Era muita inocência minha achar que minha volta às aulas com um cateter na mão direita não fosse chamar atenção de ninguém. É claro que todos já sabiam do meu estado clínico por causa das minhas faltas justificadas, mas a sonda ali acoplada na minha mão tornava mais real aquilo que eu queria esquecer.
Para minha surpresa fui muito bem recepcionada, tanto pelos professores quanto pelos meus colegas. Até mesmo aqueles alunos que mal falavam comigo se tornaram atenciosos e curiosos pelo meu caso.
Servi até de pauta na aula de genética. Meu professor me usou como exemplo para deixar todos em alerta ao mínimo sinal de câncer.
— Recapitulando o que já sabemos, quando uma célula do corpo sofre um conjunto de mutações que a faz proliferar desordenadamente, ela começa a invadir locais onde não deveria estar e escapar de mecanismos de defesa do organismo que normalmente a destruiriam. Esse crescimento descontrolado pode acontecer em diferentes áreas do corpo, e então as células tumorais tomam o lugar das células saudáveis e abalam o funcionamento do órgão afetado. Quando a doença avança se espalhando pelo corpo todo é conhecido como metástase. Nesse caso o tratamento fica bem mais complexo. — Ele falou e eu engoli em seco.
Meu caso era complexo.
— Os sinais e sintomas que todos devem ficar em alerta são: Nódulos, dores, lesões que simplesmente surgem do nada, manchas, coceira, perda de peso súbita, fadiga, febre frequente, sangue nas fezes ou na urina, rouquidão e dificuldade de falar, tosse persistente e sangramento nas vias respiratórias ou pela boca, anemia entre outros. Lembrando que cada caso é um caso, ter esses sintomas não necessariamente comprova um câncer, mas é motivo suficiente para ficar em alerta. Quanto mais cedo um câncer for diagnóstico, melhor será o resultado do tratamento. — O professor concluiu me deixando pensativa.
Era só uma pena que o câncer de estômago era um mal silencioso. Ele te ataca por anos antes de causar qualquer sintoma. Quando isso acontece o estrago já está feito. Suspirei apoiando meus cotovelos sobre a mesa enquanto ouvia o professor prosseguir com a aula. Me sentia cansada como se tivesse corrido uma maratona. Passei a mão nos meus cabelos, colocando eles de lado no ombro quando notei alguns frios enroscados nos meus dedos. Aproximei a mão do meu rosto e notei os primeiros fios que começaram a cair. Meu ar pareceu faltar nos pulmões e eu escondi rapidamente a mão para que ninguém pudesse ver. Senti meus olhos arderem em lágrimas. Perder o cabelo era algo inevitável, mas muito difícil para mim.
Poxa, eu sei que sempre fui uma pessoa insatisfeita com ele. Cortei diversas vezes, pintei de azul na pré-adolescência como um ato isolado de rebeldia. Afinal, que mulher nunca havia feito uma burrada capilar? Eu fiz várias. Quando tinha sete anos cortei minha franja sozinha bem na linha da testa. Ficou parecendo cílios fora do lugar. Já fiquei dias sem hidratar e o pobre ficou parecendo palha seca. Já descolori, já pintei de preto, já fiz tranças no estilo princesa Léa. Já reclamei muito dele, já quis alisar de forma permanente. Porém em todas essas vezes era o meu cabelo. E mesmo reclamando, mesmo estragando ele, era meu. Porém agora... Eu o perderia. De repente notei o quão fútil eram minhas reclamações. Meu cabelo era lindo, era maravilhoso, era meu.
Entretanto não seria mais.
Senti as lágrimas tomarem meus olhos e levantei antes da aula acabar. Segui para o banheiro e fiquei me encarando no espelho. Passei novamente a mão na cabeça e novos fios saíram na minha mão fazendo meu coração sangrar.
Eu estava mesmo perdendo aquilo que nunca dei valor o suficiente. A vida era tão irônica.
Um soluço fugiu dos meus lábios e eu deixei as lágrimas caírem. Respirei fundo voltando a me encarar. Será que eu viveria o bastante para vê-lo crescer novamente?
***
No final do horário segui para a reitoria para falar com o reitor da universidade que era como um diretor geral. Ele me atendeu prontamente já previamente alertado sobre a minha visita.
— Vamos adotar com você o regime especial. — Ele comentou olhando meu laudo médico. — Sua presença em aulas teóricas não serão obrigatórias, podendo estudar em casa e fazer as provas em datas especiais. Mas caso veja que não conseguirá acompanhar o ritmo eu oriento fortemente a trancar o semestre e voltar apenas quando se sentir segura para isso.
— Eu sei que será bem difícil permanecer conciliando tudo, ainda mais que ainda terei que fazer radioterapia, mas as aulas são uma distração de tudo que estou vivendo. Quero tentar estudar mais um pouco.
— Como quiser, iremos te apoiar no que for preciso.
— Obrigada! — Falei pegando na mão dele e logo seu olhar foi para o meu cateter.
Me afastei rapidamente e segui para fora da sala dele. Caminhei lentamente até sair do prédio e alcançar o jardim lateral. Uma enorme fonte jorrava água cristalina nas pedras cinzas, sentei na borda ouvindo o som calmante que fazia.
Eu passava por ali diariamente e nunca tinha parado para ver de perto. Nem sequer notado o quão lindo era. Notei do outro lado do jardim um ipê enorme e desejei estar ali na primavera para vê-lo florescer. Pequenas coisas ganharam uma importância que eu jamais imaginei ter.
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As Últimas Flores De Setembro
RomanceJuliana foi apenas uma espectadora da própria vida. Sempre tentando dar orgulho aos pais e menosprezando os próprios desejos. Entretanto, a descoberta de uma grave doença a fará repensar toda a sua vida. Bernardo é um médico conhecido por deixar méd...