Quimicamente perdida

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Era nove de julho. Segunda semana de aula após as férias e eu já sentia a reprovação cada vez mais certa. Apoiei meus cotovelos sobre a bancada e me curvei para frente na tentativa de ver melhor o quadro. Não que eu estivesse com problema de visão, pelo contrário, podia enxergar claramente cada letra daquela equação química. O problema mesmo era entender como raios fazia aquilo. Olhei novamente para a minha apostila em branco e suspirei pesadamente. Na minha mente passava apenas todas as idéias de uma nova história que eu pretendia escrever. Cada cena calculada, suspiros, olhares, sentimentos na sua forma mais singela e pura. Eu queria exaltar todo amor que eu tinha guardado dentro de mim em forma de palavras, em histórias que ficariam guardadas em corações que como o meu não desistiam nunca de sonhar com algo maior que a vida.

Como eu segui para medicina quando meu coração clamava por letras? Não sei explicar. No final das contas sempre foi a vida quem me levou e nunca o contrário. Talvez a sensação de poder dar orgulho para os meus pais tivesse influenciado em cinquenta por cento na minha escolha. E talvez os outros cinquenta por cento estivessem à cargo de que eu jamais poderia viver de livros. Não tinha talento suficiente para isso, era apenas um hobby. Era simplesmente meu coração querendo viver outras histórias, outras vidas. Não que a minha vida não fosse suficiente, o problema era que também não era interessante. Eu era talvez a maior mocinha clichê do mundo. Provavelmente todas as histórias foram baseadas em mim. Minha personalidade incrivelmente atrapalhada e sonhadora, sempre à espera de algo maior confirma isso. O fato de ser extremamente caseira, nunca ter tido um relacionamento sério e muito menos expectativas de que isso ocorra também contribuem muito para esse fato.

Aos dezenove anos eu nunca tinha feito nada que a maioria dos jovens da minha idade faziam. As vezes eu olhava para o Instagram, via meus amigos curtindo baladas, shows e viagens incríveis e me sentia uma idosa de cento e sessenta anos por puxar meu cobertor de florzinhas e me cobrir até o queixo. Só de imaginar um lugar lotado de gente, sem lugar para sentar, com música alta e caras tentando a todo custo chamar a atenção me dava um desânimo tremendo. Primeiro porque eu sempre me sentia deslocada em multidões. Não sabia para onde olhar, como agir e o pensamento mais recorrente era sempre: o que estou fazendo aqui?

Segundo que aquelas pessoas que dizem que vai estar ao seu lado sempre somem. Sempre acham pessoas mais interessantes, na verdade, bocas. Eu perdi a conta de quantas das pouquíssimas vezes em que saí com amigos fui deixada para escanteio enquanto eles ficavam com outras pessoas. É claro que eu poderia ficar com alguém também, certo?

Não. Errado. Absolutamente errado. Erradíssimo.

Eu não era o tipo de ficar com alguém. Eu normalmente ativava a minha capa de invisibilidade, me encolhia em um canto qualquer com meu refrigerante e esperava uma hora razoável para fugir, digo, ir embora.

Não que eu não ficasse interessada, afinal, sempre tinha um cara que se destacava dos outros, que tinha aquele sorriso bonito, aquele olhar sedutor, aquele perfume amadeirado... Sempre gostei muito da paquera em si, mas nunca passava disso. Talvez eu estivesse esperando o meu mocinho de livro aparecer. E o pobre estivesse soterrado debaixo de cobertores assistindo Supernatural em algum lugar.

— Ju, você entendeu alguma coisa? — Senti Leo cutucar meu ombro e o olhei com desesperança, apenas negando com a cabeça. — Vamos tentar monitoria para nos ajudar.

— Eu preciso é de um milagre. — Murmurei olhando para os cálculos inacabados e suspirei me sentindo mais burra que o normal.

Não, não se engane com universitários. O antigo show do milhão do Silvio Santos está aí para provar que não somos gênios nem nada do tipo. Somos apenas estudantes desesperados tentando formar para sermos profissionais desesperados. As vezes batia um frio na barriga, um medo extremo de me formar e esquecer tudo que eu estudei. Ir trabalhar em um hospital e dar uma crise existencial bem na frente do paciente.

Eu até podia imaginar uma cena trágica: o paciente chega no meu consultório reclamando de dor aguda no peito e antes de avaliar direito, tomada pelo desespero eu o classifico como um caso grave. E assim mando um paciente que tinha apenas gases para uma cirurgia cardíaca de emergência.

Céus, eu não posso ser médica!

— Vamos fazer logo a titulação e ir embora daqui. — Laura disse sem muita convicção me arrastando de volta para a realidade.

No fundo ela sabia que teria que fazer os cálculos sozinha, porque tanto eu quanto meu amigo estávamos mais perdidos que os internos na primeira temporada de Greys Anatomy.

Após ela fazer os cálculos e nos explicar pacientemente como fazê-los, titulamos a solução adicionando gota por gota de hidróxido de sódio, uma base, em um frasco contendo ácido clorídrico. Com ajuda de um indicador de ácido-base chamado fenolftaleína, assim que a cor da solução mudou de incolor para rosa paramos o processo, pois isso indica que a substância reagiu completamente.

— Ju, você faz os cálculos finais. O relatório essa semana é todo seu. — Laura disse já tirando o jaleco e eu concordei com a cabeça.

Provavelmente era mais fácil descobrir a concentração inicial de ácido clorídrico na solução do que descobrir o que eu estava fazendo da minha vida.

Era estranho ter que decidir tão cedo o que fazer profissionalmente, afinal, a gente muda tanto com o passar das horas, do dia, dos anos. Eu sequer era a mesma pessoa da hora em que acordei. Eu era muitas e nenhuma delas tinha certeza do que esperar do destino.

— Sabe o que tem hoje, não é? — Leo questionou com um sorriso de orelha a orelha, me tirando dos meus devaneios.

— O quê?

— Não é possível que você esqueceu da resenha na casa do Carlos! — Reclamou e eu dei de ombros.

— Ah, é isso. Eu não vou.

— Ah, você vai sim. Já faltou em todas as resenhas do semestre passado para estudar. Esse semestre vai ser diferente. Precisa relaxar um pouco. — Insistiu e eu o olhei desanimada.

— Eu não vou.

— Juliana Rodrigues, pelo amor de Deus, saia da toca! — Pediu levantando as mãos de forma teatral e eu ri.

— A toca é muito confortável. — Rebati e ele me olhou contrariado. — Olha, eu me sinto um poste nessas festas. Não bebo, não danço e não sou boa em interagir. Aliás, um poste seria melhor aproveitado que eu. — Zombei e Leo me olhou sério.

— Que tal então agir diferente hoje e deixar as pessoas entrarem em sua vida? — Aconselhou e eu suspirei.

Não era como se eu quisesse repelir as pessoas à minha volta. Eu apenas não me sentia confortável em certos ambientes. Preferia meu silêncio, meus cenários imaginários. Meu eu.

Terminei de guardar meu material na mochila e de repente senti um enjôo visceral me atingir em cheio, subir veloz pela minha garganta. Tapei a boca com as mãos e corri pelo corredor na direção do banheiro.

Droga! De novo não.

As Últimas Flores De SetembroOnde histórias criam vida. Descubra agora