— Era três horas da manhã quando ressoou o grande e pesado sino de bronze da torre mais alta do convento. Abri os olhos rapidamente e levantei apressada calçando meu chinelos de tiras, cobri meus cabelos com o véu branco da mesma cor da minha vestimenta. Por ser noviça eu só podia usar branco, e não o preto das freiras. Peguei meu terço de madeira na cabeceira da cama, me ajoelhei diante da janela pequena que dava para além do muro que circundava a antiga construção isolada da cidade.
Caía uma intensa tempestade. Estávamos localizadas no alto da colina ao leste da cidade de Cosmopolita, cercadas por um mar de lírios brancos que nos separava da civilização. Eu e mais mil e oitocentas mulheres, entre freiras, noviças e a madre superior, vivíamos a maior parte do tempo sem contato algum com o mundo lá fora. Exceto nas grandes festividades religiosas, onde três vezes no ano saíamos para vender pães doces para a população, próximo da capela no centro da cidade. O sino badalou mais uma vez, potente. Era hora da oração. Às três horas da manhã os véus do submundo estão abertos e o demônio anda à solta na terra, por isso precisamos fazer diariamente nossas preces no mesmo horário. — Expliquei e ele me olhou atentamente. — Após rezar por mais de uma hora voltamos para cama e dormimos. Pela manhã eu segui a minha lista de tarefas. Levantei para a minha primeira aula sobre doutrinas e dogmas com a madre superior. Ela estava especialmente mais inquisidora naquele dia. Tanto que após tomar a lição ela liberou as outras meninas e me chamou.
— Dezoito anos, Angeline. É hora de decidir o seu destino de uma vez por todas. — Ela reclamou impaciente e eu pisquei hesitante.
— Preciso pensar mais um pouco, madre.
— Não tem o que pensar. Está aqui há anos suficientes para ter se decidido. Padre Gregory virá mais tarde para a abadia e você irá conversar com ele. — Ordenou e eu suspirei abaixando a cabeça.
— Então você não queria ser freira? — Anthony perguntou e eu neguei com a cabeça.
— Nunca esteve nos meus planos. Só fui para o convento porque minha mãe ofereceu minha vida em servidão à Deus para salvar o casamento dela com meu pai. — Confessei baixo. — Eu na verdade sempre quis viajar o mundo. Conhecer os continentes, as pessoas, a vida. Porém desde os nove anos me tornei refém da promessa da minha mãe.
— Entendo.
— Bom, depois segui com Marry Ann para o pátio, era o nosso dia de lavá-lo. Pegamos as vassouras e jogamos sabão no chão, com pouca água fizemos espuma, esfregando tudo com muita força. A madre dizia que sujeira era lugar de pecado. E quem vivia no meio do pecado não era digno de Deus. — Expliquei recordando do dia. — Em seguida enxaguamos tudo e seguimos para a cozinha onde ajudamos a preparar o almoço, depois sentamos, nos servimos e oramos em agradecimento pelo alimento.
— Angeline! — Marry Ann chamou de boca cheia e tapou os lábios com receio de ser repreendida. Terminou calmamente de mastigar e me esticou um pedaço de papel. — Te trouxe um presente. Feliz aniversário!
Sorri para ela abrindo rapidamente o bilhete. Li o fragmento do salmo 91: "Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos."
— Amém! Obrigada! — Agradeci dobrando novamente o papel e ela assentiu ficando séria.
— Vai fazer seus votos hoje? — Perguntou curiosa e eu suspirei. Olhei em volta, nós praticamente cochichávamos. A maioria das freiras faziam voto de silêncio.
— Eu ainda não sei. — Murmurei sincera. — Ainda penso em ir embora daqui um dia.
— A madre jamais permitirá isso. Se ela sequer sonhar com esse seu desejo de partir, te dará uma penitência de no mínimo um dia todo de joelho no milho. — Minha amiga comentou nervosa, atraindo atenção.
— Shiu! — A freira Ordália exigiu silêncio e nós duas ajeitamos a postura, ficando eretas sobre o banco de concreto.
— Trocamos olhares significativos. Marry Ann era a única que sabia do meu descontentamento em viver em servidão. Não que eu odiasse a vida de devoção, eu fazia minhas obrigações de todo coração, porém sentia que eu poderia continuar amando a Deus fora dos muros do convento. — Expliquei para Anthony e Jimmy me observou atento. — Após o término do almoço ajudamos a lavar as vasilhas. Então segui para os portões de ferro carregando meu cesto como costumava fazer todos os dias. Recebi autorização para sair até o campo de lírios. A brisa fria varreu as folhas caídas pelo chão. Colhi as flores mais lindas e perfeitas para enfeitar o altar e então foi quando o vi. Em um primeiro momento achei se tratar de um animal ferido na relva, mas ao me aproximar a cesta de flores caiu da minha mão. Era um homem. O rosto dele estava ensanguentado, os lábios entreabertos e a posição do corpo sugeria que estava morto. A jaqueta negra de couro estava impregnada de sangue e lama. Um grito aterrorizado escapou da minha garganta. Corri até ele e me abaixei procurando alguma pulsação, foi quando inesperadamente ele agarrou forte a minha mão, me assustando.
— Me ajuda, por favor! — Pediu com a voz fraca.
— O que aconteceu com você? — Murmurei e ele não respondeu. Estava quente e trêmulo. Rapidamente chamei a guardiã do portão e mesmo relutante em aceitar me ajudar, me deixou passar com ele apoiado no meu corpo.
— A madre superior não vai gostar disso. — Me avisou enquanto eu o arrastava para dentro. Corri até a bica e com uma pequena tigela peguei água fresca. Voltei até ele molhando cuidadosamente seus lábios. — Ele pode ser um criminoso. — A freira guardiã disse e eu o olhei intrigada. Ele estava com muita sede, bebia água com voracidade.
— Quem deixou esse homem entrar aqui? — Ouvi a madre superior vociferar furiosa e eu me encolhi instantaneamente. Me virei culpada e ela estreitou o olhar para mim.
— Ele precisa de ajuda, madre... — Tentei dizer e um vinco se formou na testa dela.
— Ele não pode ficar aqui. — Decretou no mesmo instante em que o pobre homem ficara inconsciente nos meus braços.
Eu não iria desistir de ajudá-lo. Ela querendo ou não.
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O Caso Harley
Short StoryAngeline Morgan foi entregue para o convento como pagamento de uma promessa feita pela sua mãe. Obrigada a ficar enclausurada dentro dos muros altos, vivendo uma disciplina rígida, cada vez mais ela deseja conhecer o mundo e abandonar a vida de reti...