A Queda - 1

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Gregório de Matos, numa de suas andanças pelo Recôncavo, ansioso por rever Maria Berco, foi visitar o rabino Samuel da Fonseca. O poeta fazia de tudo para demonstrar excentricidade: um ar extravagante, roupas amarrotadas, cabelos desarrumados. No entanto, era em torno dele que as coisas giravam. Sempre.

No engenho de Samuel da Fonseca não se faziam gastos desnecessários. Não que houvesse ali a sobriedade mesquinha de alguns senhores da região, tampouco a ostentação de outros, que queriam passar por fidalgos das cortes. Tinha de tudo, mas não cavalos demais, ou charameleiros, trombeteiros, tangedores, lacaios mimosos. A mesa era posta com louça de estanho por negros vestidos de serguilhas; belas escravas carregavam pratos com iguarias.

Era um lugar de certa forma melancólico. Ouvia-se ao longe, continuamente, o som das caldeiras. As fornalhas não paravam nunca de funcionar, por oito meses do ano. O rabino e o poeta conversaram sobre a situação dos engenhos.

A Bahia produzia entre catorze e quinze mil caixas de trinta e cinco arrobas de açúcar por ano, que valiam mil e setecentos, mil e oitocentos contos. Para aquele ano de 1684 esperava-se uma grande colheita, porém a farta produção obrigava os produtores a venderem barato e até a queimarem o açúcar fino. A falta de navios para transporte causava quedas nos preços, agravando o problema. Entretanto, subiam os preços do cobre, do ferro, do pano, de todos os materiais que supriam os engenhos, especialmente o valor dos escravos. Para o funcionamento de um engenho, eram necessários, só na moenda, entre vinte e trinta negros, além do feitor e de outros tantos para os substituírem no turno da noite. Esses escravos da moenda tinham que ser sempre trocados por outros, pois, prostrados pelo sono e pelo cansaço, metiam sem perceber a mão entre os eixos, sendo preciso que o feitor lhes cortasse o braço preso antes que fossem inteiramente estraçalhados pela máquina.

Plantavam-se canaviais nas encostas para que resistissem às inundações, porém estes, nas secas, eram logo perdidos. Nas várzeas, ao contrário, a seca não afetava a plantação, mas a chuva a inundava e destruía. O capim obrigava os plantadores a empregarem escravos na limpeza contínua dos canaviais, com a enxada na mão. Logo que as canas germinavam, animais soltos, cabras, bois, cavalos, vinham pastar os brotos das plantas, derrubando e pisando muitas delas. Das canas que escapavam de serem roídas pelos ratos e pelos porcos, muitas, depois de colhidas e amarradas em feixes empilhados nas trilhas, eram furtadas por ladrões. Bois que faziam o transporte das caixas de açúcar decais morriam na lama. Escravos eram esmagados sob os rolos e espeques usados para embarcar o açúcar que afundavam nas coroas.

As fornalhas, ardendo dia e noite, precisavam de lenha que os barcos iam buscar nos portos, ou que muitos carros com muitas juntas de bois iam buscar nos matos. Havia regimentos sobre a instalação de engenhos, estabelecendo uma distância entre eles para que não faltasse madeira a nenhum. Porém, poucos respeitavam essas normas e estava a lenha rareando com a derrubada de grandes porções de florestas.

Além de enfrentar as inclemências da natureza e as dificuldades inerentes à produção, os senhores da cana estavam sujeitos a uma política desastrada da Coroa. O açúcar, dispendioso, caro, tinha  inumeráveis encargos e despesas. Assim que a carga chegava à Bahia, era preciso pagar ao trapicheiro. Uma pataca de frete, dois vinténs de aluguel, a comissão do trapicheiro caso vendesse alguma caixa. Depois vinham as taxas, os caixões, pregos, carretos, guindastes, direitos de subsídio da terra, as descargas, os armazéns, as alfândegas, a arqueação, as obras, taras e marcas, a avaliação, os consulados.

— Os produtores do açúcar estão à beira da ruína, disse Samuel da Fonseca, com indignação. — O negócio, agora, é plantar tabaco.

A cada ano Lisboa solicitava mais tabaco, e as arrobas dos milhares de rolos que as frotas levavam já não eram suficientes para suprir o mercado que se expandia para além dos reinos da Europa. Em Lisboa, uma libra de tabaco pisado valia de quinze a vinte e cinco tostões e o rei Pedro II, coroado em setembro de 1683, após a morte do irmão, obtinha lucros com este comércio, a cada ano, de cerca de dois milhões de cruzados. Em Londres, com uma população de aproximadamente oitocentos mil habitantes, o tabaco era negociado por mais de sete mil comerciantes. Se cada um deles vendesse, a cada dia, um florim e meio de tabaco, se venderiam dez mil e quinhentos florins diários. O que se negociava em um ano, só em Londres, seria o equivalente a um milhão, novecentos e dezesseis mil e duzentos e cinquenta cruzados.

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora