Peixe fora do aquário

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Vomitei todo o meu almoço na privada. Apoiei as mãos na borda dela e respirei fundo tentando me recompor. Era a terceira vez que isso acontecia em uma semana. Como estudante de medicina eu sabia que tinha algo de extremamente errado. Só não sabia o quê.

Quando finalmente me senti segura para me afastar da privada fechei a tampa e dei descarga. Segui para a pia e lavei minha boca e rosto com bastante água corrente. Estava quase entrando debaixo da torneira. Peguei o papel toalha e sequei a minha boca.

Leo e Arthur me esperavam na porta do banheiro. Os dois me olharam intrigados quando me aproximei deles.

— Está tudo bem? — Leo questionou e eu assenti.

— Algum de vocês tem chiclete? Estou com um gosto horrível na boca.

— Tenho Trident de melancia. — Arthur contou vasculhando o bolso. Em seguida me estendeu a cartela que aceitei de bom grado. — Escuta, você está grávida?

Leo explodiu uma gargalhada com a pergunta do namorado e eu encolhi os ombros, timidamente.

— Não, não estou grávida. — Respondi baixo e Leo continuou rindo. — Sabe, no corpo de uma mulher não tem só um útero dentro. — Rebati levemente irritada.

— As únicas certezas que tenho na minha vida é que não vou passar em química analítica esse semestre e que Juliana não está grávida. — Ele enfatizou e Arthur me olhou pensativo.

— Ah... A história da virgindade. Esqueci. — Ele disse me deixando ainda mais sem jeito e eu mastiguei o chiclete com mais força do que o necessário. — O que pode ser então?

— Talvez intoxicação alimentar. — Sugeri entregando a cartela de Trident para ele.

— Pode ser isso, mas pode ser qualquer outra coisa também. — Leo comentou preocupado e eu sorri para ele.

— Não se preocupe, futuro médico! Eu estou bem. — Garanti e ele sorriu também.

Seguimos os três para a lanchonete onde reabastecemos tudo que eu perdi. Porém logo me arrependi de ter lanchado, pois senti uma dor de estômago bastante incômoda. Definitivamente não era o meu dia.

— Vai na festa com a gente, certo? — Arthur questionou e eu ergui as mãos me rendendo.

— OK, eu vou nessa festa só para vocês pararem de perguntar. — Respondi e os dois comemoraram batendo as mãos na mesa.

— Aleluia! Agora uma alma foi salva do purgatório com tamanho milagre. — Leo zombou.

Mesmo não estando bem decidi aceitar o convite. Afinal talvez tudo não passasse de uma crise de estresse. Meus amigos estavam certos em relação à uma coisa: eu necessitava relaxar.

***

— Estou pronta. — Anunciei e os dois me olharam em silêncio. Vestida com uma camiseta, calça jeans e tênis, nem de longe parecia que eu estava indo para uma festa.

Eu pulei a fase do vestido, salto alto e maquiagem. Sempre optei por conforto, e por não me sentir confortável usando nada disso meu armário era o mais básico possível.

— Está linda! — Os dois disseram juntos e eu sorri em agradecimento, nunca soube reagir à elogios.

Segui com os meninos para fora do apartamento que dividíamos. Arthur pegou o carro dele e eu deitei no banco de trás. Estava me sentindo mais desanimada que o normal.

Leo colocou músicas animadas para tocar e nem Sia estava salvando o meu humor. Toquei minha barriga ainda sentindo meu estômago dolorido. Recapitulei tudo que eu havia comido, notando que não tinha nenhum alimento diferente do que eu costumava comer. A única explicação era ter ingerido algo estragado. De qualquer forma eu procuraria um médico se não melhorasse até o dia seguinte.

A casa de Carlos estava cheia. Cheia demais. A música estava muito alta, havia muitas pessoas bebendo, sorrindo e posando para fotos que iriam abastecer suas redes sociais em seguida. Casais se pegavam por toda parte com beijos no estilo aspirador turbo da polishop, numa disputa maluca de espaço com quem dançava. Arthur e Leo se juntaram aos mais animados na pista de dança improvisada entre dois grandes sofás afastados, e eu achei um cantinho na sala para fazer figuração de luxo.

As vezes eu me sentia constantemente mergulhada no mar da vida, com as ondas indo e vindo em todas as direções me deixando à mercê dos acontecimentos. Olhei novamente para meus amigos se divertindo entre beijos e sorri. Ali não era o meu lugar. Aproveitei que minha presença não fazia a menor diferença, a música alta e a pegação me camuflavam e segui para fora da casa.

O frio da noite refrescou meu corpo e eu segui caminhando lentamente pelas ruas escuras. Numa esquina me deparei com uma praça quase deserta, onde um par de balanços estava localizado próximo das árvores. Segui até eles e sentei em um, impulsionando meu corpo para frente, o fazendo movimentar devagar. Meus pés saíram do chão e meu olhar alcançou o céu.

Eu não era como as outras pessoas.
Isso é ruim?

Aumentei o impulso na gangorra e inclinei minhas costas para trás. Senti meus cabelos brincarem com o vento. Senti o sorriso tomar o meu rosto por inteiro. Lembrei da infância, da casa da minha avó, de brincar com ela me empurrando cada vez mais forte. Ela costumava me dizer que eu podia ir cada vez mais alto. Que bastava eu querer que poderia voar.

Vó, eu quero muito voar. Quero alcançar tudo que a senhora um dia disse que eu podia alcançar. Me sinto tão perdida às vezes. Me sinto sem direção como um barco à vela no mar turbulento.

Parei de balançar. Pousei meus pés na areia. Meu estômago ainda doía. O sorriso se desfez. Suspirei e segui para casa. A mente fervilhando de pensamentos para uma nova história. Eu havia criado tantas nos últimos dias. Vários rascunhos que eu provavelmente não continuaria. Tentava à todo custo escrever a história perfeita. Aquela que iria acalentar meu coração. Aquela que traria em palavras o amor que não encontrei na vida.

Segui para casa, sem sequer trocar de roupa peguei meu notebook e deitei de barriga baixo na cama. Abri meu bloco de notas e comecei a escrever sem roteiro definido. As vezes as melhores histórias eram criadas pelo acaso. A dor no estômago aumentou gradativamente. Mesmo assim continuei digitando meu prólogo:

"O estranho do fascínio literário é que por mais clichê que seja, o amor sempre estará nas entrelinhas do seus livros preferidos. Nem precisa ser o clássico romance água com açúcar. Pode ser o amor em forma de amizade, o amor pelo universo paralelo do mundo da fantasia, o amor pela aventura, o amor em desvendar caso intrigantes nos suspenses de tirar o fôlego, ou mesmo o amor pelo terror que faz vibrar o corpo. O fato é que, querendo ou não, assumindo ou não, lá sempre estará o amor, todo pomposo, se achando a última bolacha do pacote. Porque o amor sabe que por mais que o desprezem, que torçam o nariz para ele, e que jurem que ele não é importante, ainda assim, tudo que no fundo as pessoas desejam, é ter dele no mínimo um terço."

E então meu estômago revirou no mesmo instante. Senti meu corpo tentar expulsar o mal que me tomava. Não deu tempo de correr para o banheiro, vomitei ali mesmo.

E no chão do meu quarto, em cima do tapete estava algo que me fez congelar paralisada de terror.

Sangue.

As Últimas Flores De SetembroOnde histórias criam vida. Descubra agora