A Devassa - 2

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Quando falava com o meirinho, Rocha Pita não usava a corneta.

Não que fosse uma farsa sua surdez, mas, nos anos que haviam passado juntos, o desembargador aprendera como que a ouvir os pensamentos de Manuel do Porto, lendo em seus olhos, em seus lábios, em seus sentimentos. Além disso, o meirinho tinha voz possante, adquirida nas leituras públicas. 

— O que farias no meu lugar?, disse Rocha Pita. 

— Não sei, senhor. Talvez o que costumam fazer os desembargadores. Encerrar o processo. Soltar os denunciados. Perdoar os acusados do crime. 

— Ao andar pelas ruas ouço gritos vindos de trás das janelas fechadas, de lugares que não se pode ver, contra o governador. 

— Comigo acontece o mesmo, disse o meirinho. — As pessoas não vão falar. 

— Hum.

Manuel do Porto aguardou. 

— Deixar passar assim sem desvendar? Não. Vou devassar o que tenho a devassar, mesmo que seja preciso derrubar uma muralha aos sopros. Vou falar com o Antônio de Souza, disse Rocha Pita. 

— Falar? Com o Braço de Prata? 

— Marca uma audiência para mim, Manuel. Enquanto isso, tenho um trabalho para ti. 

O governador geral sorriu ao ser informado de que Rocha Pita queria visitá-lo no palácio. Previra que ele atuaria dentro de limites e as dificuldades que enfrentaria. O governador sabia que os ministros e demais poderosos costumavam defender seus foros e proteger seus pares.

— Está de pés e mãos atados, disse Antônio de Souza. — Por isso me procura.


***


Chovia, e a roupa de Rocha Pita estava recoberta de pingos grossos que o haviam surpreendido ao subir as escadas do palácio. Sua cabeleira era de má qualidade, sua beca de pano comum. Usava sandálias de couro amarradas nos pés, como se fosse um padre.

Os apetrechos que o governador usava no palácio eram simples, nada preciosos. Não envergava ouro nos botões, na espada, no tinteiro. Apenas alguns objetos de metal polido e menos nobre: bronze, cobre, estanho. Os quadros pendurados nas paredes haviam sido comprados por antecessores e o mobiliário não tinha nenhum requinte. A sala onde despachava o governador não diferia muito das outras do palácio. Tampouco lembrava as salas particulares de negociantes, quase sempre mais suntuosas.

Rocha Pita passou os olhos rapidamente pelo lugar.

— A sua presença aqui me deixa, de certa forma, constrangido, senhor desembargador, disse Antônio de Souza encarando o homem à sua frente.

— Afinal, tudo que eu possa vir a dizer poderá ser usado contra mim, não é mesmo? Não é costume seu me procurar, só nos encontramos nas reuniões da Grande Mesa. Seria um privilégio que me concede? Ou uma censura?

— Nem privilégio nem censura. Apenas umas considerações que tenho a fazer.

— Considerações a respeito de quê, senhor desembargador?

Rocha Pita pensou em responder, mas permaneceu em silêncio, com um leve sorriso. Manteve os olhos no rosto de Antônio de Souza. Por um momento os dois homens imóveis examinaram-se mutuamente. Antônio de Souza sabia que o inimigo mais fraco era o que se deixava mover pelos sentimentos.

Percebeu que o desembargador estava tranqüilo, mantinha o cotovelo sobre a mesa e segurava, firme, a corneta contra o ouvido. Nada que lembrasse fraqueza, pensou Antônio de Souza. Por sua vez, o governador possuía uma forte disciplina física e aparente imobilidade mental, adquiridas na vida militar. O aprendizado do domínio de uma montaria, ou das velas ao vento, era também uma boa escola para se aprender a dominar a si mesmo quiçá aos outros homens. 

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora