Bônus

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Bernardo

Durante três semanas Juliana permaneceu em coma e nós permanecemos lutando ao lado dela. Alguns tumores haviam se espalhado pela corrente sanguínea e atingido a caixa torácica. Montamos uma monitoria pesada no sistema nervoso central, afinal o encéfalo também era uma grande preocupação.

Eu simplesmente não dormia mais, apenas cochilava. Dona Matilde e senhor Renato também não, ambos oravam dia e noite pela recuperação da filha. Arthur e Leo praticamente se mudaram para o instituto, saíam apenas para ir às aulas e dormir um pouco, mas logo voltavam. Luana também estava arrasada. Pelo o que parece as duas ficaram muito amigas nos últimos tempos.

Olhei novamente para os exames forçando meus olhos a ficarem abertos. Porém estava exausto, no meu limite humano. Otávio e Letícia assumiram meus outros pacientes e eu pude concentrar toda a minha energia em minha menina. Deitei minha cabeça sobre as tomografias computadorizadas e apoiei meus braços elevando um pouco o tronco. Cochilei por algum tempo, esgotado.

Mas meu descanso não durou muito. Isso porque quarenta minutos depois eu acordei com os braços dormentes e me sentindo ainda mais cansado do que quando eu fui dormir.

Um som estridente me fez ficar automaticamente em alerta. Corri imediatamente para a UTI e senti meu coração palpitar acelerado.

— Ela está tendo uma parada cardiorrespiratória! — Rosa gritou nervosa e eu corri até a maca.

Ana Maria tirou rapidamente o travesseiro debaixo da cabeça de Juliana e Maurício me entregou o desfibrilador cardíaco.

Minha mente parecia ter dado um nó e eu senti minhas mãos trêmulas.

— Carrega para cem! — Pedi sentindo minhas lágrimas embaçarem a minha visão. — Afasta! — Mandei e todos ergueram as mãos.

Pousei as pás no tórax de Juliana liberando a descarga elétrica. Todos olhamos para o monitor cardíaco que continuava apontando apenas uma linha reta junto com um apito sonoro fúnebre.

Entreguei o desfibrilador para Maurício novamente e arrisquei uma massagem cardíaca.

— Por favor, volta! Volta! — Implorei com a voz embargada fazendo pressão contra seu coração parado.

Após dois minutos de massagem intensa parei olhando para o monitor.

— Sem sinal ainda! — Ana Maria comentou e eu peguei novamente o equipamento das mãos de Maurício.

— Carrega para duzentos! — Ordenei nervoso. — Afasta!

Novamente apliquei o choque em seu peito e ela permaneceu sem reação alguma.

Voltei à massagem cardíaca, ainda mais intensa. Senti o ar faltar nos meus pulmões, respirei pela boca. Peguei novamente o desfibrilador.

— Carrega para trezentos! Afasta! — Gritei tentando reanimá-la novamente.

— Perdemos ela. — Rosa murmurou olhando o maldito monitor.

— Não, não perdemos. — Falei voltando a fazer massagem cardíaca.

Inclinei sobre a maca e permaneci pressionando com força sobre o seu peito.

— Volta! Volta! Volta! — Repeti incessantemente com a voz embargada. — Ainda tem muitos livros para ler. Mais ainda para escrever. Ainda tem a sua própria história para trilhar. Ainda vai cursar letras. Vai viajar o mundo. Vai fazer mais e mais amigos. — Falei sem parar um segundo a massagem. — Vai abraçar seus pais. Vai me abraçar. Vamos ao cinema, vamos ver adaptação dos nossos livros favoritos. Vamos falar mal dessas adaptações. Vamos sair de mãos dadas. Vamos voltar ao mirante. Vamos escrever uma poesia juntos. Vamos ser poesia. — Falei arrasado.

— Bernardo, acabou! Infelizmente ela não vai mais voltar! — Rosa disse ao meu lado e eu peguei novamente o desfibrilador.

— Carrega para duzentos! — Pedi e ninguém se moveu. — Anda, carrega para duzentos!

— Bernardo... — Ana Maria tentou me impedir e eu lancei um olhar desencorajador para ela.

— Carrega para duzentos! — Repeti transtornado e finalmente carregaram. — Afasta!

Mais choque. Nada.
Mais massagem. Nada.

— Carrega para trezentos! Afasta!

Nada.

Era como as primeiras aulas de multiplicação na escolinha, quando aprendemos que qualquer número vezes zero ainda resulta em zero. Qualquer esforço que se empenhe em nada, continua sendo o mesmo resultado.

Mais massagem cardíaca.
Nada.

— Bernardo, para! — Senti uma mão no meu ombro, entretanto não fui capaz de discernir quem era pela voz.

— Carrega em trezentos! Afasta! — Falei aplicando mais choque.

Nada.

Massagem.
Choque.
Lágrimas.

Mais massagem.
Mais choque.
Mais lágrimas.

Menos vida.
Menos dor.
Mais tristeza.

Eu sabia que estava sendo egoísta. Juliana estava sofrendo muito, mas eu simplesmente não podia aceitar que ela partisse assim. Não podia e não iria.

— Carrega para duzentos! — Pedi exausto.

— Bernardo, ela já está parada há sete minutos. — Rosa disse tocando nas minhas costas. — Ela não vai mais voltar.

— Vai sim. Carreguem para duzentos! — Insisti chorando compulsivamente.

Choquei novamente. Mais massagem. Mais segundos. Mais nada.

O coração dela se recusava terminantemente a voltar. Já o meu parecia que iria explodir.

Respirei fundo, derrotado, exausto, destruído.

— Saíam todos daqui! Por favor! — Pedi deitando minha cabeça no peito sem vida de Juliana.

As lágrimas vorazes pareciam que iriam me afogar. A garganta fechou duramente. Me senti sem ar, me senti impotente. Me senti um lixo.

Passei a vida inteira ajudando outras pessoas e a que eu mais queria ajudar na vida eu não consegui.

— Perdão, Juliana! Perdão por não ter te pedido em namoro antes! Por não ter me declarado antes! Por não ter conseguido te salvar. Por não conseguir evitar sua partida tão precoce. Por... Eu... Meu Deus... Me ajuda!

Ergui novamente meu corpo, olhei o rosto dela sereno. Voltei novamente a fazer massagem. Uma. Duas. Três. Infinitas vezes.

Nada resolvia.
Nada podia resolver.

— Meu Deus, por favor! Por favor! Por favor! — Repeti inúmeras vezes.

A intenção era fazer uma oração, mas as palavras não saíam. A dor não diminuía. Minhas mãos não paravam tentando trazer vida novamente ao coração de Juliana.

E ela não voltou.
Parei apoiando na maca.
O ódio pelo destino infeliz rastejando pelas minhas veias.

Fechei o punho e apertei mais forte contra a caixa torácica dela.

— Volta! Volta, por favor, volta! — Gritei descontrolado e senti braços tentando me arrastar.

— Chega, Bernardo! Chega! — Otávio gritou. — Declara!

— Eu não posso fazer isso...

— Declara agora! — Insistiu e eu olhei uma última vez para minha menina, completamente arrasado.

— Hora da morte: dez e vinte e um. — Falei com a voz embargada e ele me abraçou apertado.

Foi quando o apito fúnebre parou.

As Últimas Flores De SetembroOnde histórias criam vida. Descubra agora