Bônus

3.6K 390 66
                                    

Bernardo

Por incrível que pareça na época da escola minha maior nota era em literatura e não em biologia. Por mais que eu seja completamente apaixonado por ciências, livros e poesias sempre dividiram espaço no meu coração.

Enchi minha caneca de café, os meus olhos permaneciam vidrados na tela do notebook, lendo e relendo artigos científicos sobre tumores neuroendócrinos. Estava pesquisando tudo que havia de novo no tratamento de um câncer tão raro.

No momento em que vi Juliana de mãos dadas com o namorado, notei o quão seus lindos olhos claros estavam apreensivos, ela parecia nervosa e contida. Parecia uma menina assustada. Uma linda menina!

Mas com o passar do tempo conversamos melhor sobre seu estado de saúde e ela se revelou bastante madura, apesar da fisionomia angelical camuflar isso.

O engraçado é que depois de anos sem sequer tocar numa caneta para escrever nada, desde a revelação dela ser uma escritora, formentou em mim um desejo insano de escrever algo. Abri um bloco de notas no computador e deixei me guiar ao lembrar novamente do rosto dela.

"Numa noite fria e silenciosa ruídos alteram os sentidos dela. Talvez seja a ausência de estrelas e da lua que tenha feito a angústia lhe consumir. Menina, olhe para cima! Está vendo essas nuvens carregadas? Entretanto por cima delas há um céu iluminado por estrelas. Acima de todo medo existe a força. E é isso que brilha em ti. Não se deixe cair em dor. Por mais difícil que seja sua situação, lembre-se sempre que tu és um céu inteiro a ser admirado."

Terminei de digitar e encarei a tela abismado com meu atrevimento. Eu não podia escrever nada para ela. Era minha paciente e ainda era comprometida. Embora nenhum desses fatos pudessem tirar de mim a vontade de consolar seus medos.

Tomei mais do meu café e balancei a cabeça me repreendendo mentalmente. Voltei a pesquisar sobre mais artigos. Passei a madrugada toda lendo até a exaustão, até meus olhos arderem e todos os meus músculos ficarem tensionados. Foi então que levantei um pouco para dar uma pausa. Segui até a sacada do apartamento e observei a cidade à luz dourada da lua de sangue. Já passava das quatro horas da manhã e eu ainda não tinha dormido. Na verdade eu me acostumei a dormir pouco e trabalhar muito. Fato esse que todas as minhas ex namoradas odiavam vigorosamente.

Aninha, minha prima e também médica, costumava dizer que eu deveria reaprender a viver, mas eu vivia muito bem lutando o máximo que eu podia para ajudar meus pacientes a vencer o câncer. E Juliana agora fazia parte do meu time de vencedores. O problema era que o caso dela era extremamente grave e delicado. Porém eu não desistiria de tentar ajudá-la.

Céus! Por que ela mexeu tanto comigo? Talvez seja pelo fato do câncer dela não nos dar nenhuma esperança real de cura. Embora eu não me deixasse abater por estatísticas. Era difícil me conformar que uma menina tão bonita pudesse morrer para uma doença tão estúpida. Não, eu não deixaria isso acontecer. Era teimoso o suficiente para duelar com a morte e não deixar ela ceifar a vida daqueles lindos olhos, nem apagar aquele sorriso inocente que me causou um turbilhão de inspiração que há anos eu não tinha. Ergui as mãos no alto da cabeça e me espreguicei lentamente, respirando fundo e olhando para o horizonte onde em pouco tempo o sol iria nascer.

Voltei para frente do notebook. Abri mais um artigo e alcancei a garrafa. Precisava de mais café para estudar mais um pouco. Eu iria ajudar aquela menina custe o que custar.

As Últimas Flores De SetembroOnde histórias criam vida. Descubra agora