrô mas estava lotado e com certeza não conseguiria entrar em nenhum vagão. Liguei para o taxi, o taxista errou o caminho milhares de vezes até finalmente me deixar a duas quadras da empresa.
Um cachorro bravo correu atrás de mim e rasgou minha calça social, agarrando-me até a porta do trabalho.
"ATRASADO" meu chefe berrava sem parar. Oh Deus, me dê forças, eu pensava enquanto ia para minha sala juntar minhas coisas.
Demitido, o olhar do chefe me avisava assim como sua voz grossa que se tornava irritante quando o mesmo gritava.
Fui chutado pra fora, enclausurado com a pequena caixa cheia de documentos meus, porta lápis e clips que eu nunca mais usaria e, mesmo em tal situação, um garoto passou com uma arma de brinquedo apontando para a minha cabeça, tendo a capacidade de roubar quem já não tinha nada.
Realmente, aquele não era o meu dia.
Andei sem rumo pela calçada, o céu escurecendo ameaçando uma chuva forte que viria. Me sentei na escadinha de um pequeno café, olhando para os lados e pensando em como resolveria minha vida, demitido sem ter passado um mês na empresa, divorciado, sem dinheiro, sem paixões. Estava falido no auge de meus 39 anos.
E então, apenas para melhorar a melancolia do fatídico dia em que nada dá certo, uma garoa fina começou a cair, logo se transformando em uma tempestade sem escrúpulos de tão forte.
Qualquer que fosse a força que regia o mundo, ela me odiava, eu tinha certeza disso. Talvez fosse por eu fugir das missas de domingo, ou talvez por ter mentido sobre ir na catequese, não sei ao certo, mas ela me odiava.
Com as roupas já encharcadas, o cabelo ridiculamente duro mesmo que molhado, os olhos sem brilho e as lágrimas quase caindo, eu me levantei e andei até meu apartamento, subi pelo elevador vendo uma poça se formar em minha volta. A porta se abriu lentamente em meu andar e corri até meu pequeno apartamento que basicamente constituía uma sala que fazia divisão com a pequena cozinha, um banheiro e um quarto que cabia apenas minha cama de casal e o pequeno guarda-roupa.
Peguei uma roupa quente e entrei no chuveiro abrindo-o com cautela para conseguir o ajustar para a água quente. Minha mente enclausurada já imaginava o chuveiro queimando no meio do banho ou até mesmo a luz acabar, porém, incrivelmente isso acabou por não acontecer. Após me secar e me vestir, me joguei no sofá de dois lugares olhando para a tv de tubo que pairava na estante de madeira velha. O rádio pequeno chiava em cima da cômoda e o pequeno celular Nokia apitava ao meu lado. Peguei o mesmo abrindo diretamente no contato de minha ex-esposa. Meu interior clamava pela mulher mais uma última vez, mas a certeza de mais uma negação vinda dela me assustava.
"Preciso de você uma ultima vez" digitei como se fosse mandar a ela e fitei o celular esperando algo que não aconteceria, uma mensagem, uma resposta, e como de costume, nada fiz.
Coloquei as mãos no bolso, deixando o celular no braço do sofá. Senti um pequeno saquinho plástico tocar meus dedos e recordações de minha juventude, de todos os mesmos saquinhos das quais eu já havia tido em mãos, de todo o pó branco da qual eu ja havia ingerido até o último segundo.
Apertei o pequeno saco entre meus dedos o tirando do bolso e o abrindo e pegando aquele cartão amassado da empresa guardado em meu bolso, despejei o pozinho branco na mesinha de centro e o inalei como se não houvesse amanhã.
A chuva caindo contra os vidros rachados e o chiado do rádio ao fundo eram a trilha sonora perfeita para aquela cena totalmente dramática da qual eu me encontrava.
Meu coração, de uma hora para a outra, fora tomado por uma dor maior do que qualquer outra. A falta de ar já se fazia presente e uma angustia dominava meu corpo que era tomado por espasmos fortes.
Minha boca salivava, mas estava seca, a visão turva, o corpo dormente.
No rádio, alguém dizia palavras desconexas que talvez eu precisasse ouvir, mas a vida ja se esvaía de meu ser rapidamente.
E então, naquela tarde melancólica eu morri, ao som de uma última mensagem chiada que chegava diretamente para meu corpo sem vida."Ninguém é de ferro, somos programados para cair".
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Compilado de Aleatoriedades
Short StoryDiferente do meu habitual, deixarei aqui alguns contos e Oneshots que escrevi durante os anos, para que vocês possam ler e aproveitar um pouco das minhas aventuras literárias nada convencionais, assim como meus devaneios literários que tenho guardad...