Capítulo IV

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— Forasteiro! — Chamei abrindo a porta empurrando devagar com o pé, segurando o prato com seu almoço. Foi quando notei que ele estava dormindo. Era tão lindo suspirando tranquilo com os olhos fechados, os cílios longos, os lábios grossos unidos.

— Não encare demais o espírito ruim, ele pode te olhar de volta! — A madre superior disse me assustando. Lançou um olhar para a cama e depois para mim. Saiu logo em seguida em silêncio.

— Não tem nada de espírito ruim. Parece mais um anjo. — Murmurei entrando no quarto e sentando ao lado da cama. Ele abriu os olhos lentamente me encarando com atenção.

— Eu achei que você havia me esquecido. Não te vi há dois dias. — Reclamou e eu mexi com a colher no prato de sopa de legumes.

— A madre me designou para outras tarefas.

— Ela está te punindo por não decidir sobre os votos? 

— Não, claro que não. Trabalho não é punição. É uma chance de pensar melhor consigo mesmo. — Expliquei e ele me olhou descrente. Notei um filete de sangue deslizar na sua fronte, levantei deixando o prato sobre a cômoda, peguei a caixa que o padre havia esquecido por ali. — Vou trocar seus curativos. — Avisei tirando o esparadrapo. Com a gaze e álcool limpei o ferimento e notei o olhar dele fixo no meu. — O que foi?

— Você que parece um anjo. — Respondeu e eu pisquei confusa. — Eu ouvi o que você disse quando achou que eu estava dormindo. — Contou e eu abaixei a cabeça sem jeito. Terminei o novo curativo e guardei a caixa.

— Eu trouxe seu almoço. — Mudei de assunto nervosa.

— Estou sem fome. 

— Você precisa se alimentar. — Insisti pegando novamente o prato, ergui a colher o oferecendo. — Anda, abre a boca! 

— Eu não sou uma boa pessoa, Angeline.

— Por que não?

— Eu... Não fiz coisas boas. — Confessou timidamente.

— Para tudo há perdão.

— Talvez nem tudo. — Rebateu e eu o encarei confusa. Ofereci novamente a colher e ele aceitou, tomando a sopa.

— Deus não desampara ninguém. Ele não desperdiça nada. — Expliquei e ele ameaçou dizer algo. — Se você se arrepender verdadeiramente, com orações provindas do fundo do coração, Ele irá te ouvir.

— Eu não sei orar.

— Posso te ensinar. — Sugeri e ele franziu a testa.

— Acho que não há salvação para mim. — Murmurou sério.

— Há salvação para todos aqueles que procuram por ela. — Rebati e ele inesperadamente tocou suavemente no meu rosto, me assustando. Me afastei com o coração palpitante no peito.

— Desculpa! — Pediu parecendo sincero, porém mantive distância. Meu coração ainda estava se recuperando de sua ação impensada. Minha pele ainda possuía um rastro de eletricidade causada pelo seu toque. — Eu nunca vi um coração tão puro como o seu. — Permaneci em silêncio. Terminei de alimentá-lo tendo que receber seu olhar atento. Ao tentar levantar da cama ele fechou a mão no meu pulso e eu o olhei intrigada. — Fala comigo!

— Me solta, por favor!

— Desculpa! — Pediu me soltando. — Pode me ensinar a orar agora?

— Achei que não quisesse aprender.

— Nunca quis, na verdade. Mas se você garante que é algo que possa aliviar o meu lado com Deus. Então eu prometo aprender a rezar se ele prometer...

— Não se barganha com Deus. Você deve fazer as coisas de coração sem esperar absolutamente nada em troca. — O interrompi e ele franziu a testa.

— Mas a oração não é feita para pedir coisas?

— Pedir por perdão é se lavar por inteiro da sujeira do passado e se deixar limpo para o agora. — Concluí e levantei o olhando. — Basta conversar com Deus como um pai ou como um grande amigo. Ele ouve até as palavras sussurradas que você hesita dizer. Diga à Ele o que sente. Se despeça daquilo que manchou sua alma por algum momento. Sempre há um recomeço. As portas sempre estão abertas para o filho pródigo.

— Filho pródigo?

— Sim. Aquele filho que abandonou a família por alguma razão, mas depois se arrependeu​. Você ainda pode voltar para casa.

— Esse é o problema, Angeline, eu nunca mais vou poder voltar pra casa. — Murmurou com o olhar distante. — Minha vida agora é viajar pelo mundo. — Contou e eu o olhei pensativa. Queria eu ter sua coragem em desbravar novos horizontes. — Quem sabe um dia não te encontro lá fora?

— É. Quem sabe?

O Caso HarleyOnde histórias criam vida. Descubra agora