— Forasteiro! — Chamei abrindo a porta empurrando devagar com o pé, segurando o prato com seu almoço. Foi quando notei que ele estava dormindo. Era tão lindo suspirando tranquilo com os olhos fechados, os cílios longos, os lábios grossos unidos.
— Não encare demais o espírito ruim, ele pode te olhar de volta! — A madre superior disse me assustando. Lançou um olhar para a cama e depois para mim. Saiu logo em seguida em silêncio.
— Não tem nada de espírito ruim. Parece mais um anjo. — Murmurei entrando no quarto e sentando ao lado da cama. Ele abriu os olhos lentamente me encarando com atenção.
— Eu achei que você havia me esquecido. Não te vi há dois dias. — Reclamou e eu mexi com a colher no prato de sopa de legumes.
— A madre me designou para outras tarefas.
— Ela está te punindo por não decidir sobre os votos?
— Não, claro que não. Trabalho não é punição. É uma chance de pensar melhor consigo mesmo. — Expliquei e ele me olhou descrente. Notei um filete de sangue deslizar na sua fronte, levantei deixando o prato sobre a cômoda, peguei a caixa que o padre havia esquecido por ali. — Vou trocar seus curativos. — Avisei tirando o esparadrapo. Com a gaze e álcool limpei o ferimento e notei o olhar dele fixo no meu. — O que foi?
— Você que parece um anjo. — Respondeu e eu pisquei confusa. — Eu ouvi o que você disse quando achou que eu estava dormindo. — Contou e eu abaixei a cabeça sem jeito. Terminei o novo curativo e guardei a caixa.
— Eu trouxe seu almoço. — Mudei de assunto nervosa.
— Estou sem fome.
— Você precisa se alimentar. — Insisti pegando novamente o prato, ergui a colher o oferecendo. — Anda, abre a boca!
— Eu não sou uma boa pessoa, Angeline.
— Por que não?
— Eu... Não fiz coisas boas. — Confessou timidamente.
— Para tudo há perdão.
— Talvez nem tudo. — Rebateu e eu o encarei confusa. Ofereci novamente a colher e ele aceitou, tomando a sopa.
— Deus não desampara ninguém. Ele não desperdiça nada. — Expliquei e ele ameaçou dizer algo. — Se você se arrepender verdadeiramente, com orações provindas do fundo do coração, Ele irá te ouvir.
— Eu não sei orar.
— Posso te ensinar. — Sugeri e ele franziu a testa.
— Acho que não há salvação para mim. — Murmurou sério.
— Há salvação para todos aqueles que procuram por ela. — Rebati e ele inesperadamente tocou suavemente no meu rosto, me assustando. Me afastei com o coração palpitante no peito.
— Desculpa! — Pediu parecendo sincero, porém mantive distância. Meu coração ainda estava se recuperando de sua ação impensada. Minha pele ainda possuía um rastro de eletricidade causada pelo seu toque. — Eu nunca vi um coração tão puro como o seu. — Permaneci em silêncio. Terminei de alimentá-lo tendo que receber seu olhar atento. Ao tentar levantar da cama ele fechou a mão no meu pulso e eu o olhei intrigada. — Fala comigo!
— Me solta, por favor!
— Desculpa! — Pediu me soltando. — Pode me ensinar a orar agora?
— Achei que não quisesse aprender.
— Nunca quis, na verdade. Mas se você garante que é algo que possa aliviar o meu lado com Deus. Então eu prometo aprender a rezar se ele prometer...
— Não se barganha com Deus. Você deve fazer as coisas de coração sem esperar absolutamente nada em troca. — O interrompi e ele franziu a testa.
— Mas a oração não é feita para pedir coisas?
— Pedir por perdão é se lavar por inteiro da sujeira do passado e se deixar limpo para o agora. — Concluí e levantei o olhando. — Basta conversar com Deus como um pai ou como um grande amigo. Ele ouve até as palavras sussurradas que você hesita dizer. Diga à Ele o que sente. Se despeça daquilo que manchou sua alma por algum momento. Sempre há um recomeço. As portas sempre estão abertas para o filho pródigo.
— Filho pródigo?
— Sim. Aquele filho que abandonou a família por alguma razão, mas depois se arrependeu. Você ainda pode voltar para casa.
— Esse é o problema, Angeline, eu nunca mais vou poder voltar pra casa. — Murmurou com o olhar distante. — Minha vida agora é viajar pelo mundo. — Contou e eu o olhei pensativa. Queria eu ter sua coragem em desbravar novos horizontes. — Quem sabe um dia não te encontro lá fora?
— É. Quem sabe?
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O Caso Harley
Short StoryAngeline Morgan foi entregue para o convento como pagamento de uma promessa feita pela sua mãe. Obrigada a ficar enclausurada dentro dos muros altos, vivendo uma disciplina rígida, cada vez mais ela deseja conhecer o mundo e abandonar a vida de reti...