A vingança - 7

37 2 0
                                    

As rodas da velha sege pareciam bambas. O cavalo, acostumado a andar solto pelos jardins da quinta, balançava impaciente a cabeça tentando livrar-se dos ferros que o atrelavam.

Vieira lembrava um cervo abatido numa caçada em Sintra, quando entrou na sege.

Pensava se devia seguir os conselhos de seus amigos e partir do Brasil. Talvez devesse ter ido para a Suécia, onde a rainha Cristina o pretendera para seu confessor. Sua saúde estava muito pior do que quando o geral da Companhia de Jesus o escusara do governo da Casa Professa. Sua idade passava dos setenta anos, tinha perdido totalmente uma das vistas e a outra se debilitava a cada dia; a memória já não funcionava como antes; a perna direita ainda sentia uma antiga doença da qual fora acometida. Roma era um lugar frio e úmido, e seu estado não lhe permitiria suportar outros invernos europeus. Lisboa tinha o inconveniente da Inquisição, dos velhos inimigos, das velhas maledicências. Apesar de tudo, a Bahia era o lugar onde podia, com certo conforto, continuar o trabalho de escrever seus sermões. Esses dias angustiantes por que passava não iriam durar para sempre.

— Em que está pensando, senhor padre?, disse José Soares.

— No ano passado houve uma arruaça em Coimbra, onde um grupo de estudantes e gente baixa simulou um auto-de-fé queimando a minha figura. O que mais podem fazer contra mim? Queimar-me vivo?Honradas exéquias. Enquanto isso, na Universidade do México me dedicaram umas conclusões de teologia. Não faço caso das palmas e das trombetas, porque tudo é vento e fumo. Mas não pode deixar de me magoar muito que ao mesmo tempo em uma universidade de Portugal me afrontem, como no Brasil, e em outra universidade de castelhanos me homenageiem. Por certo que nem a uns nem a outros merecia eu semelhantes correspondências. Fosse eu sueco, ou espanhol, aqui não me estariam tratando assim.

— Engano seu, disse José Soares. — Nesta colônia não respeitam nem a Deus.

— Raptar mulheres! A tanto chega o ódio e paixão do governador. Esta é a terra de onde, com razão, fogem todos quanto podem. Àquele homem, ou meio homem, se entrega este Estado, a ele se fiam as fazendas, as honras, a liberdade e as vidas de tantos e tão leais vassalos. Só pela obediência e respeito de quem tão mal representa a pessoa de sua alteza sofremos essas injúrias. Prender mulheres!— Depois de meia hora de viagem, a sege que os levava entrou nos arruamentos malcalçados e acidentados da cidade. Percorreram uma rua movimentada, ladeada por um renque de casas altas com empenas pontiagudas, janelas de adufas, portas cheias de mercadorias penduradas. Atravessaram uma praça onde escrivães ambulantes redigiam requerimentos em troca de pequenas quantias. Nesse lugar agitado faziam o comércio de açúcar e tabaco do Brasil, canela do Ceilão e de uma infinidade de artigos. Ao cheiro fétido das ruas sobrepunha-se um aroma de especiarias.

A tarde começava a cair. Vieira viu pescadores que vendiam peixes, lagostas, lagostins, mariscos; beneditinos ofereciam verduras nos alforjes dos burricos; ganhadeiras vendiam rendas, panos pendurados em grades, pequenas peças de prata ou madeira.

Era dia de procissão. Alguns usavam suas melhores roupas, lavadas, botas limpas fora a parte de baixo, que chafurdava na lama. Os mais pobres andavam descalços mas seus penteados e roupas, como os de todos os outros, tentavam imitar a moda afrancesada dos nobres.

Moças passavam segurando as saias bojudas para que não arrastassem no chão, algumas sob rebucilhos negros. Mulheres ostentavam jóias às janelas. Pobres se misturavam a ricos, frades pedintes circulavam entre estudantes, nobres tropeçavam em cães vadios.

Vieira cruzou com carruagens que rodavam nas ruas. Os cascos dos animais estalavam nas pedras fazendo ruído. Serpentinas, florões, liteiras levavam pessoas mais abastadas: mercadores, políticos, funcionários da Coroa, prostitutas ricas, senhores de engenho. Rodas sulcavam a lama do chão, grilhões trincolejavam, cavalos atrelados relinchavam e batiam com as patas no charco, salpicando as calças dos liteiros, dos cocheiros, dos estribeiros, dos escravos, dos criados, dos parvos, dos vadios, de toda a gente que se apertava contra as paredes para ver aquele movimento tão incomum de carros.

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora